Oruam vira réu por tentativa de homicídio contra policiais. Entenda como a segunda lei de Newton pode demonstrar dolo eventual no caso.
Professor Gustavo Cordeiro

Introdução: o caso que uniu física forense e direito penal
Na madrugada de 22 de julho de 2025, uma operação policial rotineira no bairro do Joá, Zona Oeste do Rio de Janeiro, transformou-se em um episódio que desafia os limites entre a arte urbana e o crime qualificado.
A Justiça fluminense aceitou, em 29 de julho, a denúncia do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) contra o rapper Mauro Davi dos Santos Nepomuceno, conhecido artisticamente como Oruam, e seu amigo Willyam Matheus Vianna Rodrigues Vieira, tornando-os réus por tentativa de homicídio qualificado contra policiais civis.
O caso ganhou contornos dramáticos quando, durante o cumprimento de um mandado de busca e apreensão contra um menor investigado por tráfico e roubo, os acusados teriam arremessado pedras contra os agentes policiais de uma altura de 4,5 metros, sendo que uma delas pesava aproximadamente 5 quilos. A perícia criminal identificou sete pedras lançadas, com massas variando entre 130 gramas e 4,85 quilos, confirmando que os objetos eram similares aos encontrados no jardim da residência do artista.
O MPRJ sustentou que “houve risco real de morte, já que os objetos poderiam atingir o crânio dos policiais”, fundamentando a denúncia não apenas em conceitos jurídicos tradicionais, mas também em princípios da física newtoniana que demonstram a potencialidade lesiva da conduta. Para candidatos a concursos jurídicos, este caso representa uma oportunidade singular de compreender como a interdisciplinaridade pode fortalecer a argumentação jurídico-penal, especialmente na comprovação do elemento subjetivo do tipo.
A tipificação e as qualificadoras
O Ministério Público enquadrou a conduta de Oruam e seu comparsa no artigo 121, § 2º, incisos I e III, combinado com o artigo 14, inciso II, do Código Penal.

A denúncia aponta para o homicídio qualificado pelo motivo torpe e pelo meio cruel, na modalidade tentada, imputando-se dolo eventual.
A qualificadora do motivo torpe foi reconhecida pela promotoria com base em elementos concretos do caso. Durante a ação, Oruam afirmou aos policiais ser “filho de Marcinho VP”, numa clara tentativa de intimidação por meio da associação com o crime organizado. Posteriormente, o artista utilizou suas redes sociais para desafiar abertamente as autoridades policiais, incitando violência contra os agentes.
O motivo torpe é aquele que revela especial repugnância, vileza ou imoralidade acentuada. No caso concreto, a tentativa de impedir uma diligência policial legítima através da violência, somada ao uso da suposta vinculação criminosa como forma de ameaça, configura a torpeza exigida pelo tipo penal qualificado. A conduta revela desprezo pela ordem jurídica e pelas instituições, caracterizando motivação especialmente reprovável.
O meio cruel: pedras de até 5 kg arremessadas de 4,5 metros de altura
A qualificadora do meio cruel encontra respaldo na natureza dos objetos utilizados e na forma de execução. O meio cruel é aquele que aumenta inutilmente o sofrimento da vítima ou revela brutalidade fora do comum.
O arremesso de pedras de grande porte (até 4,85 kg) de uma altura considerável (4,5 metros) contra pessoas sem proteção adequada configura meio que, além de potencialmente letal, poderia causar sofrimento desnecessário às vítimas.
A repetição da conduta, mesmo após os policiais buscarem abrigo, demonstra a crueldade na execução.
A compatibilidade entre dolo eventual e qualificadoras: análise jurisprudencial
A questão central que se apresenta é a possibilidade de haver homicídio qualificado praticado com dolo eventual.
Para as qualificadoras subjetivas como o motivo torpe, o Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento de que é perfeitamente possível tal combinação. Conforme decidido no REsp 1.601.276/RJ, da 6ª Turma, com relatoria do Ministro Rogerio Schietti Cruz, julgado em 13/06/2017:
"o fato de o réu ter assumido o risco de produzir o resultado morte (dolo eventual), não exclui a possibilidade de o crime ter sido praticado por motivo fútil, uma vez que o dolo do agente, direto ou indireto, não se confunde com o motivo que ensejou a conduta."
Para as qualificadoras objetivas como o meio cruel, encontramos divergência jurisprudencial.
A corrente mais recente do STJ, expressa no REsp 1.836.556-PR, julgado pela 5ª Turma sob relatoria do Ministro Joel Ilan Paciornik em 15/06/2021, admite a compatibilidade.
