O caso
Arianny Rosa Pereira, uma jovem atendente de Goiânia, move uma ação de responsabilidade civil cumulada com indenização por danos materiais e morais contra a empresa de apostas online “Sports Entretenimento e Promoção de Eventos LTDA” (Esporte da Sorte), algumas instituições financeiras e três influenciadores digitais: Virgínia Fonseca, Deolane Bezerra e Luiz Carlos Ferreira dos Santos (conhecido como Carlinhos Maia).
A autora alega que, após assistir a vídeos e publicações desses influenciadores em suas redes sociais, foi induzida a participar de jogos de azar online na plataforma Esporte da Sorte. Os influenciadores, segundo a petição, promoviam esses jogos de forma enganosa, prometendo ganhos rápidos e fáceis. Virgínia Fonseca, por exemplo, teria afirmado em seus stories que chegou a ganhar R$ 50.000,00 em questão de minutos.
Inicialmente, Arianny realizou apostas de valores baixos. Contudo, após perder R$ 6.000,00, uma quantia significativa para sua subsistência, ela entrou em um ciclo vicioso de tentativas de recuperar o dinheiro perdido. Influenciada pelas promessas de ganhos rápidos feitas pelos influenciadores e pela plataforma, Arianny continuou apostando, chegando a utilizar recursos provenientes de uma herança de seu pai, que necessitava do dinheiro para comprar medicamentos para uma doença cardíaca.
Consequências
Ao final, Arianny alega ter perdido um total de R$ 322.750,00 nas apostas. As consequências não foram apenas financeiras: a autora sofreu uma crise de ansiedade com fortes convulsões, ficando internada por dois dias. Além disso, enfrentou momentos de extrema angústia que a levaram a tentar tirar a própria vida, necessitando de intervenção imediata de profissionais de saúde mental.
A autora argumenta que foi vítima de publicidade enganosa e práticas abusivas, tanto por parte da plataforma de apostas quanto dos influenciadores.
Ela alega que a plataforma permite depósitos ilimitados, mas restringe os saques a R$ 15.000,00 por dia, caracterizando uma prática enganosa. Além disso, argumenta que os jogos oferecidos se enquadram na categoria de “jogos de azar“, os quais a legislação brasileira proíbe.
Arianny busca não apenas a restituição dos valores perdidos, mas também indenização por danos morais, alegando que sofreu graves prejuízos emocionais e psicológicos devido às práticas dos réus.
Em síntese, o caso levanta questões importantes sobre a responsabilidade civil dos influenciadores digitais, a regulamentação de jogos de azar online no Brasil e a proteção do consumidor no ambiente digital.
Aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor (CDC)
O primeiro ponto a considerar é se a relação entre os influenciadores digitais e seus seguidores pode se caracterizar como uma relação de consumo. O art. 3º do CDC define:
"Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços."
Perspectivas
O enquadramento dos influenciadores digitais como fornecedores, nos termos do art. 3º do CDC, é uma questão complexa e ainda em desenvolvimento na doutrina e jurisprudência brasileiras. Podemos analisar esta questão sob diferentes perspectivas:
a) Interpretação extensiva do conceito de fornecedor: o art. 3º do CDC define fornecedor de forma ampla, incluindo toda pessoa física ou jurídica que participa da cadeia de fornecimento de produtos ou serviços. Os influenciadores, ao promoverem produtos ou serviços em suas redes sociais, podem acabar sendo vistos como parte dessa cadeia, atuando na “distribuição” ou “comercialização” mencionadas no artigo.
b) Teoria finalista mitigada: embora os influenciadores não sejam os fornecedores diretos do produto ou serviço, eles desempenham um papel crucial na relação de consumo.
A teoria finalista mitigada, adotada pelo STJ em alguns casos, permite a aplicação do CDC a situações em que, mesmo não sendo o consumidor o destinatário final do produto/serviço, há uma situação de vulnerabilidade que justifica a proteção legal:
tem-se admitido a ampliação do conceito para abranger a pessoa física ou jurídica que, embora não seja a destinatária final do produto ou do serviço, esteja em situação de vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica em relação ao fornecedor; fenômeno que a doutrina convencionou chamar de teoria finalista mitigada ou aprofundada.
“(…) 1. A jurisprudência do c. Superior Tribunal de Justiça tem mitigado os rigores da Teoria Finalista, para abarcar no conceito de consumidor a pessoa física ou jurídica que, embora não seja tecnicamente a destinatária final do produto ou serviço, se apresenta em situação de vulnerabilidade em relação ao fornecedor. 2. Verificada a vulnerabilidade técnica da pessoa jurídica perante a instituição financeira, deve o caso ser analisado à luz das normas consumeristas.” (grifamos)
Acórdão 1673655, 07001019520228070020, Relator: ROBSON TEIXEIRA DE FREITAS, Oitava Turma Cível, data de julgamento: 7/3/2023, publicado no DJe: 20/3/2023.
