Polícia x Traficantes: qual a responsabilidade do Estado em caso de bala perdida?

Polícia x Traficantes: qual a responsabilidade do Estado em caso de bala perdida?

Sou o professor Marcos Gomes, Defensor Público do Estado de São Paulo, Coordenador da Coleção Defensoria Pública Ponto a Ponto e Especialista em Direito Público.

Trouxe abaixo uma análise para reflexão sobre o tema: Polícia x Traficantes: qual a responsabilidade do Estado em caso de bala perdida?

O tema envolvendo letalidade policial está em evidência na sociedade e, consequentemente, nos concursos jurídicos. No 5º exame de seleção para formação de cadastro de reserva para o programa de residência jurídica da Defensoria Pública do estado do Rio de Janeiro fora realizado o seguinte questionamento:

Em janeiro de 2023, Leonel da Fé, saindo para trabalhar logo de manhã, foi atingido por um projétil de arma de fogo durante um confronto entre traficantes e policiais militares na favela onde reside. O PAF transfixou o corpo da vítima e não foi localizado. O laudo de exame de corpo de delito indicou debilidade permanente da marcha provocada pelo projétil. Leonel era pedreiro autônomo, ficando reduzida sua capacidade para o exercício de suas atividades laborais cotidianas.

A vítima marcou atendimento no Núcleo de Primeiro Atendimento da Defensoria Pública do bairro onde reside. Responda fundamentadamente, observando-se o limite de 20 linhas:

1 – Restou configurada a responsabilidade civil do Estado no caso concreto? Em sendo afirmativa sua resposta sob qual espécie? Indique a fundamentação jurídica pertinente. (valor 2,5)

2 – Indique, no caso concreto, quais os requisitos para a configuração da responsabilização civil do Estado. (valor 2,5)

3 – Qual a medida judicial seria eleita para postular os direitos do assisti do indicando quais os pedidos seriam formulados, o polo passivo e o juízo competente? (valor 2,5)

4 – Qual a posição atual do Supremo Tribunal Federal no que tange à bala perdida no curso de uma operação/ação policial? (valor 2,5)”

No caso em tela, resta configurada a responsabilidade civil objetiva do Estado (Teoria do Risco Administrativo), atraindo-se o art. 37, §6º, da Constituição Federal.

Vejamos:

Constituição Federal, art. 37, § 6º – “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

Ademais, os requisitos da responsabilidade civil (ação, nexo de causalidade e resultado) restaram demonstrados. Isso porque a ação do estado foi instrumentalizada por meio da ação policial. Por seu turno, o nexo de causalidade restou configurado ao descrever que o projétil de arma de fogo disparado durante a ação policial culminou em danos para a vítima, inclusive com debilidade permanente. Por fim, o resultado lesivo também restou demonstrado por meio do sofrimento intenso, das lesões, e da redução da capacidade laborativa.

Ao comparecer no núcleo de atendimento da Defensoria Pública a medida judicial cabível seria uma ação de responsabilidade civil em face do Estado do Rio de Janeiro. Nos termos do art. 53, III e IV, CPC, a competência seria do juízo de Fazenda Pública do local do fato ou do domicílio do autor.

De fato, restou caracterizada ofensa aos direitos da personalidade da vítima, motivo pelo qual poderia ser pleiteado danos morais. Além disso, pelo fato de ter sido verificada a perda da capacidade laborativa, seria viável o pedido de pensionamento pelo estado. Por fim, poderiam ser pleiteados danos materiais (despesas com tratamentos médicos) e lucros cessantes (em virtude da perda da capacidade laborativa), nos termos do art. 949 e 950, do Código Civil. Sublinhe-se:

Código Civil – “Art. 949. No caso de lesão ou outra ofensa à saúde, o ofensor indenizará o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até ao fim da convalescença, além de algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido.

Art. 950. Se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua a capacidade de trabalho, a indenização, além das despesas do tratamento e lucros cessantes até ao fim da convalescença, incluirá pensão correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu”.

