O caso ocorrido em Goiânia, onde um usuário de drogas registrou um boletim de ocorrência alegando ter sido enganado por um traficante, levanta importantes questões jurídicas.
O comprador pagou pela substância, mas não recebeu o produto e, por isso, acusou o traficante de agir de “má-fé”.
A situação chama atenção porque envolve a tentativa de exigir direitos dentro de uma relação ilícita. Isso leva ao questionamento sobre a possibilidade de aplicação do crime de estelionato e a eventual responsabilidade do denunciante por comunicação falsa de crime.
Este artigo analisa se a conduta do traficante pode ser enquadrada como crime patrimonial, considerando que o objeto do negócio, apesar de ilícito, possui valor econômico e, portanto, pode ser protegido pelo direito penal em determinadas circunstâncias.
O objeto material do crime patrimonial pode ser ilícito?
Os crimes contra o patrimônio têm como objeto material bens que possuam valor econômico, sejam eles lícitos ou ilícitos.

O STJ já firmou entendimento nesse sentido no REsp 1645969/MG, no qual reconheceu que é possível considerar o entorpecente como objeto material de crimes patrimoniais. Naquele caso, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais desclassificou um latrocínio para homicídio ao entender que drogas não poderiam ser objeto de crime patrimonial. No entanto, o STJ reformou a decisão, afirmando que o direito penal protege qualquer bem que tenha valor de troca ou uso, independentemente de sua ilicitude.
Seguindo essa lógica, a maconha adquirida pelo usuário em Goiânia, ainda que seja uma substância proibida, possui valor de mercado e pode, sim, ser considerada um objeto passível de proteção em um crime patrimonial. Dessa forma, surge o questionamento: a conduta do traficante poderia configurar o crime de estelionato?
O crime de estelionato se aplica ao caso?
O estelionato está previsto no artigo 171 do Código Penal, com a seguinte redação:
“Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento.”
Para que se configure o crime, é necessário que estejam presentes os seguintes requisitos:
- Obtenção de vantagem ilícita – o traficante recebeu o dinheiro, mas não entregou a droga.
- Prejuízo à vítima – o usuário perdeu o valor pago sem receber o produto.
- Uso de artifício ou ardil – o agente deve ter empregado um meio fraudulento para enganar a vítima.
- Indução ao erro – a vítima deve ter sido levada a acreditar que receberia algo, mas foi enganada.
No caso em questão, os dois primeiros requisitos parecem estar presentes: houve vantagem indevida do vendedor e prejuízo do comprador. Entretanto, o terceiro e o quarto requisitos exigem um comportamento ativo de enganar a vítima, o que não parece ter ocorrido. A simples não entrega da mercadoria caracteriza um descumprimento contratual, mas não necessariamente um ardil ou fraude.
Se o traficante tivesse, por exemplo, apresentado um pacote de farinha dizendo ser maconha ou criado um anúncio falso para atrair compradores, haveria engano premeditado. Mas se o problema foi apenas a falta de entrega, sem qualquer artifício para enganar, não há crime de estelionato, mas sim um desentendimento comercial.
A relação entre as partes é de natureza cível, e não criminal
A ausência de ardil, fraude ou algo que o valha torna a situação uma questão cível, ou seja, um problema de descumprimento de um acordo entre as partes. Se estivéssemos diante de um contrato lícito, o caminho adequado para o comprador seria buscar a restituição do valor pago na esfera civil.
No entanto, como a negociação envolvia um produto ilícito, essa possibilidade não existe, pois o ordenamento jurídico não protege negócios jurídicos ilícitos (artigo 104 do Código Civil).
Ou seja, embora se possa considerar a droga um bem com valor econômico e, em tese, passível de proteção penal em crimes patrimoniais, a ausência de fraude impede a criminalização da conduta. Sem previsão legal específica, a conduta do traficante torna-se atípica, ou seja, não há crime a se punir.
O usuário pode responder por comunicação falsa de crime?
O usuário buscou enquadrar a conduta do traficante como estelionato ao registrar o boletim de ocorrência. No entanto, não parece ter havido crime de comunicação falsa de crime (art. 340 do Código Penal), pois sua denúncia decorreu de uma errônea interpretação da situação. O tipo penal exige que a pessoa comunique um crime que sabe não ter ocorrido, o que não parece ser o caso, já que o usuário acreditava estar denunciando uma infração real.
Além disso, a afirmação do uso de drogas não gera consequências jurídicas automáticas, pois, para que houvesse qualquer sanção, seria necessária a apreensão e perícia do material. Não basta o usuário declarar que comprou ou usou drogas; é preciso que haja prova material do fato. Como isso não ocorreu, não há qualquer ato concreto que possa ser punido pelo direito penal.
Conclusão
A análise do caso demonstra que, embora seja possível considerar a droga um bem com valor econômico para fins de crimes patrimoniais, a conduta do traficante não configura estelionato. Isso ocorre porque não houve fraude, engano ou ardil, mas sim um simples descumprimento de um acordo ilícito, algo que não é passível de punição criminal.
Além disso, a tentativa do usuário de acionar a polícia não configura comunicação falsa de crime, pois decorreu de uma interpretação errada sobre seus direitos. Também não há crime ou infração administrativa pelo simples fato de ele admitir o uso de drogas. Por isso, seria necessária a apreensão da substância para a aplicação de qualquer medida.
PENAL. PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. SUBTRAÇÃO DE 5,2 KG DE PASTA BASE DE COCAÍNA, MEDIANTE USO DE ARMA. RESULTADO MORTE. CONFIGURAÇÃO DO TIPO PENAL DO LATROCÍNIO. CRIME PATRIMONIAL QUE AFASTA A COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI.
1. O Tribunal de Justiça mineiro, diante dos fatos constantes da sentença, decidiu por alterar a tipificação feita pelo Magistrado, desclassificando o tipo penal de latrocínio para homicídio, por considerar que coisa ilícita não poderia ser objeto do crime patrimonial, motivo pelo qual considerou que a conduta (subtrair) insere-se em uma daquelas descritas no tipo penal do tráfico - art. 33 da Lei n. 11.343/2006 -, em concurso material com o homicídio.
2. A compreensão adotada no acórdão recorrido vai de encontro à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a qual admite a configuração do crime contra o patrimônio nas hipóteses em que o entorpecente é objeto material do crime de furto ou de roubo.
3. A doutrina é unânime quanto ao objeto material dos crimes patrimoniais, sendo esse, além da pessoa humana, a coisa em si, desde que alheia e móvel, e que possua valor (de troca ou de uso), exigindo-se para a consumação do delito, no tocante ao elemento subjetivo, a intenção de subtraí-la com a finalidade de tê-la para si ou para outrem. Havendo distinção quanto à capitulação do tipo, em furto ou roubo, a depender da violência ou grave ameaça utilizadas.
4. Inexistindo no tipo penal dos crimes contra o patrimônio qualquer análise concernente à ilicitude da coisa alheia, não há como se dispensar tratamento restritivo na aplicação da norma, já que não há na lei essa limitação concernente ao objeto material.
5. Sendo a hipótese dos autos um ilícito penal relativo ao crime contra o patrimônio, em que o resultado morte ensejou a configuração do tipo penal do latrocínio - art. 157, § 3º, do Código Penal -, não há falar em competência do Tribunal do Júri.
6. Recurso especial provido a fim de reformar o acórdão impugnado para afastar a competência do Tribunal do Júri e determinar que o Tribunal de Justiça mineiro prossiga no julgamento das apelações, como entender de direito.
(REsp 1645969/MG, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 06/12/2018, DJe 01/02/2019)
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