Prefeitura do Rio e as práticas religiosas de matriz africana no SUS
Foto: Maria Júlia Araújo/g1

Prefeitura do Rio e as práticas religiosas de matriz africana no SUS

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

A prefeitura do Rio de Janeiro, por meio de uma Resolução Conjunta da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Clima e da Secretaria Municipal de Saúde, detalhava o reconhecimento de manifestações da cultura popular dos povos tradicionais de matriz africana e unidades territoriais tradicionais como promotores de saúde e cura complementares e integrativos ao SUS.

Podemos citar pelo menos 10 fundamentos que serviram de base para essa resolução conjunta:

1º) Os princípios do SUS, especialmente a equidade, a integralidade e a transversalidade, e o dever de atendimento das necessidades e demandas em saúde dos Povos Tradicionais de Matriz Africana.

2º) A orientação estratégica nº 46 da Resolução nº 715/2023 do Conselho Nacional de Saúde, que reconhece as manifestações da cultura popular dos povos tradicionais de matriz africana e as Unidades Territoriais Tradicionais de Matriz Africana como equipamentos promotores de saúde e cura complementares do SUS.

3º) A orientação estratégica nº 47 da Resolução nº 715/2023 do Conselho Nacional de Saúde, que visa fortalecer o protagonismo popular nos territórios do SUS na perspectiva da promoção de Territórios Saudáveis e Sustentáveis visando a identificação e a superação de vulnerabilidades sanitárias, socioeconômicas e ambientais.

4º) As Práticas Integrativas e Complementares são um conjunto heterogêneo de práticas, produtos e saberes, agrupados pela característica comum de não pertencerem ao escopo dos saberes/práticas consagrados na medicina convencional.

5º) A Política Nacional de Promoção da Saúde, que tem por objetivo fomentar a qualidade de vida e reduzir vulnerabilidade e riscos à saúde relacionados aos seus determinantes e condicionantes - modos de viver, condições de trabalho, habitação, ambiente, educação, lazer, cultura, acesso a bens e serviços essenciais.

6º) O Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, que visa promover a saúde da população negra, priorizando a redução das desigualdades étnico-raciais, o combate ao racismo e à discriminação nas instituições e nos serviços do SUS.

7º) O ODS 18 - Igualdade Étnico-Racial, que visa eliminar o racismo e a discriminação étnico-racial contra povos indígenas, afrodescendentes e grupos populacionais afetados por múltiplas formas de discriminação, de acordo com a meta 07: assegurar o acesso à atenção de qualidade, não discriminatória aos povos indígenas e afrodescendentes, bem como o respeito às suas culturas e saberes ancestrais, garantindo o fortalecimento do sistema público de saúde.

8º) O Decreto Presidencial n. 6.040/2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.

9º) A inserção dos povos e comunidades tradicionais no 1º Plano Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional da cidade do Rio de Janeiro.

10º) As práticas e saberes tradicionais em saúde, a partir da sua relação com a natureza, nos territórios que habitam e usam, bem como a agricultura camponesa, ou seja, aquela que valoriza as diferentes identidades socioculturais das diversas comunidades, visando à produção para o autossustento e a comercialização de excedentes.

A resolução reconheceu as manifestações da cultura popular dos povos tradicionais de matriz africana e as unidades territoriais tradicionais de matriz africana (ilês, kwes, tendas, inzos, casas e afins) como equipamentos promotores de saúde e cura complementares e integrativos ao SUS.

Práticas incorporadas no SUS

Mas quais são as práticas religiosas de origem africana que foram incorporadas no SUS? Então vejamos:

a) Banhos de ervas/Maionga/Analeò/Tó: utilização de plantas ancestrais quinadas, maceradas ou fervidas com água, óleos essenciais e demais elementos, como comidas, especiarias, favas e pós de sorte.

b) Defumação/ Kufumala: conjunto de ervas, incensos ou madeiras aromáticas queimadas que produzem fumaças visando a proteção e a purificação do corpo e do ambiente.

c) Benzedeiras: mulheres que utilizam água, óleos essenciais e ervas ancestrais com preces que conectam a espiritualidade e o humano.

d) Chás: bebidas produzidas por meio da infusão de folhas/ervas secas com água.

e) Escalda pés: solução com água, sal, ervas e óleos essenciais para os pés.

f) Ebó/Sacudimento/Sakamene/Sukulu Mpemba: limpezas realizadas no corpo e nos ambientes com velas, água, defumação, ervas, alimentos, especiarias, favas, pós, dentre outros elementos.

g) Bori/Amaci/Ngudia Mutue/Tá/Kudia kua Mutuê: oferenda de comidas/alimentos à cabeça.