Concluindo-se de forma holística a resposta da questão de prova, imprescindível destacar o posicionamento do STF no ARE 1382159 AgR, julgado em 2023:

Ementa: RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. REVOLVIMENTO DE MATÉRIA FÁTICA. DESNECESSIDADE. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. OPERAÇÃO POLICIAL EM COMUNIDADE DO RIO DE JANEIRO. MORTE DE CIVIL DESARMADO NO INTERIOR DE SUA RESIDÊNCIA. TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO. COMPROVAÇÃO DA AÇÃO ESTATAL, NEXO CAUSAL E DANO. ÔNUS DO ESTADO DEMONSTRAR A CONFORMIDADE DA AÇÃO DE SEUS AGENTES. AGRAVO INTERNO E RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO PROVIDOS.

1. O objeto deste recurso extraordinário consiste em definir se estão configurados os requisitos para responsabilização civil do Estado pela morte de cidadão – especialmente o nexo causal – quando, embora comprovados o dano e a realização de operação policial no momento do disparo fatal, não é demonstrado que o projétil que atingiu a vítima foi deflagrado por agente estatal.

2. As operações policiais no Brasil são desproporcionalmente letais e desacompanhadas de medidas aptas a assegurar a conformidade fática e jurídica da ação estatal, conforme assentado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Favela Nova Brasília e pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 635 (Tribunal Pleno, Rel. Min. Edson Fachin, DJe de 2.6.2022). O Estado brasileiro, a propósito de conter atividades ilícitas, fere e mata diariamente seus cidadãos, especialmente em comunidades carentes. A definição da responsabilidade civil do Estado não pode ignorar esse cenário, sob pena de ressuscitar, por via transversa, o paradigma da irresponsabilidade estatal.

3. É necessário estruturar o nexo causal entre dano e ações estatais armadas de modo a contemplar essas circunstâncias específicas e efetivamente reparar as lesões, restaurar o primado da igualdade e induzir a adoção pelo Estado de protocolos de atuação de seus agentes. Isso significa que, no contexto de incursões policiais, comprovado o confronto armado entre agentes estatais e criminosos (ação), bem como a lesão ou morte de cidadão (dano) por disparo de arma de fogo (nexo), cabe ao Estado comprovar a ocorrência de hipóteses interruptivas da relação de causalidade.

4. O Estado, que possui os meios para tanto – como câmeras corporais e peritos oficiais –, deve averiguar as externalidades negativas de sua ação armada, coligindo evidências e elaborando os laudos que permitam a identificação das reais circunstâncias da morte de civis desarmados dentro de sua própria residência.

5. Portanto, se o cidadão demonstra a causa da morte – disparo de arma de fogo – e evidencia a incursão estatal armada no momento do dano, estão configurados elementos da responsabilidade objetiva do Estado, de modo que cabe a este comprovar a interrupção do nexo causal, evidenciando (i) que os agentes estatais não provocaram as lesões, seja porque, por exemplo, não dispararam arma de fogo ou engajaram em confronto em local diverso do dano; ou (ii) a culpa exclusiva da vítima ou fato de terceiro. A mera negativa de ação estatal ilícita, sem a demonstração da interrupção do nexo causal e da conformidade da incursão armada de agentes de segurança pública, com o esclarecimento da dinâmica factual, não é suficiente para afastar a responsabilidade civil do Estado.

6. Agravo interno e recurso extraordinário com agravo providos para julgar procedentes em parte os pedidos e condenar o Estado do Rio de Janeiro ao pagamento de (i) compensação por danos morais a Jurema Rangel Bento Paz, no valor de R$ 100.000,00; (ii) compensação por danos morais a Ana Julia Rangel Donaly, no valor de R$ 50.000,00; e (iii) compensação por danos morais a Camila Rangel Bento Paz, no valor de R$ 50.000,00.

Assim, concluiu a Suprema Corte pela responsabilidade objetiva do estado, com fundamento na Teoria do Risco Administrativo, em caso de bala perdida em operação policial que culmina na morte de civil desarmado no interior de sua residência. Trata-se de assunto que está em evidência, envolvendo letalidade policial, sendo certo que também poderá ser tema de prova nos certames para as mais diversas carreiras jurídicas.

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