Prof. Gustavo Cordeiro
O sistema prisional brasileiro acaba de ganhar uma nova perspectiva sobre direitos das mulheres encarceradas. Em decisão histórica registrada no STJ Informativo 859/2025, a Terceira Seção reconheceu que a amamentação e os cuidados maternos podem ser considerados trabalho para fins de remição de pena. Esta mudança representa uma evolução fundamental na aplicação da Lei de Execução Penal com perspectiva de gênero, equiparando as responsabilidades maternas a atividades laborais tradicionais.
A decisão surge em um contexto onde as mulheres encarceradas enfrentavam desigualdades significativas no acesso à remição. Enquanto os homens presos conseguiam mais facilmente trabalhar e estudar para reduzir suas penas, as mães ficavam impossibilitadas de usufruir desses benefícios devido às responsabilidades com seus filhos pequenos dentro das unidades prisionais. O STJ identificou essa disparidade e decidiu corrigi-la através de uma interpretação extensiva da lei.
O caso concreto e a fundamentação da decisão
A questão chegou ao STJ através do HC 920.980-SP, relatado pelo Ministro Sebastião Reis Júnior, julgado em 13/8/2025. Uma mãe encarcerada na ala de amamentação de um presídio paulista pleiteava que o tempo dedicado aos cuidados com seu filho recém-nascido fosse computado como trabalho para fins de remição de pena.
A lógica jurídica da equiparação
O tribunal construiu sua fundamentação sobre três pilares interconectados que tornaram a decisão juridicamente sólida e socialmente necessária.
📙 Primeiro pilar: equiparação constitucional
O STJ destacou que o próprio constituinte originário equiparou o período de afastamento da mulher ao trabalho. O artigo 7º, XVIII da Constituição Federal assegura não apenas o emprego, mas o recebimento do salário durante os 120 dias após o nascimento. Se a Constituição considera a licença maternidade como período trabalhado, por que o sistema prisional trataria diferentemente?
📙 Segundo pilar: obrigações internacionais
O Brasil é signatário da Convenção Sobre os Direitos da Criança (Decreto 99.710/1990), cujo artigo 24 obriga o país a “adotar medidas apropriadas para assegurar a nutrição plena da criança, inclusive o aleitamento materno”. Reconhecer os cuidados maternos como trabalho para remição não é apenas uma questão de equidade – é cumprimento de obrigação internacional.
📙 Terceiro pilar: interpretação sistemática da LEP
O artigo 32 da Lei de Execução Penal determina que o trabalho deve ser atribuído “levando em conta a habilitação, condições pessoais e necessidades futuras” da pessoa presa. Para mães com filhos no estabelecimento prisional, suas condições pessoais incluem necessariamente as obrigações de cuidado com saúde, educação, alimentação e desenvolvimento da criança.
A questão da equidade de gênero no sistema prisional
A decisão do STJ vai muito além da simples aplicação de normas legais – representa o reconhecimento de uma desigualdade estrutural que vinha sendo ignorada pelo sistema de justiça criminal.
O problema: desigualdade no acesso à remição

Antes desta decisão, mulheres encarceradas enfrentavam dificuldades significativamente maiores para reduzir o tempo de cumprimento da pena. Enquanto os homens presos conseguiam trabalhar na cozinha, lavanderia, oficinas ou estudar regularmente, as mães ficavam impossibilitadas de participar dessas atividades devido às demandas do cuidado infantil.
Exemplo prático: Maria e João são condenados à mesma pena de 4 anos. João trabalha na marcenaria do presídio e consegue remir 1 dia a cada 3 dias trabalhados. Maria cuida de seu filho de 6 meses na ala de amamentação, mas não conseguia computar esse tempo para remição. Resultado: João cumpre menos tempo de pena que Maria, mesmo tendo cometido crime idêntico.
A solução: reconhecimento do trabalho materno
O STJ reconheceu que “emprestar ao termo trabalho, previsto no artigo 126 da LEP, interpretação extensiva para nele incluir os cuidados próprios da maternidade é essencial para garantir equidade entre os gêneros” no acesso à remição.
Esta interpretação se baseia no Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ, que orienta magistrados a considerar as desigualdades de gênero nos processos judiciais, visando decisões mais justas e equitativas.
A evolução jurisprudencial da remição
A decisão sobre amamentação não surge no vazio – ela é parte de uma evolução jurisprudencial consistente que vem ampliando as possibilidades de remição além das previsões literais da lei.
O precedente da leitura: Tema Repetitivo 1278
Simultaneamente ao caso da amamentação, o STJ julgou o Tema Repetitivo 1278, REsp 2.121.878-SP, relatado pelo Ministro Og Fernandes, julgado em 13/8/2025, fixando tese sobre remição pela leitura.
Tese firmada: "Em decorrência dos objetivos da execução penal, a leitura pode resultar na remição de pena, com fundamento no art. 126 da Lei de Execução Penal, desde que observados os requisitos previstos para sua validação, não podendo ser acolhido o atestado realizado por profissional contratado pelo apenado."
