STF forma maioria para condenar Bolsonaro: Carmen Lúcia confirma placar 3×1 na Primeira Turma

STF forma maioria para condenar Bolsonaro: Carmen Lúcia confirma placar 3×1 na Primeira Turma

Prof. Gustavo Cordeiro

Ministra Carmen Lúcia consolida maioria condenatória na AP 2668

A Ministra Carmen Lúcia votou pela condenação do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro na Ação Penal 2668, consolidando maioria de 3 votos a 1 na Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal. Com este resultado, Bolsonaro foi considerado culpado pelos crimes de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.

O placar final da votação ficou estabelecido com os votos condenatórios dos Ministros Alexandre de Moraes (relator), Flávio Dino e Carmen Lúcia, restando vencido apenas o Ministro Luiz Fux, que votou pela absolvição integral do ex-presidente. O Ministro Cristiano Zanin será o último a votar neste caso histórico que representa um dos julgamentos mais significativos da história constitucional recente, estabelecendo precedentes fundamentais para concurseiros das carreiras jurídicas.

A denúncia da Procuradoria-Geral da República

Os cinco crimes imputados

A Procuradoria-Geral da República, sob a condução do Procurador-Geral Paulo Gonet, ofereceu denúncia contra Bolsonaro e outros sete réus por cinco crimes específicos que merecem atenção especial dos concurseiros das carreiras jurídicas.

1. Organização criminosa armada (art. 2º, Lei 12.850/2013)

O primeiro crime denunciado foi a organização criminosa armada, com base no artigo 2º, caput, parágrafos 2º, 3º e 4º, inciso II, da Lei 12.850/2013. A PGR sustentou que os réus se associaram de forma estruturada e com divisão de tarefas para praticar crimes contra a ordem constitucional.

A tipificação ganhou especial relevância por envolver as qualificadoras de promoção, constituição e financiamento da organização (§2º), além da ocupação de cargo de liderança (§3º) e envolvimento de agentes públicos (§4º, II). A acusação caracterizou Bolsonaro como líder da organização, instrumentalizando sua posição presidencial para conferir legitimidade às ações criminosas.

2. Tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L, CP)

O segundo tipo penal imputado foi a tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, prevista no artigo 359-L do Código Penal. Este crime, inserido no ordenamento jurídico pela Lei 14.197/2021, representa uma das principais inovações legislativas recentes no combate aos ataques contra a ordem democrática.

A PGR argumentou que os réus tentaram, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito através da instrumentalização fraudulenta de institutos constitucionais, ameaças ao Poder Judiciário e mobilização de movimentos antidemocráticos.

3. Tentativa de golpe de Estado (art. 359-M, CP)

A acusação também incluiu o crime de golpe de Estado, tipificado no artigo 359-M do Código Penal. Este dispositivo criminaliza especificamente as tentativas de deposição do governo legitimamente constituído por meio de violência ou grave ameaça, elemento central da narrativa acusatória.

Segundo a denúncia, os réus articularam planos concretos para impedir a posse do governo eleito em 2022, incluindo pressões sobre comandantes militares e elaboração de documentos prevendo medidas inconstitucionais para manutenção no poder.

4. Dano qualificado (art. 163, parágrafo único, incisos I, III e IV, CP)

Foram imputados os crimes de dano qualificado contra o patrimônio da União, com base no artigo 163, parágrafo único, incisos I, III e IV do Código Penal. A PGR considerou a violência, grave ameaça e considerável prejuízo causado durante os eventos de 8 de janeiro de 2023.

A acusação estabeleceu nexo causal entre a liderança da organização criminosa e os danos materiais causados aos prédios dos Três Poderes, argumentando que os eventos constituíram resultado previsível da coordenação criminosa.

5. Deterioração de patrimônio tombado (art. 62, I, Lei 9.605/1998)

Por fim, a denúncia incluiu o crime de deterioração de patrimônio tombado, previsto no artigo 62, inciso I, da Lei 9.605/1998, relacionado aos danos causados aos prédios dos Três Poderes durante os eventos de 8 de janeiro de 2023.

