Responsabilização na tragédia aérea da Voepass
Foto: Claudia Vitorino/ Arquivo pessoal

Responsabilização na tragédia aérea da Voepass

Responsabilização pelos danos decorrentes da tragédia aérea que matou 62 pessoas em São Paulo.

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Entenda o caso

O Brasil acompanhou atônito o desastre aéreo que acabou matando 62 pessoas na cidade de Vinhedo/SP. Um avião da empresa VOEPASS, antiga Passaredo, com 58 passageiros e quatro tripulantes, totalizando 62 pessoas a bordo, caiu em um condomínio, e não houve sobreviventes.

É o acidente aéreo com o maior número de vítimas desde a tragédia da TAM, em 2007, no Aeroporto de Congonhas, quando houve 199 mortos.

Responsabilização, atr72

De acordo com a companhia aérea dona da aeronave, as vítimas estavam em um avião turboélice de passageiros, modelo ATR-72, que saiu de Cascavel/PR, com destino a Guarulhos/SP.

Segundo a Força Aérea Brasileira (FAB), o voo ocorreu dentro da normalidade até as 13h20, mas a partir das 13h21 a aeronave não respondeu às chamadas da torre de São Paulo, bem como não declarou emergência ou reportou estar sob condições meteorológicas adversas. “A perda do contato radar ocorreu às 13h22“.

A Voepass afirmou, em nota, que o avião que caiu estava apto a voar e sem restrições. O CENIPA, órgão da aeronáutica responsável pela investigação do acidente, disse em coletiva que ainda é prematuro apontar as causas do acidente. Porém, a causa mais provável, segundo especialistas, é a hipótese de acúmulo de gelo nas asas da aeronave.

O avião entrou em estol, naquilo que chamam de queda em “parafuso chato“, quando avião perde totalmente sustentação e cai na vertical.

O perito e especialista em acidentes aéreos Roberto Peterka declarou:

“Alguma coisa deve ter acontecido e provável é a formação de gelo que acumula nas asas. E aí, perde o perfil aerodinâmico de sustentação e cai. Ele teria que ter mais altura para conseguir recuperar a aerodinâmica da asa para conseguir continuar no seu voo. Ele tem todos os equipamentos para isso. Isso tudo a investigação vai ver, esses alertas, velocidade que estava. A troca de informações na cabine. Tudo isso vai juntar para identificar quais foram os fatores que provocaram o acidente”.

Declarações dos órgãos

A ANAC informou que o avião se encontrava em condição regular para operar, com certificados de matrícula e de aeronavegabilidade válidos, além dos tripulantes com documentação em dia.

A Polícia Federal instaurou inquérito para investigar o acidente. A corporação montou um gabinete de crise na casa de um morador dentro do condomínio onde houve a tragédia.

A Defesa Civil de São Paulo confirmou que todos os 62 corpos das vítimas do acidente aéreo em Vinhedo já foram retirados dos destroços da aeronave, sendo 34 corpos masculinos e 28 femininos. Todos receberam encaminhamento para a unidade central do Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo para a identificação e liberação às famílias.

Análise jurídica

Agora vamos entender a repercussão jurídica dessa tragédia, abordando a responsabilização pelos danos causados.

Investigações

A investigação do acidente, que será responsável por indicar as causas, se houve culpados, se houve falha da companhia, se houve crime, ficará a cargo do CENIPA e da Polícia Federal.

CENIPA -> É o órgão do Comando da Aeronáutica responsável pelo Sistema de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (SIPAER). As investigações têm embasamento no Anexo 13 à Convenção Internacional de Aviação Civil da ICAO – International Civil Aviation Organization. Esse último órgão é referência mundial e normatiza as leis sobre aviação civil internacional.

A Polícia Federal possui competência para a apuração de eventuais crimes cometidos no contexto do desastre aéreo, haja vista a previsão do artigo 109, IX, da CF:

CF/88

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

...