Disponível em: <https://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/jurisprudencia-em-temas/cdc-na-visao-do-tjdft-1/definicao-de-consumidor-e-fornecedor/mitigacao-da-teoria-finalista-para-o-finalismo-aprofundado>.
c) Remuneração e profissionalização: os influenciadores digitais, em geral, recebem remuneração das empresas para promover produtos e serviços.
Assim, esta remuneração e a profissionalização da atividade de influenciador podem ser argumentos para enquadrá-los como fornecedores por equiparação, uma vez que eles obtêm vantagem econômica da relação de consumo.
d) Capacidade de influência: o próprio termo “influenciador” sugere a capacidade desses indivíduos de moldar as decisões de consumo de seus seguidores.
Logo, esta influência pode ser vista como uma forma de participação ativa na cadeia de fornecimento, justificando sua responsabilização nos termos do CDC.
Em síntese, pode-se argumentar que os influenciadores, ao promoverem produtos ou serviços, atuam como intermediários na relação de consumo, podendo terminar enquadrados como fornecedores por equiparação.
Esta interpretação encontra respaldo na doutrina e em decisões judiciais recentes.
Publicidade enganosa ou abusiva
O art. 37 do CDC estabelece:
"É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva. § 1° É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços."
A caracterização da publicidade realizada pelos influenciadores como enganosa ou abusiva, nos termos do art. 37 do CDC, pode envolver várias considerações:
a) Omissão de informações relevantes:
No caso em questão, os influenciadores aparentemente não alertaram sobre os riscos envolvidos nos jogos de azar online. Esta omissão pode ser considerada enganosa, pois priva o consumidor de informações essenciais para uma decisão consciente.
b) Promessas de ganhos irrealistas:
Ao garantir retornos financeiros expressivos ou rápidos, como no caso da influenciadora que afirmou ter ganhado R$ 50.000,00 em poucos minutos, os influenciadores podem estar incorrendo em publicidade enganosa. Tais afirmações criam expectativas irreais sobre as chances de sucesso nos jogos de azar.
c) Ausência de disclaimers adequados:
A falta de avisos claros sobre a natureza publicitária do conteúdo e sobre os riscos associados aos jogos de azar pode configurar publicidade enganosa por omissão.
d) Exploração da vulnerabilidade do público:
Muitos seguidores de influenciadores são jovens ou pessoas em situação de vulnerabilidade econômica. A promoção de jogos de azar para este público pode ser considerada abusiva, pois explora a inexperiência ou a necessidade do consumidor.
e) Naturalização de atividades potencialmente ilegais:
Ao promover jogos de azar online, que têm status legal questionável no Brasil (em empresas em que não há regulamentação e/ou sede no exterior), os influenciadores podem estar normalizando uma atividade potencialmente ilegal, o que poderia ser considerado uma forma de publicidade abusiva.
Responsabilidade civil solidária e objetiva
O art. 7º, parágrafo único, do CDC prevê:
"Tendo mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação dos danos previstos nas normas de consumo."
A aplicação do conceito de responsabilidade solidária aos influenciadores, com base no art. 7º, parágrafo único, do CDC, envolve as seguintes considerações:
a) Cadeia de fornecimento: os influenciadores podem ser vistos como parte da cadeia de fornecimento do serviço de jogos de azar online, atuando como promotores ou divulgadores do serviço.
b) Benefício econômico: o fato de os influenciadores obterem vantagem econômica com a promoção dos jogos de azar pode ser um argumento para incluí-los na responsabilidade solidária.
c) Capacidade de influência: a influência significativa que exercem sobre as decisões de consumo de seus seguidores pode justificar sua inclusão na responsabilidade solidária pelos danos causados.
d) Dificuldade de responsabilização da empresa principal: em casos onde a empresa de jogos online está sediada fora do país, a responsabilização dos influenciadores pode ser uma forma de garantir a reparação dos danos aos consumidores.
e) Jurisprudência em evolução: embora ainda não haja um consenso jurisprudencial sobre a responsabilidade solidária de influenciadores, alguns tribunais já têm se manifestado nesse sentido em casos análogos.