A PGR argumentou que os prédios do Congresso Nacional, STF e Palácio do Planalto possuem proteção especial como patrimônio histórico e cultural brasileiro, sendo a deterioração resultado direto da coordenação criminosa liderada pelos réus.

As questões preliminares: Moraes versus Fux

O voto vencedor de Alexandre de Moraes

Rejeição integral das preliminares

O Ministro Alexandre de Moraes iniciou seu extenso voto rejeitando categoricamente todas as questões preliminares levantadas pelas defesas dos réus. Esta postura demonstrou, segundo o relator, a solidez processual da ação penal desde sua origem.

Cerceamento de defesa por falta de tempo: Moraes fundamentou que “todas, absolutamente todas as provas utilizadas pela PGR” estavam disponíveis desde o início do processo. O relator esclareceu que as defesas tiveram “total acesso” aos documentos desde o recebimento da denúncia, garantindo-se o contraditório e a ampla defesa.

Competência do STF: O relator confirmou a competência da Primeira Turma, estabelecida por maioria de votos em decisão anterior. Moraes foi enfático ao esclarecer que a conexão não se limitava aos crimes principais, mas se estendia a todas as condutas praticadas no contexto da mesma organização criminosa.

Validade da colaboração premiada: Moraes manteve a validade da delação de Mauro Cid, fundamentando que a própria defesa do colaborador havia reconhecido a voluntariedade durante as sustentações orais. O relator considerou “litigância de má-fé” alegar contradições nos depoimentos, esclarecendo que foram “oito depoimentos sobre fatos diversos” em uma única colaboração.

Sistema acusatório: Moraes rejeitou veementemente a acusação de “juiz inquisidor”, afirmando que a “ideia de que o juiz deve ser uma samambaia jurídica durante o processo não tem nenhuma ligação com o sistema acusatório”.

A divergência de Fux nas preliminares

Nulidade absoluta por incompetência do STF

O Ministro Luiz Fux já havia antecipado que “voltaria às preliminares”, sinalizando acolhimento de algumas alegações defensivas. Fux, no dia seguinte, ao votar, fundamentou o acolhimento desta preliminar na jurisprudência consolidada do STF na QO na AP 937, que estabelece que o foro por prerrogativa de função aplica-se exclusivamente aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas.

maioria

Para Fux, os crimes imputados a Bolsonaro não se relacionam diretamente com o exercício da função presidencial, mas sim com interesses pessoais de perpetuação no poder. Adicionalmente, aplicou a segunda parte do precedente, que estabelece a cristalização da competência após a publicação do despacho para alegações finais.

Incompetência da Primeira Turma

Fux sustentou que, se o STF mantiver competência para julgar ex-presidente, o julgamento deve ocorrer no Plenário, não na Primeira Turma. O ministro baseou-se na interpretação literal do artigo 5º do Regimento Interno do STF, reformulado em 2023, que estabelece competência do Plenário para processar e julgar crimes comuns contra o Presidente da República.

Cerceamento de defesa por “Document Dumping”

Fux acolheu a tese defensiva baseando-se na doutrina moderna sobre “document dumping” no processo penal. O ministro fundamentou que a disponibilização de bilhões de páginas sem organização adequada configura violação à ampla defesa, pois o simples acesso formal não garante o acesso material necessário ao exercício defensivo efetivo.

A questão de mérito: condenação versus absolvição

O voto condenatório de Alexandre de Moraes

A tese central: existência inequívoca de organização criminosa

O Ministro Moraes foi categórico ao afirmar que “não há dúvidas que houve tentativa de golpe” no Brasil. O magistrado esclareceu que o julgamento não discutia a existência da tentativa de golpe, mas sim a autoria e participação específica de cada réu nos eventos.

A organização criminosa, segundo o voto do relator, atuou de forma estruturada durante o período compreendido entre julho de 2021 e janeiro de 2023. Moraes identificou Jair Bolsonaro como líder inequívoco da organização, demonstrando como sua posição presidencial foi instrumentalizada para conferir legitimidade às ações do grupo.