IX - os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada a competência da Justiça Militar;

O Ministério Público do Trabalho (MPT) também abriu inquérito:

“É evidente a lesão a direitos sociais indisponíveis ligados à segurança no meio ambiente de trabalho, o que enseja a atuação do MPT no caso em questão para verificar a extensão dos fatos denunciados, apurar as devidas responsabilidades e adotar medidas que contribuam para obstar novos acidentes como o ora investigado”, comunicou o MPT.

Responsabilização

Temos a possibilidade de aplicação da tríplice responsabilização: criminal, administrativa e civil (reparação de danos). Vejamos cada uma em detalhes:

Responsabilidade criminal -> Existem duas espécies de condutas delitivas: os crimes propriamente aeronáuticos (se dão pela tutela da atividade aeronáutica, como por exemplo a segurança da aeronavegação) e os crimes impropriamente aeronáuticos (execução de delito comum, que não interfere na segurança da aeronave).

No Código Penal temos o artigo 261, que trata do crime de atentado contra a segurança do transporte aéreo.

Art. 261 - Expor a perigo embarcação ou aeronave, própria ou alheia, ou praticar qualquer ato tendente a impedir ou dificultar navegação marítima, fluvial ou aérea:

Pena - reclusão, de dois a cinco anos.

§ 1º - Se do fato resulta naufrágio, submersão ou encalhe de embarcação ou a queda ou destruição de aeronave:

Pena - reclusão, de quatro a doze anos.

§ 2º - Aplica-se, também, a pena de multa, se o agente pratica o crime com intuito de obter vantagem econômica, para si ou para outrem.

§ 3º - No caso de culpa, se ocorre o sinistro:

Pena - detenção, de seis meses a dois anos.

As investigações realizadas pela Polícia Federal e pelo CENIPA podem indicar se houve ou não o cometimento de crimes, com a consequente responsabilização pelos órgãos competentes.

Responsabilidade administrativa -> As investigações também indicarão se houve ou não o descumprimento de normas administrativas relacionadas à segurança e operação do voo, em especial normas da ANAC e do CENIPA, como determina o artigo 288 do Código Brasileiro de Aeronáutica – CBA (Lei nº 7.565/86):

Art. 288. A autoridade de aviação civil é competente para tipificar as infrações a este Código ou à legislação que dele decorra, bem como para definir as respectivas sanções e providências administrativas aplicáveis a cada conduta infracional, observado o processo de apuração e de julgamento previsto em regulamento próprio.

As sanções administrativas aplicáveis às infrações administrativas envolvendo o transporte aéreo são (artigo 289, do CBA):

I - multa;

II - suspensão de certificados, de licenças ou de autorizações;

III - cassação de certificados, de licenças ou de autorizações;

IV - detenção, interdição ou apreensão de aeronave, ou do material transportado.

Responsabilidade civil (reparação de danos) -> Tão importante quanto punir os infratores na seara criminal e administrativa é responsabilizá-los pela reparação dos danos causados às vítimas.

Diferentes normas regulam a responsabilidade civil das companhias aéreas, em caso de acidente, com destaque para o Código de Defesa do Consumidor (CDC). Tal dispositivo estabelece a responsabilidade objetiva do fornecedor de serviços pelos danos causados aos consumidores, independentemente de culpa, de acordo com o artigo 14.

Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

§ 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar...

O Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei n.º 7.565/1986) também trata da responsabilidade do transportador, especificando que ele deve indenizar os danos decorrentes de morte ou lesão dos passageiros, conforme o artigo 256.

Art. 256. O transportador responde pelo dano decorrente:

I - de morte ou lesão de passageiro, causada por acidente ocorrido durante a execução do contrato de transporte aéreo, a bordo de aeronave ou no curso das operações de embarque e desembarque...

§ 1° O transportador não será responsável:

I - no caso do inciso I do caput deste artigo, se a morte ou lesão resultar, exclusivamente, do estado de saúde do passageiro, ou se o acidente decorrer de sua culpa exclusiva...

