Tráfico Humano em Mianmar

Tráfico Humano em Mianmar

Entenda o caso de tráfico humano envolvendo brasileiros em Mianmar, de acordo com a análise jurídica baseada no Protocolo de Palermo e na legislação brasileira.

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Entenda o que aconteceu tráfico humano

Uma notícia assustadora preocupa o governo brasileiro: dois jovens brasileiros, que viajaram para Bangkok, capital tailandesa, com a promessa de trabalharem, se tornaram vítimas de tráfico humano em Mianmar. 

tráfico humano

Luckas Viana e Phelipe de Moura Ferreira foram chamados para trabalharem em um cassino e em um call center para uma empresa, mas, quando os brasileiros chegaram lá, foram sequestrados e forçados a trabalhar.

Parentes e amigos desconfiaram que os jovens estariam sendo levados para Mianmar, país que faz fronteira com a Tailândia e um dos principais destinos das vítimas de tráfico humano, segundo autoridades internacionais.

Os dois brasileiros são vítimas da mesma empresa, a KK Park, que, conforme descrição das próprias vítimas, é uma empresa de fachada, sendo, na verdade, uma verdadeira “fábrica de golpes online”, na qual estrangeiros são atraídos por falsas promessas de emprego e são obrigados a aplicar fraudes cibernéticas através de perfis falsos.

Foi por meio desses perfis que os brasileiros, escondidos dos sequestradores, conseguiram contactar os familiares, e denunciaram o crime.

Os jovens acusam os sequestradores das seguintes práticas:

  • Trabalho escravo (até 15 horas por dia);
  • Agressões;
  • Ameaças de morte;
  • Humilhação;
  • Espancamento;
  • Choques;
  • Medo de retirada de órgãos;
  • Retenção de documentos, passaporte e celular.

Importante pontuar que Mianmar vive sob uma ditadura militar há quase quatro anos, sendo considerado uma zona de conflito armado, o que torna a operação de resgate dos brasileiros bem mais delicada.

Por isso, o governo brasileiro informou que apenas as autoridades locais de Mianmar poderiam resgatar os jovens.

Mesmo diante de situação delicada, o Itamaraty informou que acompanha o caso pelas embaixadas do Brasil em Bangkok e Yangon — em Mianmar, e que foram realizadas diversas “gestões” junto ao governo de Mianmar, com o objetivo de tentar localizar e resgatar os jovens, mas que a operação compete às autoridades policiais locais.

Em 2023, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos afirmou que ao menos 120 mil pessoas, do mundo todo, estariam sendo mantidas nessa região em Mianmar, passando cerca de 18 horas por dia atrás de vítimas, às vezes, conhecidas.

Análise Jurídica  Tráfico Humano

O ponto de partida de todos esses crimes cometidos é o tráfico de pessoas, ou tráfico humano, que tem a seguinte dinâmica:

tráfico humano

Geralmente o tráfico humano é praticado para fins de exploração sexual, trabalho escravo ou retirada de órgãos ou tecidos.

Estima-se que o tráfico humano movimente em torno de 32 bilhões de dólares em todo o mundo (85% desse valor provêm da exploração sexual).

O que caracteriza o tráfico humano é a retirada da pessoa de seu ambiente (cidade, estado, país), ficando com sua liberdade de locomoção limitada e submetida a exploração (sexual, laboral, retirada de órgãos).

A limitação da liberdade é obtida de várias formas, em especial através da retenção de documentos, passaporte, celulares, agressões, ameaças psicológicas, risco de morte de familiares. 

Por incrível que possa parecer, em geral os aliciadores fazem parte do círculo de amizades da vítima ou de membros da família, apresentando boa escolaridade, sendo convincentes e até sedutores.

No tráfico para trabalho escravo, os aliciadores são chamados de “gatos”, e geralmente fazem propostas irrecusáveis de trabalho.

No cenário internacional, com o objetivo de orientar as legislações internas dos Estados no que se refere ao enfrentamento do tráfico de pessoas, buscando criar ferramentas comuns de atuação e cooperação internacional, e, ao mesmo tempo, respeitar as soberanias nacionais, foi editado, como parte complementar da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, o Protocolo de Palermo.