Segundo o tribunal:
"o dolo eventual no crime de homicídio é compatível com as qualificadoras objetivas previstas no art. 121, § 2º, III e IV, do Código Penal. As referidas qualificadoras serão devidas quando constatado que o autor delas se utilizou dolosamente como meio ou como modo específico mais reprovável para agir e alcançar outro resultado, mesmo sendo previsível e tendo admitido o resultado morte."
Existe, contudo, uma segunda corrente, adotada pelo STF e parte do STJ, que não admite tal compatibilidade para certas qualificadoras de meio. Argumenta-se que qualificadoras como meio cruel sugerem premeditação incompatível com o dolo eventual. O STF, no HC 111.442/RS, julgado pela 2ª Turma com relatoria do Ministro Gilmar Mendes em 28/8/2012, estabeleceu que certas qualificadoras objetivas exigem direcionamento específico da vontade.
No caso concreto de Oruam, a tendência é que prevaleça a primeira corrente, pois o agente escolheu deliberadamente utilizar pedras de grande porte como instrumento de agressão, configurando meio objetivamente cruel, independentemente de desejar diretamente a morte.
A segunda lei de Newton como prova do dolo eventual: quando a física encontra o direito
A fundamentação científica da acusação
O aspecto mais inovador da denúncia do MPRJ foi a utilização de princípios da física clássica para demonstrar objetivamente o risco de morte assumido pelos acusados.

A Segunda Lei de Newton (F = m·a) tornou-se protagonista na comprovação do elemento subjetivo do crime.
Os cálculos periciais
Considerando os dados do caso, com massa da pedra de 5 kg, altura da queda de 4,5 m e aceleração da gravidade de 9,8 m/s², os peritos realizaram cálculos fundamentais. Utilizando a equação da queda livre, determinaram que a velocidade de impacto seria de aproximadamente 9,4 m/s, equivalente a 33,8 km/h, mesmo sem qualquer impulso adicional.
Para o cálculo da força de impacto, considerando um tempo de desaceleração de 0,01 segundos, típico em impactos diretos, chegou-se a uma aceleração de 940 m/s². Aplicando a Segunda Lei de Newton, a força resultante seria de 4.700 Newtons.
A interpretação jurídico-pericial
Estudos biomecânicos estabelecem que o limiar de fratura óssea craniana varia entre 400 e 1.000 N. A força de 4.700 N é, portanto, 4 a 11 vezes superior ao necessário para causar lesões letais. Essa demonstração científica é fundamental para comprovar que os acusados, ao arremessarem objetos dessa magnitude de tal altura, não poderiam desconhecer o risco de morte.
O dolo eventual se caracteriza quando o agente representa a possibilidade de produção do resultado e, apesar disso, atua aceitando essa possibilidade. A física newtoniana, neste caso, não deixa margem para alegações de desconhecimento do risco. Qualquer pessoa com instrução básica pode compreender que uma pedra de 5 kg caindo de 4,5 metros de altura possui potencial letal.
Prisão preventiva: análise dos requisitos legais
A decretação e seus fundamentos
Ao receber a denúncia, a magistrada determinou a prisão preventiva de ambos os acusados. Oruam, que já se encontrava preso em Bangu 3, recebeu novo mandado de prisão, agora pelos fatos narrados na denúncia de tentativa de homicídio.
O Código de Processo Penal, em seu artigo 312, estabelece que a prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado.
No caso concreto, todos os requisitos foram preenchidos. A prova da existência do crime está consubstanciada nos laudos periciais, testemunhos policiais e vídeos gravados pelo próprio acusado. Os indícios suficientes de autoria decorrem da identificação visual, confissão parcial nas redes sociais e depoimentos colhidos. A garantia da ordem pública justifica-se pelo histórico criminal do acusado, que responde por outros sete crimes, além do desafio às autoridades nas redes sociais. Por fim, o risco à aplicação da lei penal evidenciou-se pela tentativa inicial de evasão.
O artigo 313, inciso I, do CPP admite a decretação da prisão preventiva nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 anos. A tentativa de homicídio qualificado possui pena máxima de 30 anos que, reduzida pelo mínimo legal da tentativa (1/3), ainda resulta em pena máxima de 20 anos, cumprindo amplamente o requisito legal.
Competência do Tribunal do Júri: a vis attractiva
A reunião dos processos
Oruam responde, além da tentativa de homicídio, por tráfico de drogas, associação para o tráfico, ameaça, lesão corporal, dano, resistência e desacato. A questão processual relevante é a determinação da competência para julgamento conjunto.
O Código de Processo Penal é cristalino em seu artigo 78, inciso I, ao estabelecer que no concurso entre a competência do júri e a de outro órgão da jurisdição comum, prevalecerá a competência do júri. Considerando que a tentativa de homicídio qualificado é crime doloso contra a vida, de competência constitucional do Tribunal do Júri conforme artigo 5º, XXXVIII, da Constituição Federal, todos os demais crimes conexos serão julgados pelo Conselho de Sentença, em aplicação do princípio da vis attractiva do Júri. Essa regra visa evitar decisões conflitantes e prestigiar a competência constitucional do Tribunal Popular.
