STF admite posse de candidatos condenados criminalmente em cargo público: direito de acesso aos cargos públicos elevado ao extremo ou justiça?

STF admite posse de candidatos condenados criminalmente em cargo público: direito de acesso aos cargos públicos elevado ao extremo ou justiça?

Sou o professor Rodolfo Penna, procurador do Estado de São Paulo e professor de Direito Administrativo do Estratégia Carreiras Jurídicas e trouxe um assunto recente para reflexão: STF admite posse de candidatos condenados criminalmente em cargo público: direito de acesso aos cargos públicos elevado ao extremo ou justiça?

O Supremo Tribunal Federal decidiu que os condenados aprovados em concursos públicos podem ser nomeados e empossados, desde que:

(1) não haja incompatibilidade entre o cargo a ser exercido e o crime cometido;

(2) nem conflito de horários entre a jornada de trabalho e o regime de cumprimento da pena.

RE 1282553, Tema 1.190, julgado em 4/10/2023

O tema é afeto ao princípio do amplo acesso aos cargos públicos e à previsão de requisitos para a posse.

Princípio do amplo acesso aos cargos públicos

O art. 37, I, da CF estabelece o princípio da ampla acessibilidade aos cargos públicos:

I – os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei;

Neste sentido, o ingresso nos cargos públicos não pode sofrer restrições sem razoabilidade pela Administração Pública. Os requisitos necessários para se tornar servidor público devem ser apenas aqueles previstos na constituição e outros instituídos por lei, desde que guarde pertinência com a natureza e complexidade do cargo ou emprego público e seja razoável, com a finalidade de atender aos princípios da Administração Pública.

Por este motivo, é inconstitucional qualquer norma que restrinja ou frustre o amplo acesso aos cargos ou empregos públicos. Além disso, não é válida a imposição de requisito por ato normativo infralegal.

Os requisitos existentes no ordenamento jurídico brasileiro podem ser resumidos da seguinte forma, sem prejuízo da existência de outros relacionados a cargos específicos, em virtude de suas peculiaridades:

  • Nacionalidade brasileira: o art. 37, I, CF prevê que o amplo acesso aos cargos e empregos públicos pertence aos brasileiros que preencham os requisitos, não fazendo distinção quanto ao brasileiro nato e naturalizado. Os únicos cargos que não podem ser preenchidos por brasileiros naturalizados são aqueles em que a constituição faz expressa restrição (art. 12, §3º, CF).

Por outro lado, previu que o acesso aos cargos e empregos públicos pelos estrangeiros deve ocorrer na forma da lei. O acesso pelos brasileiros é norma de eficácia contida, enquanto, em relação aos estrangeiros, é norma de eficácia limitada à edição de lei.

Assim, os estrangeiros somente terão acesso a cargos ou empregos públicos se houver lei autorizando e estabelecendo os requisitos. Neste sentido, em âmbito federal, o art. 5º, §3º, da lei 8.112/90 previu que “as universidades e instituições de pesquisa científica e tecnológica federais poderão prover seus cargos com professores, técnicos e cientistas estrangeiros, de acordo com as normas e os procedimentos desta Lei.”

Quanto às demais entidades e cargos ou empregos públicos, é necessária lei específica autorizando o acesso por estrangeiros.

  • Gozo dos direitos políticos;
  • Quitação com as obrigações militares;
  • Nível de escolaridade exigida pelo cargo ou emprego público;
  • Aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos: exigência realizada no art. 37, II, da CF, a qual estudaremos detalhadamente no próximo tópico.

Outros requisitos podem ser previstos nas leis dos respectivos Entes Federados, bem como nas leis específicas das diversas carreiras da Administração Pública, desde que guardem pertinência com as atribuições do cargo e não restrinjam, de forma irrazoável, o acesso aos cargos públicos.

O caso julgado

No recurso julgado, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) contestava decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) que admitiu a investidura no cargo de auxiliar de indigenismo de um candidato aprovado em concurso que estava em liberdade condicional. Entre outros pontos, a Funai argumentava que o Regime Jurídico Único (Lei 8.112/1990) exige o pleno gozo dos direitos políticos como requisito para a investidura.

O ministro Alexandre de Moraes explicou que a suspensão dos direitos políticos em caso de condenação criminal não alcança direitos civis e sociais.

Prevaleceu o fundamento de que deveria ser observado o

  1. Respeito aos princípios da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho (Constituição Federal, artigo 1°, incisos III e IV); e
  2. O dever do Estado em proporcionar as condições necessárias para harmônica integração social do condenado, objetivo principal da execução penal, nos termos do artigo 1° da Lei de Execuções Penais (Lei 7.210/84).

Admitir entendimentos em sentido contrário, segundo a corte, seria conferir à banca examinadora o poder de aplicar sanção maior que a determinada em lei penal.

Isto porque, até mesmo condenação penal transitada em julgado não resulta necessariamente na perda do cargo público – art. 92 do Código Penal.

