Prof. Gustavo Cordeiro
Introdução: a mudança de paradigma que todo concurseiro precisa dominar
A promulgação da Lei nº 13.010/2014, popularmente conhecida como “Lei da Palmada” ou “Lei Menino Bernardo”, representa uma das mais significativas transformações no ordenamento jurídico brasileiro em matéria de proteção infantojuvenil. Esta legislação não apenas alterou substancialmente o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), mas também criou um novo paradigma de proteção que tem sido constantemente explorado em concursos públicos das carreiras jurídicas.
O recente relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre “Castigo corporal de crianças: impacto na saúde pública”, publicado em agosto de 2025, fornece base científica robusta que justifica e legitima essa proteção legal. Os dados são alarmantes: aproximadamente 1,2 bilhão de crianças entre 0 e 18 anos são submetidas a castigos físicos dentro de casa por ano, sendo que 330 milhões de crianças com menos de cinco anos são punidas fisicamente regularmente – exatamente a faixa etária considerada mais crítica para o desenvolvimento neurológico.
As consequências científicas documentadas pela OMS são devastadoras e incluem danos à saúde mental e física, desenvolvimento cognitivo prejudicado, problemas comportamentais, aumento do comportamento antissocial e agressivo, além de estudos de neuroimagem que sugerem redução do volume da substância cinzenta do cérebro em áreas associadas ao desempenho cognitivo. O relatório também demonstra correlação com problemas de saúde mental duradouros, incluindo depressão, baixa autoestima, transtorno de ansiedade, automutilação, abuso de álcool e drogas e tendências suicidas, que persistem na idade adulta.

Além das consequências individuais, o impacto econômico é substancial: toda a violência contra crianças custa anualmente de 2 a 5% do PIB mundial, sendo que a inação contra a violência escolar, incluindo o castigo corporal, custa cerca de US$ 11 bilhões em rendimentos perdidos ao longo da vida.
Para candidatos a concursos de Magistratura, Ministério Público, Defensoria Pública e Delegacia, dominar essa temática é essencial, pois ela interconecta direitos fundamentais, direito penal, direito da criança e do adolescente, políticas públicas de proteção social e evidências científicas contemporâneas que fundamentam a necessidade de proteção integral da infância.
O marco legal: artigos 18-A e 18-B do ECA
Conceituação normativa e alcance subjetivo
O artigo 18-A do ECA estabelece um direito fundamental absoluto da criança e do adolescente: serem educados e cuidados sem castigo físico ou tratamento cruel ou degradante. Essa norma possui alcance universal, aplicando-se não apenas aos pais e responsáveis, mas também aos integrantes da família ampliada, agentes públicos executores de medidas socioeducativas (funcionários que trabalham na execução de medidas socioeducativas de internação e semiliberdade, por exemplo) e qualquer pessoa encarregada do cuidado infantojuvenil (como professores de escola).
A definição legal de castigo físico (inciso I) abrange toda ação disciplinar ou punitiva que utilize força física, resultando em sofrimento físico ou lesão. Já o tratamento cruel ou degradante (inciso II) engloba condutas que humilhem, ameacem gravemente ou ridicularizem a criança ou adolescente.
Regime sancionatório administrativo
O artigo 18-B introduz um sistema sancionatório graduado, aplicado pelo Conselho Tutelar conforme a gravidade do caso. As medidas incluem desde advertência até encaminhamentos especializados, destacando-se:
- Encaminhamento a programas de proteção familiar: medida de natureza preventiva e educativa
- Tratamento psicológico ou psiquiátrico: para casos que evidenciem distúrbios comportamentais
- Cursos de orientação: capacitação parental em métodos educativos não violentos
- Tratamento especializado da vítima: cuidado integral da criança ou adolescente
- Garantia de tratamento de saúde especializado: inovação da Lei nº 14.344/2022
Repercussões penais: maus-tratos versus tortura
Crime de maus-tratos (art. 136, CP)
A aplicação de castigos físicos pode configurar o crime de maus-tratos, especialmente após a recente alteração promovida pela Lei nº 15.163/2025, que majorou significativamente as penas:
Tipo básico: Reclusão de 2 a 5 anos (anteriormente 2 meses a 1 ano);
Forma qualificada (lesão grave): Reclusão de 3 a 7 anos;
Forma qualificada (morte): Reclusão de 8 a 14 anos;
Causa de aumento: Pena aumentada de 1/3 se praticada contra menor de 14 anos.