Os 13 atos demonstrativos da coordenação criminosa

O relator apresentou cronologia detalhada com 13 atos específicos que evidenciaram a atuação coordenada do grupo:

  1. Instrumentalização das lives presidenciais: Utilização das transmissões com apoio de robôs para amplificar desinformações contra o sistema eleitoral
  2. Criação da ABIN paralela: Desenvolvimento de sistema de monitoramento de adversários políticos
  3. Instrumentalização do GSI: Utilização do Gabinete de Segurança para espalhar narrativas antidemocráticas
  4. Pressões sobre comandantes militares: Reuniões para buscar apoio militar ao plano golpista
  5. Elaboração da minuta do golpe: Documento prevendo medidas inconstitucionais
  6. Plano “Punhal Verde e Amarelo”: Documento prevendo assassinatos de autoridades
  7. Ameaças diretas ao Judiciário: Manifestações públicas intimidatórias
  8. Mobilização de acampamentos: Coordenação de manifestações antidemocráticas
  9. Instrumentalização da ABIN: Uso da agência para fins criminosos
  10. Articulação com militares: Busca de apoio das Forças Armadas
  11. Financiamento de atividades: Recursos para sustentação da organização
  12. Coordenação de narrativas: Sincronização de discursos desinformativos
  13. Culminância em 8 de janeiro: Eventos finais da tentativa golpista

Subsunção aos tipos penais pela maioria do STF

Organização criminosa armada: A maioria do STF considerou demonstrada a associação estruturada de oito pessoas durante 18 meses, com divisão clara de tarefas e finalidade criminosa específica. O caráter “armado” foi caracterizado pelo potencial armamentício demonstrado pela tentativa de envolvimento das Forças Armadas e elaboração de documentos prevendo eliminações físicas. As qualificadoras restaram configuradas pela liderança de Bolsonaro, participação de agentes públicos e promoção da organização.

Abolição do Estado Democrático de Direito: O STF entendeu que os atos executórios foram amplamente demonstrados pela elaboração da “minuta do golpe”, reuniões com comandantes militares e articulação de manifestações antidemocráticas. A violência ou grave ameaça foi caracterizada pelas ameaças diretas ao Poder Judiciário e mobilização de manifestações armadas.

Golpe de Estado: A Corte considerou caracterizada a tentativa de deposição do governo legitimamente constituído através das articulações para impedir a posse do governo eleito em 2022 e discussões sobre alternativas inconstitucionais ao resultado eleitoral.

Dano qualificado: O STF estabeleceu nexo causal direto entre a liderança da organização criminosa e os danos materiais causados aos prédios dos Três Poderes em 8 de janeiro, considerando os eventos como resultado previsível da coordenação criminosa.

Deterioração de patrimônio tombado: A maioria entendeu que a responsabilidade dos líderes da organização criminosa estende-se aos crimes praticados pelos subordinados no contexto da empreitada criminosa, independentemente de participação física direta.

A divergência absolvidora de Fux

Fundamentos centrais para absolvição integral

O Ministro Luiz Fux votou pela absolvição integral de Bolsonaro em todos os cinco crimes denunciados, fundamentando sua decisão em três pilares principais:

1. Ausência de dolo específico e nexo causal

O núcleo central da argumentação de Fux baseou-se na ausência de dolo específico e falta de nexo causal entre as condutas presidenciais e os resultados criminosos. O ministro foi categórico: “além de faltar o dolo, falta o indispensável nexo de causalidade” para vincular Bolsonaro aos crimes imputados.

Fux utilizou analogia demonstrativa: seria “igualmente absurdo considerar como partícipe em um atentado à vida de um candidato todos aqueles que houvessem proferido discursos inflamados contra sua pessoa”, referindo-se ao próprio atentado sofrido por Bolsonaro em 2018.

2. Diferenciação entre cogitação e execução

Para Fux, os documentos encontrados, incluindo a “minuta do golpe”, constituíam “mera documentação ‘cogitatio'”, não configurando atos executórios necessários para caracterizar a tentativa dos crimes. O ministro aplicou rigorosamente a distinção clássica entre iter criminis interno (cogitação) e externo (execução).