Se o juiz sumariante, ao final da primeira fase do júri, entender admissível a acusação, pronunciará o acusado para que ele seja julgado pelo Tribunal do Júri, conforme dispõe o artigo 413, caput, do CPP:
"O juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação."
Ao final da sessão de julgamento do tribunal do júri, os jurados serão quesitados sobre todos os crimes, não apenas o homicídio, mas também os conexos, respondendo a uma série de quesitos para cada crime. O artigo 483, § 6º, do CPP estabelece que “havendo mais de um crime ou mais de um acusado, os quesitos serão formulados em séries distintas.”
Como o tema pode cair em concurso: questão comentada |
Questão (Estilo FGV – Caso Concreto): Durante operação policial para cumprimento de mandado de busca e apreensão, João, rapper conhecido nacionalmente, acompanhado de amigos, passa a arremessar pedras contra os policiais do alto de sua residência, situada a 5 metros do solo. Uma das pedras, pesando 4 kg, atinge de raspão o capacete de um dos agentes. Irritado com a resistência, João grava vídeos desafiando a polícia e afirmando ser “protegido do chefe do tráfico local”. A perícia demonstrou que a força de impacto das pedras seria suficiente para causar fraturas cranianas letais. O Ministério Público ofereceu denúncia por tentativa de homicídio qualificado pelo motivo torpe e meio cruel, com dolo eventual. Sobre o caso apresentado, assinale a alternativa correta: a) A conduta de João configura apenas o crime de resistência qualificada, pois o arremesso de pedras durante ação policial é absorvido pelo tipo penal específico que tutela a administração pública. b) Não é possível a imputação de homicídio qualificado com dolo eventual, pois as qualificadoras do motivo torpe e meio cruel exigem premeditação incompatível com a mera assunção do risco. c) A demonstração pericial sobre a força de impacto das pedras é irrelevante para a caracterização do dolo, que deve ser aferido exclusivamente por critérios subjetivos relacionados à vontade do agente. d) O crime deve ser tipificado como lesão corporal dolosa consumada, independentemente da potencialidade lesiva demonstrada pela perícia, aplicando-se o princípio da adequação social. e) A conduta configura tentativa de homicídio qualificado com dolo eventual, sendo a demonstração científica da potencialidade letal elemento objetivo que corrobora a assunção do risco pelo agente. Gabarito: Letra E Fundamentação: A alternativa E está correta. O STJ admite a compatibilidade entre dolo eventual e qualificadoras, especialmente as de natureza subjetiva como o motivo torpe, conforme REsp 1.601.276/RJ. A jurisprudência mais recente também tem admitido tal compatibilidade com qualificadoras objetivas quando o agente escolhe deliberadamente o meio empregado, como no REsp 1.836.556-PR. A demonstração pericial da potencialidade letal através de cálculos físicos constitui elemento objetivo fundamental para comprovar que o agente não poderia desconhecer o risco de morte, caracterizando a assunção desse risco que configura o dolo eventual. A alternativa A está incorreta pois o crime de resistência não absorve a tentativa de homicídio. A alternativa B contradiz a jurisprudência atual do STJ. A alternativa C ignora a relevância da prova pericial na demonstração do elemento cognitivo do dolo. A alternativa D aplica incorretamente o princípio da adequação social a conduta manifestamente criminosa. |
Conclusão: a física forense como aliada do direito penal
O caso Oruam representa um marco na utilização da interdisciplinaridade no Direito Penal brasileiro.
A aplicação da Segunda Lei de Newton para demonstrar objetivamente a potencialidade letal da conduta não apenas fortaleceu a acusação, mas estabeleceu um precedente importante sobre como as ciências exatas podem auxiliar na comprovação de elementos subjetivos do crime.
Para os candidatos a concursos jurídicos, este caso ilustra perfeitamente a evolução do Direito Penal moderno, que não mais se limita a análises puramente dogmáticas, mas busca na ciência subsídios para uma aplicação mais precisa e justa da lei penal. A física newtoniana, ao demonstrar que uma pedra de 5 kg arremessada de 4,5 metros gera força suficiente para matar, elimina qualquer alegação de desconhecimento do risco.
O Direito Penal do século XXI exige do operador jurídico não apenas o domínio da técnica legislativa e jurisprudencial, mas também a capacidade de dialogar com outras áreas do conhecimento. Afinal, como demonstrou o MPRJ neste caso, às vezes a melhor forma de provar o dolo eventual não está em tratados jurídicos, mas nas imutáveis leis naturais da física que governam nosso universo.
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