O elemento nuclear do tipo é “expor a perigo” a vida ou saúde de pessoa sob autoridade, guarda ou vigilância, mediante abuso de meios de correção ou disciplina.
Crime de tortura (art. 1º, II, Lei 9.455/97)
Quando o castigo físico ou tratamento degradante ocasionar intenso sofrimento físico ou mental, configura-se o crime de tortura, com pena de reclusão de 2 a 8 anos.
Distinção fundamental: A tortura exige sofrimento intenso, enquanto os maus-tratos abrangem qualquer exposição a perigo, mesmo com sofrimento de menor intensidade.
Critérios de diferenciação prática
Critério | Maus-tratos | Tortura |
Intensidade do sofrimento | Qualquer exposição a perigo | Sofrimento intenso |
Elemento subjetivo | Abuso de meios corretivos | Finalidade de castigo pessoal |
Resultado | Perigo concreto ou abstrato | Sofrimento efetivo e intenso |
Pena | 2 a 5 anos (tipo básico) | 2 a 8 anos |
Conexão com concursos públicos
Esta temática tem aparecido frequentemente em provas de concursos, especialmente nas seguintes abordagens:
- Aplicação das sanções administrativas pelo Conselho Tutelar
- Distinção entre maus-tratos e tortura em casos práticos
- Alcance subjetivo da proteção (quem pode ser responsabilizado)
- Integração com políticas públicas de proteção familiar
Questão do Exame da OAB
Herminda, de 50 anos, é tia materna de Júlia, de 16 anos. Após verificar que Júlia teve notas baixas no colégio, Herminda decidiu ir à porta da escola e, com o intuito de correção, ridicularizou e humilhou a adolescente na frente de seus colegas, dizendo que Júlia era desleixada, que nunca conseguiria acesso à universidade, sendo uma vergonha para a família. Os pais de Júlia tomaram conhecimento do fato e ficaram revoltados. Decidiram, então, procurar você, como advogado(a), para que indicasse a orientação jurídica adequada para sancionar o ato praticado por Herminda. Nesse caso, de acordo com o ECA, assinale a afirmativa que apresenta, corretamente, sua orientação.
(A) Herminda pode ser encaminhada a cursos ou programas de orientação, sendo que a aplicação dessa medida só pode ser feita pela autoridade judiciária.
(B) Herminda, em virtude de tal ato, pode receber sanções, como a advertência, a ser aplicada pelo Conselho Tutelar, sem prejuízo de outras providências legais.
(C) Herminda pode sofrer sanções, entre elas, a advertência. Para a aplicação da medida, é preciso representação do Ministério Público e decisão da autoridade judiciária.
(D) Herminda não tinha o direito de humilhar e ridicularizar Júlia, mesmo para fins corretivos, o que caberia aos pais por serem detentores do poder familiar, mas o ECA não prevê qualquer possibilidade de sanção à tia materna.
Gabarito: B.
Análise Técnica: A questão aborda perfeitamente a aplicação prática da Lei da Palmada. Herminda, como integrante da família ampliada (tia materna), praticou tratamento cruel ou degradante ao ridicularizar e humilhar Júlia publicamente, conduta expressamente vedada pelo art. 18-A, parágrafo único, inciso II, alíneas “a” e “c” do ECA.
Por que a alternativa B está correta:
- Herminda está sujeita às sanções do art. 18-B do ECA por ser integrante da família ampliada
- O Conselho Tutelar tem competência para aplicar as medidas previstas no art. 18-B
- A expressão “sem prejuízo de outras providências legais” está literalmente prevista no parágrafo único do art. 18-B
- Não há necessidade de intervenção judicial prévia para aplicação das sanções administrativas
Por que as demais estão incorretas:
D: Ignora que o art. 18-A expressamente inclui “integrantes da família ampliada” no seu alcance subjetivo
A e C: Atribuem equivocadamente à autoridade judiciária competência que é do Conselho Tutelar
C: Exige desnecessariamente representação do Ministério Público
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