Por exemplo, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais decidiu:
“APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO – PROPAGANDA ENGANOSA E ABUSIVA – DANO MORAL CONFIGURADO – VALOR – PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE – É proibida a utilização de propaganda enganosa ou abusiva de acordo com o artigo 37, do Código de Defesa do Consumidor – A veiculação de campanha publicitária que induza o consumidor a adquirir produtos, sob a crença de que tem chances especiais de se tornar ganhador de concurso, caracteriza propaganda abusiva e enganosa por parte do fornecedor, ensejando a reparação dos danos morais sofridos em razão da falsa expectativa criada.” (TJ-MG – AC: 10708100037926001 MG, Relator: Aparecida Grossi, Data de Julgamento: 21/08/2020)
Além disso, temos outros casos de responsabilidade civil dos influenciadores, em especial, aplicando a “teoria da aparência” que, se o influencer divulga, há responsabilização:
RECURSO INOMINADO. CONSUMIDOR. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. Compra pela internet. Produto não entregue. Iphone. Negócio realizado através de mídia social. (…) Responsabilidade civil independente da criminal. Incidência do art. 935 do Código Civil. Legitimidade passiva. Réu influenciador digital que se declarou sócio da empresa tadizuera, além de ter se comprometido pessoalmente com o ressarcimento dos consumidores prejudicados. (…). Dever de ressarcimento. Valor comprovadamente pago e mercadoria não entregue. Sentença mantida. Recurso desprovido. (JECRS; RInom 5063213-27.2023.8.21.0001; Porto Alegre; Primeira Turma Recursal Cível; Rel. Juiz José Ricardo de Bem Sanhudo; Julg. 03/09/2024; DJERS 04/09/2024)
Aplicação da teoria da aparência. Divulgação da jornada realizada pela recorrente. Responsabilidade civil do influenciador digital. Recorrente que, ao efetuar a publicidade da viagem, avalizou o serviço. Recurso conhecido e desprovido. (JECPR; RInomCv 0031564-51.2019.8.16.0182; Curitiba; Quinta Turma Recursal dos Juizados Especiais; Relª Juíza Manuela Tallão Benke; Julg. 08/04/2021; DJPR 14/04/2021)
Por fim, o art. 6º, III, do CDC estabelece como direito básico do consumidor:
"a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;"
Os influenciadores, ao promoverem os jogos de azar, deveriam ter fornecido informações claras e adequadas sobre os riscos envolvidos. A omissão dessas informações pode ser considerada uma violação ao dever de informação.
Ademais, o art. 14 do CDC prevê:
"O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos."
Caso os influenciadores sejam considerados fornecedores por equiparação, sua responsabilidade seria objetiva, não dependendo da comprovação de culpa.
Conclusão
O caso de Arianny Rosa Pereira contra a empresa de apostas online e os influenciadores digitais levanta questões cruciais sobre a responsabilidade civil no ambiente digital, especialmente no contexto da promoção de jogos de azar online.
A análise apresentada sugere que há fundamentos jurídicos sólidos para responsabilizar os influenciadores digitais neste caso, baseando-se principalmente em:
- A possibilidade de enquadrar os influenciadores como fornecedores por equiparação, conforme uma interpretação extensiva do art. 3º do CDC e a aplicação da teoria finalista mitigada.
- A caracterização da publicidade realizada como potencialmente enganosa ou abusiva, violando o art. 37 do CDC, devido à omissão de informações sobre riscos e à criação de expectativas irrealistas de ganhos.
- A aplicação da responsabilidade solidária prevista no art. 7º, parágrafo único, do CDC, considerando os influenciadores como parte da cadeia de fornecimento do serviço.
- A violação do dever de informação estabelecido no art. 6º, III, do CDC, pela não divulgação adequada dos riscos associados aos jogos de azar.
- A possibilidade de aplicar a responsabilidade civil objetiva aos influenciadores, com base no art. 14 do CDC, caso sejam considerados fornecedores por equiparação.
A jurisprudência emergente, embora ainda não consolidada, tem demonstrado uma tendência a reconhecer a responsabilidade de influenciadores digitais em casos análogos, aplicando inclusive a teoria da aparência.
Evolução e fiscalização
Contudo, é importante ressaltar que este é um campo jurídico em evolução. A regulamentação da atuação de influenciadores digitais e da promoção de jogos de azar online no Brasil ainda está em desenvolvimento. Casos como o de Arianny podem servir como importantes precedentes para moldar a jurisprudência futura e possivelmente influenciar novas legislações sobre o tema.
Em última análise, este caso destaca a necessidade urgente de uma maior regulamentação e fiscalização das atividades de marketing digital, especialmente quando envolvem produtos ou serviços potencialmente prejudiciais como jogos de azar. Também evidencia a importância de educar tanto influenciadores quanto consumidores sobre suas responsabilidades e direitos no ambiente digital.
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