Além disso, a norma reconhecia como área de abrangência da unidade de saúde as unidades territoriais tradicionais cadastradas no Programa Casas Ancestrais.

Assim, os seguimentos de religiões africanas reconhecidas foram:

Abordagem diferenciada x abordagem científica

A resolução previu, ademais, que todos os agentes envolvidos na Atenção Primária têm a responsabilidade de realizar abordagem diferenciada e respeitosa, para além da boa prática clínica, que envolva o compromisso indissociável entre a pessoa e as suas tradições, eliminando qualquer discriminação e o preconceito institucional.

Contudo, o prefeito do Rio, Eduardo Paes, apenas 6 dias depois da publicação da resolução conjunta, acabou revogando a norma, sob o fundamento de que a administração municipal prioriza o estado laico, e que políticas de saúde devem ter uma abordagem científica.

A prefeitura do Rio, em nota, destacou:

“A Prefeitura do Rio informa que a resolução conjunta das secretarias de Meio Ambiente e Clima (SMAC) e Saúde (SMS) foi revogada, em 25/03, no Diário Oficial, com o entendimento de que saúde pública é realizada baseada em ciência. Além disso, a revogação parte do princípio de que o Estado é laico e não deve misturar crenças religiosas em políticas públicas de saúde.”

A Constituição, de fato, indica a República Federativa do Brasil como um país laico, ou seja, existe uma separação entre Estado e Religião, permitindo uma ampla liberdade religiosa.

A laicidade ganha força a partir do Iluminismo, que reforçou a necessidade da separação entre o Poder Público e a Igreja. Essa mistura entre fé e estado foi muito comum no absolutismo, e não trouxe bons frutos para a humanidade.

Por conseguinte, temos os benefícios trazidos pela laicidade:

  • Assegura liberdade religiosa;
  • Assegura tratamento igualitário entre as pessoas;
  • Assegura autonomia individual;
  • Assegura a pluralidade de pensamento e crença.

Mas a laicidade não significa que o Estado não possa dialogar ou firmar parcerias com a igreja. O que é vedado pela Constituição é a adoção de uma religião oficial, o favorecimento a uma igreja específica, a dependência e a vinculação a uma religião.

Aliás, é importante não confundir laicidade com laicismo!

LAICIDADELAICISMO
Não há uma relação de dependência ou favorecimento entre o Estado e uma religião específica, mas há garantia à liberdade religiosa, e há possibilidade de fomenta às diversas religiões.Pensamento ideológico em que a religião é vista de forma negativa, pejorativa, devendo ser totalmente desconsiderada pelo Estado. É marcado pela intolerância religiosa e por medidas autoritárias.

Racismo religioso

A Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro) publicou em suas redes sociais uma nota de repúdio sobre o caso, alegando que essa medida ignora diretrizes nacionais importantes e representa uma desconsideração das práticas ancestrais, desrespeito à luta contra o racismo religioso e um retrocesso nas políticas de equidade.

Além disso, para Hédio Silva Júnior, coordenador do Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-Brasileiras (Idafro), a revogação legitima uma supremacia racial e religiosa no Brasil:

“Quando a medicina legal foi instaurada, por volta de 1940, o Estado reprimia os erveiros e seu conhecimento fitoterápico brasileiro, um conhecimento histórico conhecido publicamente pelas religiões de matrizes africanas. O que está em vigor é uma legitimação da supremacia racial e religiosa no Brasil, dada a intolerância religiosa em respeito às religiões de matrizes africanas”.

Portanto, o prefeito foi acusado de ter cometido racismo religioso.

Práticas

O tema é polêmico, e envolve o embate entre diversos valores, como saúde, religião e liberdade. Ótimo tema para provas de direito constitucional e direitos humanos.


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