A lógica comum: interpretação extensiva favorável
Tanto a remição pela leitura quanto pela amamentação seguem a mesma lógica jurídica: o artigo 126 da LEP não especifica exaustivamente todas as modalidades de estudo ou trabalho. A jurisprudência tem flexibilizado essas regras para reconhecer atividades que, embora não expressas no texto legal, atendem aos objetivos de ressocialização.
Atividades já reconhecidas pela jurisprudência para remição:
- Leitura (Tema Repetitivo 1278)
- Artesanato (jurisprudência consolidada)
- Aprovação no ENEM (mesmo para quem já tem ensino superior – divergência entre 5ª e 6ª Turmas)
- Amamentação e cuidados maternos (nova decisão)
Questão de concurso comentada
(Defensoria Pública - 2025 - Simulada) Ana está cumprindo pena de 6 anos de reclusão em regime semiaberto e tem um filho de 8 meses que permanece com ela na ala de amamentação do estabelecimento prisional. Ela dedica diariamente 8 horas aos cuidados com a criança (alimentação, higiene, educação básica e acompanhamento médico). Com base na jurisprudência do STJ (Informativo 859/2025), assinale a alternativa CORRETA: A) Ana não tem direito à remição pelos cuidados maternos, pois a Lei de Execução Penal só prevê remição por trabalho remunerado e estudo formal B) Ana tem direito à remição pelos cuidados maternos, aplicando-se a proporção de 1 dia de remição a cada 3 dias de cuidados, por equiparação ao trabalho C) Ana só terá direito à remição se comprovar que os cuidados maternos constituem curso profissionalizante reconhecido D) Ana tem direito à remição apenas se cumprir simultaneamente outras atividades laborais ou educacionais E) A remição pelos cuidados maternos só se aplica ao regime fechado, não ao semiaberto
Gabarito: B.
Por que B está correta: O STJ no Informativo 859/2025 reconheceu que “a amamentação e os cuidados maternos são formas de trabalho” para fins de remição, mediante interpretação extensiva do art. 126 da LEP. Como se trata de equiparação ao trabalho, aplica-se a proporção tradicional de 1 dia de remição a cada 3 dias de atividade, conforme estabelece a lei para trabalho.
Por que as outras estão incorretas:
A) INCORRETA: O STJ expressamente rejeitou essa interpretação restritiva, reconhecendo que a interpretação extensiva é juridicamente válida e necessária para garantir equidade de gênero.
C) INCORRETA: Não há necessidade de formalização como curso profissionalizante. Os cuidados maternos são reconhecidos per se como atividade válida para remição.
D) INCORRETA: A remição pelos cuidados maternos é direito autônomo, não dependendo de cumulação com outras atividades (embora seja possível cumular, conforme §3º do art. 126).
E) INCORRETA: O art. 126 da LEP permite remição por trabalho tanto no regime fechado quanto semiaberto. A decisão não criou restrição específica por regime.
Estados de vulnerabilidade e proteções especiais
A decisão sobre remição pela amamentação não é isolada – ela se insere em um movimento jurisprudencial mais amplo de reconhecimento de direitos específicos de grupos vulneráveis no sistema prisional.
Mulheres encarceradas como grupo vulnerável
A Resolução CNJ 369/2021 já reconhecia que mulheres encarceradas, especialmente mães, constituem grupo vulnerável que merece proteções especiais. A decisão do STJ materializa esse reconhecimento através da ampliação dos direitos à remição.
Cálculo da remição para cuidados maternos
Com base na equiparação ao trabalho estabelecida pelo STJ, a cada 3 dias de cuidados maternos, a mãe terá direito a 1 dia de remição. Considerando que os cuidados com bebês são atividade contínua, praticamente todos os dias podem ser computados.
Exemplo de cálculo:
Mãe cuida do filho por 90 dias consecutivos = 30 dias de remição
Em 1 ano (365 dias de cuidados) = aproximadamente 121 dias de remição
Considerações finais: uma evolução necessária
A decisão do STJ no Informativo 859/2025 representa muito mais que uma simples ampliação dos casos de remição. É o reconhecimento de que o sistema de justiça criminal precisa considerar as especificidades de gênero para ser verdadeiramente equitativo.
Por décadas, mulheres encarceradas foram penalizadas duplamente: pela prática do crime e pela impossibilidade de reduzir suas penas devido às responsabilidades maternas. Esta decisão corrige uma injustiça histórica e alinha o sistema brasileiro com os melhores padrões internacionais de tratamento de mulheres privadas de liberdade.
Para os concurseiros, dominar essa jurisprudência significa compreender não apenas as regras técnicas da remição, mas a evolução do próprio conceito de justiça no século XXI. É entender que o Direito não é estático – ele evolui para ser mais justo, mais inclusivo, mais humano.
A remição pela amamentação não é apenas uma questão de execução penal – é uma questão de direitos humanos, de igualdade de gênero, de proteção à infância. É o Direito cumprindo sua função mais nobre: proteger os mais vulneráveis e garantir tratamento equitativo a todos os cidadãos, mesmo quando privados de liberdade.
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