TRF-3 paga aula de etiqueta a juízes

TRF-3 paga aula de etiqueta a juízes

TRF da 3ª Região paga valor exorbitante por aula de etiqueta para ensinar juízes a usar talheres

Aula de etiqueta

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Aula de etiqueta: entenda

Uma notícia no mínimo exótica ganhou repercussão nos últimos dias. O TRF da 3ª Região (que atende aos estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul), através de sua Escola de Magistrados, contratou uma palestra de etiqueta para seus novos juízes.

Entre as lições da palestra denominada “Etiqueta corporativa”, estava o “ABC da Mesa”, que ensinou a posição correta de pratos, copos e talheres na mesa. O curso de duas horas, que aconteceu entre as 14h e as 16h do dia 26 de junho de 2024, foi ministrado pela jornalista Cláudia Matarazzo.

Detalhe: essa palestra de 2h custou aos cofres do Tribunal o montante de R$9.800,00, conforme nota de empenho, que aponta como destinatária do valor a empresa Moreno Produções Artísticas, de propriedade da jornalista.

O que chama a atenção é que no dia seguinte foi proferida uma palestra, também de 2h de duração, intitulada “O juiz e a sociedade”, e o valor pago foi de R$516,00.

Portanto, além da duvidosa razoabilidade em pagar uma palestra para ensinar juízes a usar talheres e pratos, o valor parece superar, em muito, o de outras palestras envolvendo temas jurídicos.

Aula de etiqueta: resposta do Tribunal

Segundo o tribunal, a aula faz parte do treinamento corporativo, previsto em resoluções da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados, do Conselho Nacional de Justiça e do Código de Ética da magistratura.

O Tribunal também informou que todos os novos juízes são obrigados a fazer o curso e que a aula de etiqueta foi assistida por 104 juízes aprovados no XX Concurso da instituição e para os coordenadores.

Ultimamente, casos como esse, em que verba pública é destinada para fins de necessidade duvidosa, revelam uma pauta de incremento e fortalecimento de privilégios de certos grupos corporativistas, a exemplo dos magistrados.

Tivemos, também recentemente, a cogitação da criação da “calçada da fama” no Tribunal de Justiça de Pernambuco, que só não foi efetivada devido a forte repercussão negativa. O objetivo era homenagear ex-presidentes do TJPE.

O desembargador Ricardo Paes Barreto, presidente do TJPE, em entrevista a uma emissora de televisão, demonstrou empolgação com o projeto: “Já está em implantação a calçada da fama do Poder Judiciário, que a gente só via em Hollywood, no Maracanã. […] Vamos fazer as mãos – que é o nosso instrumento de trabalho – de todos os presidentes que ainda estão vivos, hoje são 17. E, à medida que os presidentes forem saindo, eles vão fazer o molde da mão, com a assinatura moldada, o nome e o ano […] Vai ficar uma coisa muito bonita, uma atração para os turistas, para os juristas, para todos que visitam a nossa cidade”.

Também já ouvimos falar sobre auxílio-paletó, auxílio-babá, licença para estudo no exterior e outras benesses.

A questão jurídica relevante é saber se esses gastos estão de acordo com nosso ordenamento jurídico, ou seja, se eles afrontam ou não os comandos insculpidos em nossa Carta Magna.

Constituição Federal

A Constituição Federal, em seu artigo 37, é clara ao impor ao Poder Público a obediência a uma série de princípios, dentre os quais o da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Estes princípios servem como alicerces para garantir uma gestão transparente e ética dos recursos públicos.

Art. 37, CF/88 – A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte…

O Brasil é um país com grande desigualdade social e econômica, e com enormes desafios em áreas como saúde, educação, segurança, habitação. Os serviços públicos são mal avaliados pela população e considerados precários pelos usuários. O orçamento público é limitado, e os recursos são escassos.

A pergunta é: nesse contexto de limitação orçamentária, gastos como o realizado para custear aula de etiqueta obedecem à moralidade e à eficiência?

A alocação dos parcos recursos públicos é, portanto, uma questão que deve ser analisada sob o prisma dos princípios que regem a administração pública.

O país deve caminhar para uma gestão mais ética e democrática dos recursos públicos, que privilegiem uma boa prestação dos serviços públicos prestados aos cidadãos.

