Poluição sonora como crime de perigo abstrato

Poluição sonora como crime de perigo abstrato

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Entenda o que aconteceu

O dono de uma casa de eventos, localizada em Minas Gerais, foi denunciado pelo Ministério Público por emitir barulho acima do limite máximo permitido na NBR 10.151, da Associação Brasileira de Normas Técnicas, gerando uma poluição sonora, crime tipificado no artigo 54, da Lei de Crimes Ambientais.

Lei nº 9.605/98

Art. 54. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora:

Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.

A sonorização advinda do local de eventos incomodava a vizinhança, causando aos moradores locais dificuldades para dormir e perturbação do sossego.

Os moradores da vizinhança relataram perda de audição e concentração, aumento da pressão arterial, interferência no sono e estresse decorrentes da exposição a ruídos.

Os limites máximos de ruídos permitidos variam conforme o tipo de área e o período de emissão (diurno ou noturno), indo de 35 até 70 decibéis. Vejamos:

Durante a instrução probatória realizada no primeiro grau, restou comprovada a elevação sonora acima da fixada em regulamentação específica pelo estabelecimento comercial em questão. Porém não se comprovou que o barulho teria o condão de causar qualquer tipo de risco á saúde humana.

Diante desse quadro probatório, o Tribunal de Justiça de Minas desclassificou a conduta do crime ambiental de poluição sonora (artigo 54, da Lei nº 9.605/98) para mera contravenção de perturbação do sossego (artigo 42, do Decreto Lei nº 3.688/1941), fundamentando a decisão na ausência de prova técnica que comprovasse o dano ou a probabilidade de dano à saúde dos moradores locais.

O Ministério Público recorreu da decisão do Tribunal mineiro ao Superior Tribunal de Justiça, que acabou dando provimento ao recurso especial (REsp 2.130.764).

O STJ entendeu que o crime de poluição sonora é formal, de perigo abstrato, que não exige prova pericial para constatar o poder de resultar em danos à saúde humana.

Análise jurídica

Poluição

A Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81) conceitua a poluição como sendo a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente:

a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população;

b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas;

c) afetem desfavoravelmente a biota;

d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente;

e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos.

E conceitua o poluidor como sendo a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental.

Poluição sonora pode ser conceituada como toda perturbação do ambiente causada por ruídos ou barulhos em níveis superiores ao máximo estabelecido pelo poder público, prejudicando a saúde humana e o bem-estar da população.

Som e ruído

Não confundir som com ruído:

Som -> Qualquer variação de pressão (no ar, na água) que o ouvido humano possa captar cadenciadamente;

Ruído -> O som ou conjunto de sons indesejáveis, desagradáveis, perturbadores, em limites superiores ao permitido pela legislação.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) define como ruído níveis sonoros superiores a 65 decibéis (dB). O ruído se torna daninho se for superior a 75 dB e doloroso a partir dos 120 db.

Consequentemente, a OMS recomenda não passar de 65 dB durante o dia e indica que, para que o sono seja reparador, o ruído do ambiente noturno não deve ser superior a 30 dB.

Principais causas de poluição1:

Poluição sonora

Consequências

As principais consequências danosas aos seres humanos em decorrência da exposição contínua à poluição sonora são:

  • Psicopatológicos: agitação respiratória, aceleração da pulsação, aumento da pressão arterial, dor de cabeça e, no caso de barulhos extremos e constantes, gastrites, colites ou inclusive enfartes;
  • Psicológicos: o ruído pode provocar episódios de estresse, fadiga, depressão, ansiedade ou histeria, tanto em seres humanos quanto em animais;
  • Sono e conduta: um ruído superior a 45 dB impede conciliar o sono ou dormir corretamente; tenhamos em conta que o ideal, conforme a OMS, é não passar de 30 dB. Tudo isto pode influir, a posteriori, na nossa conduta, provocando episódios de agressividade ou irritabilidade;
  • Memória e atenção: o ruído pode afetar a nossa capacidade de concentração, o que ao mesmo tempo pode provocar baixo rendimento. A memória também sofre, por exemplo, quando vamos estudar. Um dado interessante: o ouvido precisa um pouco mais do que 16 horas de repouso para compensar duas horas de exposição a 100 dB.