O início do efetivo exercício do cargo ficará condicionado ao regime da pena ou à decisão judicial do Juízo de Execuções, que analisará a compatibilidade de horários.

Outros casos semelhantes

Esse entendimento está de acordo com outros entendimentos do STF sobre temas semelhantes, especialmente a impossibilidade de restrição à participação em concursos públicos, salvo em casos excepcionais:

Teses de repercussão geral (RE 560900):

  1. “Sem previsão constitucional adequada e instituída por lei, não é legítima a cláusula de edital de concurso público que restrinja a participação de candidato pelo simples fato de responder a inquérito ou ação penal”.
  2. É possível a eliminação de candidato condenado criminalmente por sentença transitada em julgado ou por órgão judicial colegiado, desde que o crime cometido seja incompatível com as atribuições e natureza do cargo, independentemente da existência de lei neste sentido.3)

Por exemplo, o cometimento de um crime de trânsito, como regra, não é incompatível com o exercício de um cargo de natureza meramente administrativa, mas é incompatível com o exercício do cargo de agente de fiscalização de trânsito.

  • Alguns cargos públicos que podem exigir um escrutínio mais rigoroso, como as carreiras da Magistratura, das funções essenciais à justiça e as carreiras relacionadas à segurança pública. Porém, neste caso, não decorre diretamente da moralidade, mas exige a edição de uma lei.

Vale lembrar que os parâmetros acima não impedem a eliminação de candidato que não comparece a etapas do certame ou ao exercício do cargo, em razão de obrigações judiciais impostas no processo penal (como a prisão preventiva, por exemplo).

Relativamente ao servidor público preso preventivamente, a Corte Suprema já destacou que não é possível o desconto da remuneração, haja vista o princípio da não culpabilidade e por se tratar de uma medida cautelar, e não de condenação definitiva.

O servidor público que é preso preventivamente ou em flagrante delito evidentemente deixa de exercer as suas atribuições no durante a restrição de sua liberdade. Diante dessa possibilidade, alguns Estados editaram leis prevendo o desconto da remuneração destes servidores pelos dias em que estiveram reclusos. Lei do Estado do Pará previa ainda que o servidor que respondesse a processo criminal seria afastado e perceberia apenas dois terços de sua remuneração[1].

Todas essas disposições foram julgadas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal. Prevaleceu no entendimento da corte os princípios constitucionais da presunção de inocência e da irredutibilidade dos vencimentos:

1. A jurisprudência dessa Corte é pacífica no sentido de que não é recepcionada pela Constituição Federal norma legal que consigna a redução de vencimentos de servidores públicos que respondam a processo criminal. 2. Ofensa aos arts. 5º, LIV, LV e LVII, e 37, XV, da Constituição Federal, os quais abarcam os Princípios da Presunção da Inocência, da Ampla Defesa e da Irredutibilidade de Vencimentos. Precedentes: RE 482.006, Rel. Min. Ricardo Lewandowski; ARE-AgR 776.213, Rel. Min. Gilmar Mendes; ARE 1.084.386/SP, Rel. Min. Luiz Fux; ARE 1.063.064/SP, Rel. Min. Marco Aurélio; ARE 1.017.991/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski; ARE 1.089.248/SP, de minha relatoria. 3. Ação Direta de Inconstitucionalidade procedente.

(ADI 4736, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 05/11/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-257  DIVULG 25-11-2019  PUBLIC 26-11-2019)

E ainda:

(…) 1. A jurisprudência da Corte fixou entendimento no sentido de que o fato de o servidor público estar preso preventivamente não legitima a Administração a proceder a descontos em seus proventos.

2. O reconhecimento da legalidade desse desconto, a partir do trânsito em julgado de eventual decisão condenatória futura, constitui inovação recursal deduzida em momento inoportuno.

3. Agravo regimental não provido.

(AI 723284 AgR, Relator: Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, julgado em 27/08/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-210 Divulg 22-10-2013 PUBLIC 23-10-2013)

Também é inconstitucional – por violar o devido processo legal (CF/1988, art. 5º, LIV) e o princípio da não culpabilidade (CF/1988, art. 5º, LVII) — norma estadual que prevê a supressão remuneratória de policial investigado em sede de sindicância. Não obstante, o afastamento do acusado deve ser analisado à luz do caso concreto, com observância às garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa (CF/1988, art. 5º, LV)[2].


[1] Lei Estadual n. 5810/94 do Pará: “Art. 29. – O servidor preso em flagrante, pronunciado por crime comum, denunciado por crime administrativo, ou condenado por crime inafiançável, será afastado do exercício do cargo, até sentença final transitada em julgado.  § 1º Durante o afastamento, o servidor perceberá dois terços da remuneração, excluídas as vantagens devidas em razão do efetivo exercício do cargo, tendo direito à diferença, se absolvido.”

[2] ADI 2.926/PR, relator Ministro Nunes Marques, julgamento virtual finalizado em 17.3.2023.

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