Explicação do caso1
Um caso trágico ocorrido em Rio Verde de Mato Grosso (MS) levantou sérias questões jurídicas e sociais. Uma criança de dois anos pegou a arma de fogo do pai, um produtor rural com porte e registro legal do armamento, e disparou acidentalmente contra a mãe, de 27 anos. A mulher foi atingida no braço e no tórax e, apesar de ter sido socorrida, não resistiu aos ferimentos.
Segundo a Polícia Civil, o casal estava na varanda de casa com o filho quando o incidente ocorreu. As imagens de câmeras de segurança mostram o momento em que a criança manuseia a arma deixada sobre uma mesa e, em seguida, dispara em direção à mãe.

O pai vai responder em liberdade por homicídio culposo e por omissão de cautela, conforme previsto na legislação penal e no Estatuto do Desarmamento.
A arma, uma pistola calibre 9 mm, foi apreendida. O caso está sendo investigado e a criança deve passar por acompanhamento do Conselho Tutelar e do setor psicossocial.
O episódio, além da dor pessoal e familiar, suscita debates sobre o dever de guarda responsável de armas de fogo, o papel do perdão judicial em casos de gravidade emocional extrema, e a responsabilidade penal por omissão em contexto doméstico.
Aspectos jurídicos relevantes
Omissão de cautela
A conduta do pai da criança subsume-se indiscutivelmente ao modelo previsto no artigo 13, da 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento), que criminaliza a omissão de cautela ao deixar que menor de 18 anos tenha acesso à arma de fogo: Pena: detenção, de 1 a 2 anos, e multa. O crime é de perigo e independe da ocorrência de resultado lesivo para se configurar. No caso em análise, o resultado foi fatal, reforçando a gravidade da omissão.
A omissão do agente é penalmente relevante, conforme previsão inserta no artigo 13, §2º, do CP, já que ele tinha a obrigação de cuidado, proteção e vigilância.
Além disso, o pai também poderá responder por homicídio culposo, tipificado no artigo 121, §3º, do Código Penal: Se o homicídio é culposo. Pena – detenção, de um a três anos. Trata-se de morte sem intenção, resultante de negligência, imprudência ou imperícia. No caso concreto, o comportamento do agente revela negligência, ao deixar uma arma acessível a uma criança de apenas dois anos, em violação clara ao dever objetivo de cuidado.
Culpa ou dolo eventual?
A situação poderia despertar uma discussão interessante acerca do elemento subjetivo que animou o agente: se culpa, por inobservância de um dever objetivo de cuidado, como já abordado; ou dolo eventual, já que no contexto, ao deixar a arma completamente desvigiada, o agente teria assumido o risco de produzir o resultado. Vamos aguardar o posicionamento do Ministério Público sul-mato-grossense, valendo lembrar que a tipificação feita inicialmente pelo Delegado de Polícia não vincula o Ministério Público.
Uma vez reconhecida a ocorrência do homicídio culposo, e, considerando as circunstâncias profundamente trágicas — a perda da companheira em decorrência da própria omissão —, é admissível a aplicação do perdão judicial, previsto no art. 121, §5º, do Código Penal:
“O juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária.”
O perdão judicial é cabível em casos excepcionais como este, em que a dor pessoal do agente é considerada mais severa que a sanção estatal. Como estabelece a Súmula 18, do STJ, a sentença que concede o perdão judicial “é declaratória da extinção da punibilidade, não produzindo qualquer efeito condenatório”.
O STJ já consignou que:
“O perdão judicial é ato de clemência do Estado, que, em hipóteses expressamente previstas em lei, como é o caso do homicídio culposo praticado no trânsito, deixa de aplicar a pena, afastando, assim a punibilidade”. (AgRg no REsp 1854277/SP)
Importante lembrar que o persecução penal deve ser instaurada e há de tramitar normalmente, com apuração dos fatos e oferecimento de denúncia. Por não haver dolo, a competência para julgamento não é do Tribunal do Júri, mas do juízo criminal comum. Somente ao final da instrução poderá o juiz avaliar a conveniência de aplicar o perdão judicial.
Consequências
Do ponto de vista social, o caso desperta atenção para a responsabilidade de proprietários de armas de fogo em ambientes domésticos. Mesmo com porte e registro legais, a guarda negligente do armamento pode ter consequências irreversíveis, como demonstrado neste episódio.
A tragédia destaca a necessidade de políticas mais eficazes de educação sobre segurança com armas e fiscalização do cumprimento das exigências legais de armazenamento.
No plano jurídico, o episódio reforça a importância de mecanismos como o perdão judicial para lidar com situações de sofrimento extremo do próprio agente. A existência dessa ferramenta não elimina o processo, mas permite que, diante de uma dor pessoal que supere os efeitos da punição estatal, o Estado deixe de, legitimamente, aplicar a pena.
Proteção da vida
O caso deve servir de alerta para o rigor na aplicação do art. 13, do Estatuto do Desarmamento, que impõe o dever de cautela na posse de armas. O cumprimento dessa norma é essencial para a proteção da vida, sobretudo de crianças, e sua violação não pode ser tratada com leniência — mesmo que, ao final, o perdão judicial seja aplicado diante das circunstâncias excepcionais.
Um adendo importante: o perdão judicial é aplicável, se caso, apenas em relação ao homicídio culposo, subsistir a responsabilidade penal do agente pela conduta prevista no art. 13, da Lei 10.826/03.
Resumo: Uma criança de dois anos matou acidentalmente a mãe ao manusear uma arma deixada pelo pai sobre a mesa. O pai, que possuía porte legal, responderá por omissão de cautela, prevista no art. 13 da Lei 10.826/03. A omissão é penalmente relevante, conforme o art. 13, §2º, do Código Penal, pois ele tinha o dever de cuidado, proteção e vigilância. Também poderá responder por homicídio culposo (art. 121, §3º, CP), pois agiu com negligência ao deixar o armamento acessível à criança. Diante da gravidade pessoal da perda, pode ser aplicado o perdão judicial (art. 121, §5º, CP), quando a pena se torna desnecessária. A Súmula 18 do STJ estabelece que o perdão judicial extingue a punibilidade sem gerar efeitos condenatórios. |
- MACHADO, Mirian. Criança de 2 anos pega arma do pai e mata a mãe com tiro acidental em MS. G1 Mato Grosso do Sul. 2025. Disponível em: <https://g1.globo.com/ms/mato-grosso-do-sul/noticia/2025/06/14/crianca-de-2-anos-pega-arma-do-pai-em-cima-da-mesa-atira-e-mata-a-mae-em-ms.ghtml>. ↩︎
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