§ 2° A responsabilidade do transportador estende-se:

a) a seus tripulantes, diretores e empregados que viajarem na aeronave acidentada, sem prejuízo de eventual indenização por acidente de trabalho;

b) aos passageiros gratuitos, que viajarem por cortesia.

Direito dos passageiros

A Resolução Anac n.º 400/2016 detalha os direitos dos passageiros e as obrigações das companhias em situações de sinistros.

Internacionalmente, a Convenção de Varsóvia e a Convenção de Montreal estabelecem normas para o transporte aéreo global. Isso inclui limitações de responsabilidade e procedimentos para compensação de vítimas e familiares. Porém, o Judiciário, em especial o STJ, tem afastado essas limitações em favor da aplicação do CDC, norma mais protetiva.

Ainda para a Superior Corte de Justiça, as vítimas de acidentes aéreos localizadas em solo também podem ser consideradas consumidores por equiparação (bystanders). Assim as normas do CDC relativas a danos por fato do serviço também deveriam ser estendidas a elas. A decisão foi tomada no julgamento do REsp 1.281.090, que tratou do acidente com um Fokker 100 da TAM e da indenização às famílias vitimadas.

Didática a lição do STJ no REsp 1.984.282 (DJe 22/11/2022):

A teoria objetiva preceitua que a culpa não será elemento indispensável ou necessário para a constatação da responsabilidade civil, retirando o foco de relevância do culpado pelo dano para transferi-lo para o responsável pela reparação do dano. A preocupação imediata passa ser a vítima e o reequilíbrio do patrimônio afetado pela lesão. O fato danoso, e não o fato doloso ou culposo, desencadeia a responsabilidade…

A responsabilidade civil objetiva fundada no risco da atividade configura-se quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano causar a pessoa determinada um ônus maior do que aos demais membros da coletividade (atividade habitual que gere uma situação de risco especial)…

O Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA) disciplina as relações havidas na prestação daquele serviço e, nos termos da jurisprudência do STJ, a responsabilidade do transportador aéreo é, em regra, objetiva…

O CBA assevera que os exploradores da aeronave serão os responsáveis pelos danos diretamente ligados ao exercício da atividade de transporte aéreo (art. 268)…

O terceiro vítima de acidente aéreo, tripulante ou em superfície, e o transportador são, respectivamente, consumidor por equiparação e fornecedor…

A responsabilidade pela prestação defeituosa do transporte aéreo, porque ancorada também nas normas de direito consumerista, será solidariamente repartida entre todos os fornecedores do serviço, no caso todos os que se enquadrarem no conceito de explorador e, por óbvio, desde que tenham sido demandados…

É expressamente vedada a denunciação da lide nas ações derivadas de relações de consumo (art. 88 do CDC) 15. A revisão da indenização por danos morais apenas é possível na hipótese de o quantum arbitrado nas instâncias originárias se revelar irrisório ou exorbitante, sob pena de se contrariar o enunciado da Súmula n. 7 desta Corte.

Conclusão

Em suma, a responsabilidade civil decorrente de acidente aéreo, em nosso país, é:

  • Objetiva (teoria do risco da atividade);
  • Solidária entre os prestadores do serviço;
  • Regulada primordialmente pelo CDC;
  • Não permite, em regra, a denunciação da lide;
  • Induz, no âmbito processual, o litisconsórcio facultativo.

Portanto, os responsáveis pelo desastre aéreo em questão deverão reparar integralmente os danos causados às vítimas. Tais reparos são tanto os materiais quantos os morais, sejam essas vítimas os passageiros mortos, ou mesmo os prejudicados em solo.

Além disso, poderá haver a condenação no ressarcimento dos danos morais coletivos, haja vista o risco à segurança do meio ambiente do trabalho causado pelo trágico acidente.

O tema, apesar de envolver um fato lamentável, pode surgir em provas de direito civil, processo civil, direito aeronáutico ou direito do consumidor. Portanto, muita atenção!


Quer saber quais serão os próximos concursos?

Confira nossos artigos para Carreiras Jurídicas!

0 Shares:
Você pode gostar também