Como se sabe, o recente embate jurídico envolvendo o atleta Neymar Jr. e seu pai contra o portal UOL merece uma análise mais aprofundada sob a ótica do direito constitucional brasileiro.
Isto porque, a decisão proferida pelo magistrado de Santos reflete princípios fundamentais do nosso ordenamento jurídico e estabelece importantes precedentes sobre liberdade de imprensa e direito à informação.
O caso Neymar e os fundamentos da decisão judicial
De início, em abril de 2025, o astro do futebol e seu genitor ajuizaram ação com o objetivo de vetar a veiculação de podcast. Eles alegam haver a utilização de documentos sigilosos sem autorização prévia.
A estratégia processual envolveu duas tentativas: primeiro, a proibição completa da publicação; depois, a pretensão de acesso antecipado ao conteúdo para “avaliação prévia”.
O magistrado Eduardo Haddad, ao indeferir o primeiro pedido, destacou elemento crucial para compreensão do caso: a notoriedade pública do atleta. Conforme salientado na fundamentação, a fama conquistada pelo próprio Neymar através dos meios de comunicação traz consigo não apenas benefícios, mas também determinados ônus – entre eles, um escrutínio público mais intenso de suas atividades.
A segunda tentativa, igualmente malsucedida, revelou a verdadeira pretensão dos autores, Neymar e Neymar Jr.: exercer controle prévio sobre informações jornalísticas a seu respeito.
O juízo manteve sua posição, reconhecendo que tal intervenção caracterizaria censura prévia, prática expressamente vedada pela Constituição Federal de 1988.
A vedação constitucional à censura prévia
Como se sabe, o texto constitucional é cristalino ao estabelecer, em seu art. 5º, IX, que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.
Esta garantia é reforçada pelo art. 220, § 2º, que dispõe: “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.
Dessa maneira, a censura prévia, por sua própria natureza, representa grave atentado ao Estado Democrático de Direito, pois impede o fluxo informacional necessário à formação da opinião pública, elemento indispensável às sociedades democráticas contemporâneas.
Como já manifestou o Ministro Alexandre de Moraes, "a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e compreende não somente as informações consideradas como inofensivas, indiferentes ou favoráveis, mas também as que possam causar transtornos, resistência, inquietar pessoas".
Paralelo com o caso Pablo Marçal e a jurisprudência consolidada
O episódio envolvendo o jogador Neymar guarda notáveis semelhanças com outro caso recente: a tentativa do empresário Pablo Marçal de retirar de circulação o livro “Pablo Marçal: a trajetória de um criminoso“.
Ora, em ambas as situações, figuras públicas, incomodadas com publicações jornalísticas a seu respeito, buscaram no Poder Judiciário instrumentos para silenciar previamente veículos de comunicação.
No caso Marçal, a 8ª Câmara de Direito Privado do TJSP, em decisão técnica e juridicamente impecável, negou provimento ao agravo de instrumento que pretendia a retirada da obra literária do mercado. A Desembargadora Clara Maria Araújo Xavier, relatora do acórdão, ponderou adequadamente os direitos em colisão, concluindo pela predominância, naquele momento processual, da liberdade de expressão sobre os alegados danos à honra e imagem do agravante.
Importante notar que o Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre questão semelhante no julgamento da ADI 4815/DF, que discutiu a constitucionalidade dos arts. 20 e 21 do Código Civil quanto à exigência de prévia autorização para publicação de biografias.
Naquela histórica decisão, sob relatoria da Ministra Cármen Lúcia, o STF declarou "inexigível o consentimento de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais", consagrando a primazia da liberdade de expressão.
A posição preferencial da liberdade de expressão no ordenamento brasileiro
Como se sabe, a doutrina constitucional contemporânea tem reconhecido à liberdade de expressão uma posição preferencial (preferred position) quando em conflito com outros direitos fundamentais.
Esta preferência não significa, contudo, absoluta prevalência em toda e qualquer situação, mas implica um ônus argumentativo maior para justificar sua restrição.
Como ensina o jurista Ingo Wolfgang Sarlet, “no caso específico da liberdade de expressão, a tendência é de se atribuir a esta uma posição preferencial, quando da resolução de conflitos com outros direitos fundamentais”. O STF vem acolhendo esse entendimento em diversos julgados.
Para que seja publicada uma biografia NÃO é necessária autorização prévia do indivíduo biografado, das demais pessoas retratadas, nem de seus familiares. Essa autorização prévia seria uma forma de censura, não sendo compatível com a liberdade de expressão consagrada pela CF/88. As exatas palavras do STF foram as seguintes:
“É inexigível o consentimento de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais, sendo por igual desnecessária a autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes ou de familiares, em caso de pessoas falecidas ou ausentes”.