Há muitos anos que a jurisprudência já reconhece a poluição sonora como sendo uma forma de alteração adversa do meio ambiente, e que deve ser combatida. Isso pode ser comprovado pelo Agravo de Instrumento nº 535.404-5/9, Relator Desembargador Renato Nalini, do Tribunal de Justiça de São Paulo:

“O ruído em excesso não causa apenas insatisfação e desconforto, senão provoca enfermidades detectadas pela medicina tradicional e pela psiquiatria. Surdez precoce e depressão por falta de sono são apenas uma parcela das consequências da produção de energia sonora em demasia, signo desta era mas que não é impositivo a quem alega perda evidente da sua qualidade de vida.”

Responsabilidade dos entes federativos

Os entes federativos têm obrigação constitucional (artigos 23, VI e 225, § 1º) de zelar pelo meio ambiente ecologicamente equilibrado, garantindo o direito à saúde e bem-estar de seus habitantes e, consequentemente, de coibir a ocorrência da poluição sonora.

O descumprimento a esse dever, como na falha da fiscalização ou na não adoção das medidas necessárias, poderá sujeitar o poder público à responsabilidade de indenizar as pessoas que sofreram com as práticas lesivas, ou seja, com o elevado índice de poluição sonora.

A responsabilidade civil ambiental, ou seja, de reparar os danos causados ao meio ambiente, além de objetiva (independe de culpa ou dolo), é solidária e fundamentada na teoria do risco integral, que é uma teoria extremada do risco, onde o nexo de causalidade é fortalecido (ver informativo STJ nº 545).

Além do mais, a pretensão de reparação do dano ambiental é imprescritível, conforme jurisprudência pacificada dos tribunais superiores, em especial o tema 999 do Supremo Tribunal Federal.


TEMA 999 do STF: É imprescritível a pretensão de reparação civil de dano ambiental.

Lembrando que o poder público, quando se omite no dever de fiscalizar, responde de forma objetiva, solidária, mas com benefício de ordem (execução subsidiária), conforme súmula 652 do STJ.

Súmula 652 do STJ: “A responsabilidade civil da Administração Pública por danos ao meio ambiente, decorrente de sua omissão no dever de fiscalização, é de caráter solidário, mas de execução subsidiária”.

Crime formal

O STJ entendeu, portanto, que o crime do art. 54, caput, da Lei n. 9.605/98, primeira parte, se trata de crime formal, de perigo abstrato, prescindindo de prova pericial para constatação de poluição que possa resultar em danos à saúde humana diante do desrespeito às regras de emissão sonora constatado pelas instâncias ordinárias.

Crime formal (também chamado de crime de consumação antecipada ou de resultado cortado) é aquele em que o resultado naturalístico não é necessário para a consumação do delito, mesmo que a norma preveja o resultado.

Ou seja, no crime formal, a produção do resultado é indiferente para a consumação do crime.

No caso da poluição sonora, o STJ entendeu que basta que se comprove que foi emitido ruído acima do permitido pelo regulamento para que o crime seja considerado consumado. Isso independe do efetivo prejuízo à saúde humana, comprovado por perícia técnica, que é totalmente dispensável.

Vejamos a ementa do julgado:

PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. RECURSO ESPECIAL DA ACUSAÇÃO PROVIDO PARA AFASTAR A DESCLASSIFICAÇÃO PARA PERTURBAÇÃO. ART. 42 DO DECRETO-LEI N. 3.688/41. POLUIÇÃO SONORA. ART. 54, CAPUT, DA LEI N. 9.605/98. CRIME DE PERIGO ABSTRATO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.

1. Conforme precedentes desta Corte, o delito do art. 54, caput, primeira parte, da Lei n. 9.605/98, é crime de perigo abstrato, prescindindo de prova pericial para constatação de poluição que possa resultar em danos à saúde humana.

1.1. No caso concreto, diante do comprovado desrespeito às regras de emissão sonora constatado pelas instâncias ordinárias em decorrência de levantamento de ruídos ambiental, indevida a desclassificação operada pelo Tribunal de Justiça com fundamento na falta de realização de prova técnica para comprovação do dano ou da probabilidade do dano à saúde dos moradores locais.

2. Agravo regimental desprovido.

(AgRg no REsp n. 2.130.764/MG, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 16/9/2024, DJe de 18/9/2024.)

Tema atual, interessante e pertinente às provas de direito ambiental e direito penal. Portanto, muita atenção!


  1. IBERDROLA. Poluição sonora: como reduzir as consequências de uma ameaça invisível? Disponível em: <https://www.iberdrola.com/sustentabilidade/o-que-e-poluicao-sonora-causas-consequencias-solucoes#:~:text=O%20que%20%C3%A9%20polui%C3%A7%C3%A3o%20sonora,a%20partir%20dos%20120%20db>. ↩︎

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