O Protocolo – que entrou em vigor em 2003 e conta atualmente com 175 Estados Partes – iniciou-se a partir da percepção da inexistência de um instrumento universal que se destinasse a prevenir, reprimir e punir o tráfico de pessoas. 

O tráfico de pessoas conceituado no artigo 3º do Protocolo de Palermo como sendo:

“O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo-se à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração.

A exploração deverá incluir, pelo menos, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, a escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a extração de órgãos.” 

Importante ressaltar que as modalidades de exploração trazidas pelo Protocolo de Palermo são meramente exemplificativas, já que consta, no conceito, a expressão “pelo menos” antes da enumeração.

Podemos citar como exemplos de finalidades do tráfico humano a adoção ilegal e o casamento forçado.

¹Ministério da Justiça

    O Brasil ratificou, em 2004, o Protocolo de Palermo por meio do Decreto nº 5.017, de 12 de março de 2004. 

    A partir de então, a norma contida no Protocolo de Palermo passou a ter vigência no Brasil, pautando a legislação nacional para a caracterização deste crime. 

    Depois de muitos debates e pressão da sociedade, foram realizadas importantes alterações em sua tipificação penal.

    A primeira lei específica sobre tráfico de pessoas no país entra em vigor em 2016, com a Lei nº 13.344/2016, que dispõe sobre prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas, e também sobre medidas de atenção às vítimas.

    A Lei segue os três eixos dispostos no Protocolo de Palermo, que são: 

    • Prevenção, 
    • Repressão ao crime e 
    • Proteção às vítimas.

    Vamos ver brevemente cada um dos eixos.

    Prevenção

    A prevenção ao tráfico de pessoas dar-se-á por meio:

    I – da implementação de medidas intersetoriais e integradas nas áreas de saúde, educação, trabalho, segurança pública, justiça, turismo, assistência social, desenvolvimento rural, esportes, comunicação, cultura e direitos humanos;

    II – de campanhas socioeducativas e de conscientização, considerando as diferentes realidades e linguagens;

    III – de incentivo à mobilização e à participação da sociedade civil; e

    IV – de incentivo a projetos de prevenção ao tráfico de pessoas.

    Repressão

    Por sua vez, a repressão ao tráfico de pessoas dar-se-á por meio:

    I – da cooperação entre órgãos do sistema de justiça e segurança, nacionais e estrangeiros;

    II – da integração de políticas e ações de repressão aos crimes correlatos e da responsabilização dos seus autores;

    III – da formação de equipes conjuntas de investigação.

    Proteção

    A proteção e o atendimento à vítima direta ou indireta do tráfico de pessoas compreendem:

    I – assistência jurídica, social, de trabalho e emprego e de saúde;

    II – acolhimento e abrigo provisório;

    III – atenção às suas necessidades específicas, especialmente em relação a questões de gênero, orientação sexual, origem étnica ou social, procedência, nacionalidade, raça, religião, faixa etária, situação migratória, atuação profissional, diversidade cultural, linguagem, laços sociais e familiares ou outro status ;

    IV – preservação da intimidade e da identidade;

    V – prevenção à revitimização no atendimento e nos procedimentos investigatórios e judiciais;

    VI – atendimento humanizado;

    VII – informação sobre procedimentos administrativos e judiciais.

    ² Ministério da Justiça

    Tipificação do crime de tráfico de pessoas

    O crime de tráfico de pessoas está previsto no artigo 149-A, do Código Penal:

    Art. 149-A.  Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de:         
    
    I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo;             
    
    II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo
    
    III - submetê-la a qualquer tipo de servidão
    
    IV - adoção ilegal; 
    
    V - exploração sexual
    
    Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa
    
    § 1º A pena é aumentada de um terço até a metade se
    
    I - o crime for cometido por funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las;
    
    II - o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência;
    
    III - o agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função; 
    
    IV - a vítima do tráfico de pessoas for retirada do território nacional
    
    § 2º A pena é reduzida de um a dois terços se o agente for primário e não integrar organização criminosa.

    O tema é extremamente relevante do ponto de vista social e jurídico, tendo grandes chances de ser cobrado em provas de direitos humanos, direito internacional, direito constitucional e direito penal. 

    Portanto, muita atenção!

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