As violações sistêmicas no sistema carcerário e a ADPF 347

As violações sistêmicas no sistema carcerário e a ADPF 347

Sou o professor Allan Montoni Joos, defensor Público do Estado de Goiás, professor universitário e de pós-graduação, pós-graduado em Direito Público, autor e palestrante, e coordenador no Estratégia Carreira Jurídica.

No último dia 04 de outubro o Supremo Tribunal Federal decidiu de forma definitiva a ADPF 347 e reconheceu a violência massiva de direitos fundamentais no sistema prisional brasileiro. Para quem não se recorda, a referida ADPF é aquela que já havia reconhecido, provisoriamente, o “Estado de Coisas Inconstitucional” dos presídios brasileiros.

São vários os pontos que foram deliberados pelo STF. Em síntese, a decisão, além de reconhecer o estado de coisas inconstitucional, determinou que a União, Estados e Distrito Federal, em conjunto com o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Conselho Nacional de Justiça (DMF/CNJ), deverão elaborar planos que serão homologados pelo STF, no prazo de 06 meses, voltados para o controle da população carcerária, da má qualidade das vagas existentes e da entrada e saída dos presos.

Além disso, decidiu-se que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) realizará um estudo e regulamentará a criação de um número de vagas de varas de execução penal que seja proporcional ao número de varas criminais e ao quantitativo de pessoas presas.

Estado de Coisas Inconstitucional do sistema carcerário brasileiro

            O denominado Estado de Coisas Inconstitucional ocorre quando se percebe um quadro de violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais, que é causado pela omissão persistente e reiterada das autoridades públicas, de modo que somente a atuação de todas as autoridades, poderes e órgãos responsáveis pela adoção de uma determinada política pública pode minimizar os seus danos.

            No caso do sistema prisional brasileiro, é evidente que a realidade vivida na grande maioria dos presídios nacionais indicam um grave estado de violação de direitos fundamentais, com a consequência de penas que vão muito além da mera privação da liberdade, sendo verdadeiras penas cruéis e desumanas.

            A inércia dos Poderes Executivo, Legislativo e do próprio Poder Judiciário, já que ausentes medidas administrativas, legais e orçamentárias, com uma cultura falha e desestruturada de encarceramento em massa de determinados grupos da sociedade (normalmente os mais pobres) representa uma verdadeira “falha estrutural” que representa uma grave ofensa aos direitos das pessoas presas e perpetua a característica da desumanidade das penas cumpridas no Brasil.

            O referido estado de coisas inconstitucional já havia sido reconhecido em medida cautelar aprovada em plenário, na mesma ADPF 347, ainda no ano de 2015, ocasião em que se determinou a criação das audiências de custódia e a destinação do Fundo Penitenciário Nacional para utilização na finalidade para a qual foi criado.

            Como se pode observar, a implementação das audiências de custódia repercutiu na sua positivação no Código de Processo Penal, a partir de 2020, por meio do denominado “Pacote Anticrime” que, além de outras inovações, implementou o denominado “juiz das garantias”. Este último instituto, questionado também perante o STF, ainda sequer foi implementado, apesar de ter tido a sua constitucionalidade reconhecida nos últimos dias pela Suprema Corte.

            Mesmo assim, apesar dos avanços legislativos e da implementação das audiências de custódia, as violações persistiram e, agora, com a votação definitiva, como mencionado, o STF determinou a elaboração de um plano para melhora do sistema prisional.

A dura realidade das prisões brasileiras

            Em nosso país, diversos fatores discriminatórios repercutem no sistema carcerário brasileiro, fazendo com que a predominância do público encarcerado seja de pessoas negras, pobres e de baixa escolaridade.

            Além disso, a situação desumana que aflige as pessoas privadas de liberdade nunca foi desconhecida. A superlotação, a ausência de fornecimento de itens básicos de higiene, a ausência de absorventes para as mulheres e os constantes relatos de tortura são apenas a ponta do iceberg de violações existentes em nosso sistema prisional.

            As estatísticas demonstram que quase 70% das pessoas presas são pessoas negras. Além disso, mais de 90% da população sequer possui o ensino médio completo e a grande maioria são jovens e que não possuía um emprego formal quando privados de liberdade (Fonte: SISDEPEN e relatórios do Infopen). Tais dados demonstram não só a política de encarceramento, mas toda a complexidade do sistema penal brasileiro deve ser revista.

Próximos passos

            Conforme já mencionado, o Supremo Tribunal Federal determinou à União, Estados e Distrito Federal a elaboração, em seis meses, de um plano que vise à melhora do sistema carcerário.

            Além disso, a necessária ampliação das Varas de Execução Penal poderá melhorar a eficiência do Poder Judiciário, evitando que pessoas ficam presas além do tempo, ou que decisões equivocadas as levem ao encarceramento.

            Fato é que, a nosso ver, não bastam apenas as referidas determinações pelo Supremo Tribunal Federal. É necessário que o avanço parta de todos os setores da sociedade, que vai desde a inovação legislativa, até a adoção de políticas públicas preventivas que diminuam as desigualdades sociais. A mudança da cultura das agências de controle também é fundamental para evitar que a polícia, o Poder Judiciário e até mesmo o Poder Legislativo insistam na criminalização de determinados grupos da sociedade.

            O que nos resta é aguardarmos e dar a nossa contribuição para que essa situação se resolva, ou, ao menos, se minimize e a cultura do encarceramento em massa de determinados grupos da sociedade seja revista em nosso país.

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