Entendimento do STF

Em 2023, o Supremo Tribunal Federal julgou parcialmente procedente a ADI 5407. Nesse caso, o Plenário declarou, por unanimidade, a inconstitucionalidade de dispositivo de lei mineira que determinava o pagamento de auxílio-aperfeiçoamento profissional a juízes estaduais para a aquisição de livros jurídicos, digitais e material de informática, com fundamento de que as verbas instituídas pelas normas impugnadas ostentavam feição remuneratória e são incompatíveis com o regime de pagamento por meio de subsídio (CF, art. 39, § 4º), sendo indiferente que lei ou ato infralegal atribuam-lhes formalmente caráter de indenização.

Importante frisar que o princípio da moralidade possui autonomia. A sua ofensa ocorre sempre que, embora em conformidade com a lei, o comportamento da Administração Pública viola:

  • moral;
  • bons costumes;
  • regras de boa administração;
  • princípios de justiça e de equidade;
  • ideia de honestidade.

    Nessa toada, o princípio da moralidade se evidencia na possibilidade de anulação de atos legais que, mesmo em conformidade com a lei, revelam-se imorais. Esse controle, inclusive pelo Poder Judiciário, destaca a dimensão jurídica da moralidade administrativa.

    Portanto, questiona-se: a aula de etiqueta estaria obedece o princípio da moralidade?

    Entendimento da doutrina

    Ainda no estudo da questão da aula de etiqueta, vejamos os pontos abordados pela doutrina¹ em relação ao princípio da moralidade. Vejamos em três perspectivas:

    Primeira perspectiva

    a) Dever de atuação ética (princípio da probidade): este primeiro sentido destaca o dever de atuação ética, conhecido como o princípio da probidade. Ele impõe ao agente público a obrigação de conduzir suas atividades de maneira transparente, honesta e íntegra.

    A ética aqui transcende a mera conformidade com a legalidade. Ela exige um comportamento que vai além do simples cumprimento da lei, incluindo a honestidade e a transparência na interação com os administrados.

    O agente público, ao aderir ao princípio da probidade, compromete-se, por exemplo, a:

    • não sonegar informações, violar normas ou;
    • prestar informações incompletas com o intuito de enganar os administrados.

    O respeito a esse dever ético é crucial para manter a confiança da sociedade na administração pública. Além disso, isso assegura uma atuação que vá além do mero cumprimento formal da lei.

    Segunda perspectiva

    b) Concretização dos valores consagrados na lei: o segundo sentido destaca a concretização dos valores consagrados na lei como parte integrante do princípio da moralidade. Aqui, o agente público não deve limitar-se estritamente à aplicação literal da lei, mas buscar atingir os valores subjacentes a ela.

    Por exemplo, quando a Constituição estabelece o concurso público para garantir a isonomia na busca por um cargo público, o agente que organiza um concurso seguindo esses princípios está, simultaneamente, cumprindo o princípio da moralidade.

    Assim, a aplicação do direito não é vista apenas como um cumprimento formal, mas como um esforço para realizar os valores e objetivos que a lei visa atingir.

    Terceira perspectiva

    c) Observância dos costumes administrativos: o terceiro sentido do princípio da moralidade destaca a observância dos costumes administrativos. Isso significa que a validade da conduta administrativa está vinculada não apenas à lei, mas também às regras que surgem informalmente no dia a dia administrativo, derivadas de práticas repetidas.

    Desde que essas práticas não infrinjam a lei, espera-se que a Administração se vincule a elas, pois representam uma espécie de “legislação informal” criada a partir das interações diárias.

    A conformidade com esses costumes fortalece a legalidade das ações administrativas e contribui para a estabilidade e previsibilidade no ambiente administrativo.

    Em resumo, os três sentidos do princípio da moralidade formam uma tríade essencial que orienta a conduta dos agentes públicos. Isso promove uma administração pautada pela ética, legalidade e tradição.

    Esses princípios, quando aplicados em conjunto, fortalecem a legitimidade dos atos administrativos e contribuem para a construção de uma administração pública íntegra e confiável.

    Enfim, a previsão e o pagamento de todas essas benesses corporativas (entre elas as aulas de etiqueta) devem passar, necessariamente, pelo crivo da observância dos princípios da moralidade, da eficiência, da legalidade, da impessoalidade, e devem levar em conta, sempre, o impacto que irão causar no orçamento e seus efeitos na prestação dos serviços públicos.

    O Brasil precisa caminhar, cada vez mais, para um uso dos recursos públicos de forma ética, transparente, legal. Deve sempre ter em vista as reais necessidades dos cidadãos.

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