Caso o biografado ou qualquer outra pessoa retratada na biografia entenda que seus direitos foram violados pela publicação, terá direito à reparação, que poderá ser feita não apenas por meio de indenização pecuniária, como também por outras formas, tais como a publicação de ressalva, de nova edição com correção, de direito de resposta etc.
STF. Plenário. ADI 4815/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 10/6/2015 (Informativo 789).
Perceba, a razão dessa preferência reside na própria natureza dúplice da liberdade de expressão. Ou seja, além de direito individual, constitui verdadeira garantia institucional da democracia, ao assegurar o livre fluxo de ideias e informações, indispensável à formação da vontade coletiva e ao controle social do poder.
Figuras públicas e o ônus da exposição
Inclusive, outro aspecto fundamental nas decisões analisadas é o reconhecimento de que figuras públicas – como atletas, políticos e celebridades – possuem esfera de proteção à privacidade naturalmente mais restrita que cidadãos comuns. Não por acaso, tanto o juiz Eduardo Haddad, no caso Neymar, quanto a Desembargadora Clara Xavier, no caso Marçal, destacaram esta circunstância em suas fundamentações.

A doutrina e a jurisprudência, nacional e internacional, são pacíficas neste sentido. Como bem pontuou o Ministro Luís Roberto Barroso, “quanto mais pública for a pessoa, maior a redução de sua esfera de privacidade”.
Lado outro, a Suprema Corte norte-americana, no emblemático caso New York Times v. Sullivan (1964), estabeleceu o princípio de que agentes públicos só podem obter reparação por difamação se comprovarem que a informação foi publicada com “actual malice” (dolo direto ou eventual). Este critério tem influenciado diversas jurisdições, inclusive a brasileira.
Instrumentos posteriores de reparação: a resposta adequada do ordenamento
Em ambos os casos examinados, as decisões judiciais ressalvaram explicitamente que a vedação à censura prévia não significa desamparo aos direitos da personalidade.
O ordenamento jurídico brasileiro oferece instrumentos posteriores de reparação. Alguns deles são ações indenizatórias, direito de resposta e até mesmo responsabilização criminal, quando configurados excessos no exercício da liberdade de expressão.
Esta solução atende ao princípio da proporcionalidade. Isso porque preserva o núcleo essencial de ambos os direitos em colisão: de um lado, garante o livre fluxo informacional, essencial à democracia; de outro, assegura a possibilidade de reparação em caso de danos injustos aos direitos da personalidade.
Como destacou o STF na ADI 4815/DF, "eventuais excessos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a posteriori, sendo passíveis de reparação civil e até mesmo de responsabilização penal, nos termos da legislação em vigor".
Logo, ao rejeitar tentativas de censura prévia, mesmo quando travestidas de pedidos aparentemente legítimos de proteção à honra e à imagem, o Poder Judiciário reafirma seu compromisso com os valores democráticos e com a Constituição Federal. Simultaneamente, ao ressalvar a possibilidade de responsabilização posterior por eventuais excessos, preserva a dignidade e os direitos individuais.
Perceba, a informação pode fluir sem obstáculos prévios, mas não isenta de consequências jurídicas quando exercida abusivamente.
Como o tema já foi cobrado em concursos
(CESPE / CEBRASPE - 2023 - MPE-SC - Promotor de Justiça Substituto)
À luz do disposto na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), no Código Civil bem como da jurisprudência do STF, julgue o próximo item, relativos a pessoas, domicílio e bens.
Conforme a jurisprudência do STF, a publicação de uma biografia prescinde de autorização prévia do indivíduo biografado, das demais pessoas retratadas ou de seus familiares. (Certo)
(FGV - TJPE - JUIZ SUBSTITUTO - 2024) Abolitio, famoso cinegrafista, resolveu contar a vida de Arresto, craque do futebol, em um documentário. Em determinada altura da narrativa, menciona-se Precatório, goleiro que teria tomado um vergonhoso drible de Arresto.
Ambos, Arresto e Precatório, processam Abolitio, demandando indenização por danos morais por violação a seus direitos autorais e de imagem.
Nesse caso:
a) ambos os pedidos são improcedentes;
b) procede o pleito de Arresto, desde que provado o prejuízo, mas não o de Precatório;
c) ambos os pedidos são procedentes, desde que haja prova do prejuízo sofrido por cada qual;
d) procede o pleito de Arresto, independentemente de prova do prejuízo diante do intuito lucrativo, mas não o de Precatório;
e) ambos os pedidos são procedentes dispensada prova do prejuízo sofrido por cada qual, diante do intuito lucrativo do documentário.
Gabarito: A.
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