3. Liberdade de expressão versus narrativa subversiva

Fux defendeu que as críticas de Bolsonaro ao sistema eleitoral constituíam exercício legítimo da liberdade de expressão. Para o ministro, “a simples defesa da mudança do sistema de votação não pode ser considerada narrativa subversiva”, caracterizando a postura presidencial como de “boa-fé” para “esclarecer e aperfeiçoar o sistema eletrônico de votação”.

Absolvição específica por crime

Organização criminosa: Fux fundamentou a absolvição na ausência de estrutura organizacional típica do delito, interpretando que não houve formação de “entidade autônoma com processos decisórios próprios”. Considerou que as reuniões constituíram atos políticos dentro das prerrogativas presidenciais.

Abolição do Estado Democrático: Baseou a absolvição na ausência de violência ou grave ameaça específica, interpretando que as críticas ao sistema eleitoral constituem exercício legítimo da liberdade de expressão.

Golpe de Estado: Fundamentou que “as condutas praticadas durante o mandato presidencial não podem configurar” este crime, interpretando que discussões sobre medidas constitucionais não caracterizam tentativa de golpe.

Danos de 8 de janeiro: Absolveu por ausência de nexo causal, argumentando que “o trágico episódio foi mais reflexo da insatisfação daqueles que estavam lá do que reflexo de um golpe planejado”.

Carmen Lúcia confirma a maioria condenatória

Fundamentos do voto decisivo

A Ministra Carmen Lúcia seguiu integralmente o voto do relator Alexandre de Moraes, consolidando a maioria condenatória. Seus fundamentos principais incluíram:

Caracterização da organização criminosa

Carmen Lúcia considerou amplamente demonstrada a associação estruturada de oito pessoas durante período superior a 18 meses, com divisão clara de tarefas e finalidade criminosa específica. A ministra enfatizou que o caráter “armado” não exige emprego efetivo de armas, mas sim potencial armamentício evidenciado pela tentativa de envolvimento das Forças Armadas.

Crimes contra a segurança nacional

Para os crimes de abolição do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado, Carmen Lúcia destacou que a legislação pune igualmente a tentativa, considerando que os atos executórios foram plenamente demonstrados desde 2021, com escalada progressiva até janeiro de 2023.

A ministra foi enfática ao rejeitar a tese de que discussões sobre medidas constitucionais excluiriam a tipicidade dos crimes, considerando que o contexto fraudulento e a instrumentalização de institutos constitucionais para fins antidemocráticos configuram claramente os tipos penais.

Responsabilidade pelos eventos de 8 de janeiro

Carmen Lúcia estabeleceu nexo causal direto entre a conduta de Bolsonaro como líder da organização criminosa e os eventos de 8 de janeiro de 2023, rejeitando a tese de que os atos foram espontâneos e caracterizando-os como resultado previsível da coordenação criminosa.

Quadro comparativo: maioria condenatória versus divergência absolvidora

CrimeMaioriaDivergência (Fux)
Organização criminosaEstrutura demonstrada com liderança inequívoca de BolsonaroAusência de entidade autônoma; atos políticos legítimos
Abolição do Estado DemocráticoAtos executórios evidentes; violência moral configuradaExercício de liberdade de expressão; ausência de violência
Golpe de EstadoTentativa caracterizada; pressão sobre militaresCogitação apenas; medidas constitucionais legítimas
Dano qualificadoNexo causal direto; coordenação criminosaMovimento espontâneo; ausência de responsabilidade
Deterioração patrimônioResultado previsível da organizaçãoSem participação direta; falta nexo causal

Conclusão: aguardando o voto final

O julgamento da AP 2668 já representa marco histórico na aplicação dos crimes contra a segurança nacional no direito brasileiro. A formação da maioria condenatória com o voto de Carmen Lúcia estabelece precedente fundamental sobre a responsabilização penal de autoridades por ataques coordenados contra a ordem democrática.

O resultado final ainda depende do voto do Ministro Cristiano Zanin, que poderá confirmar a condenação (caso acompanhe a maioria) ou alterar o placar para 3×2, situação que abriria possibilidade para a interposição de embargos infringentes quanto ao mérito da absolvição ao Plenário do STF.


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