Concessão de liberdade a traficante que transportava uma carga de mais de 40 milhões de reais em cocaína? Entenda o caso

Concessão de liberdade a traficante que transportava uma carga de mais de 40 milhões de reais em cocaína? Entenda o caso

A imprensa noticiou que o STJ soltou (ou melhor, manteve a soltura) de um caminhoneiro que transportava 826 kg de cocaína.

A apreensão ocorreu no dia 16 de outubro, na cidade de Marília, interior de São Paulo. A carga ilícita (droga) estava escondida em meio a pacotes de polenta.

O condutor do veículo confirmou que levaria a droga de Londrina/PR a Diadema/SP e que receberia a quantia de R$ 15.000.

A concessão da liberdade provisória se baseou no argumento de que ele é pai, possui residência fixa, é réu primário e empregado.

Vamos a uma análise jurídica do caso.

Tráfico de drogas

O crime de tráfico de drogas vem previsto no artigo 33, da Lei 11.343/06, que constitui norma penal em branco.

A lei se limita a afirmar que se consideram drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União. É a Portaria 344 da Secretaria de Vigilância Sanitária da ANVISA que indica quais substâncias são droga, e nesse ato administrativo há previsão da cocaína como uma delas.

liberdade

Além disso, cabe registrar que o crime de tráfico constitui tipo misto alternativo, de modo que, realizado qualquer dos dezoito verbos núcleos do tipo previsto no artigo 33 (importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas), com finalidade diversa do uso, está caracterizado o tráfico, impendentemente da existência de atos de mercancia.

No caso concreto, a finalidade de entrega ao consumo de terceiros fica demonstrada pela quantidade exorbitante de entorpecente, afinal estamos a falar de 826 kg de cocaína.

Liberdade provisória

Na prisão em flagrante delito, há de se encaminhar o custodiado à presença da autoridade policial para a lavratura do auto de prisão em flagrante, nos termos do artigo 304, do CPP.

No iter da prisão em flagrante, cabe ao juiz, nos termos do artigo 310, do CPP, realizar audiência de custódia, oportunidade em que pode: relaxar o flagrante, em caso de ilegalidade; converter o flagrante em prisão preventiva, se presentes os requisitos do artigo 312, do CPP; ou conceder liberdade provisória, cumulada ou não com medidas cautelares diversas.

Ao que tudo indica, o magistrado concedeu a liberdade provisória ao flagranteado. E pode isso?

A resposta é sim. Embora se considere o tráfico de drogas como crime equiparado a hediondo, não há vedação alguma à concessão de liberdade provisória. Essa medida é uma das alternativas postas à disposição do juiz, quando não se vislumbra a presença dos requisitos da prisão preventiva.

Prisão preventiva

A decretação da prisão preventiva pressupõe a existência do a) fumus comissi delicti (prova da existência do crime e indícios de autoria); b) periculum libertatis (garantia da ordem pública, da ordem econômica, da instrução criminal, aplicação da lei penal, por conta do descumprimento das medidas cautelares diversas, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência, e finalmente quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la); c) proporcionalidade; d) contemporaneidade; e e) insuficiência das cautelares diversas.  

RequisitoPrevisão
Fumus comissi delictiArt. 312 Prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria.
Periculum libertatis– Art. 312 (como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal);
– Art. 312, §1º (descumprimento de medidas cautelares diversas);
– Art. 313, III (para garantir a execução das medidas protetivas de urgência);
Art. 313, §1º (quando houver dúvida sobre a identidade civil do preso).
ContemporaneidadeArt. 312, § 2º A decisão que decretar a prisão preventiva deve ser motivada e fundamentada em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada. 
ProporcionalidadeArt. 283. (…)§ 1º  As medidas cautelares previstas neste Título não se aplicam à infração a que não for isolada, cumulativa ou alternativamente cominada pena privativa de liberdade. 
Insuficiência das cautelares diversasArt. 282, § 6º A prisão preventiva somente será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar, observado o art. 319 deste Código, e o não cabimento da substituição por outra medida cautelar deverá ser justificado de forma fundamentada nos elementos presentes do caso concreto, de forma individualizada. 

Adequação da medida

A medida em questão constitui uma cautelar, de modo que, para a sua decretação devem estar presentes todos os requisitos/pressupostos acima elencados. Portanto, não se pode decretá-la como antecipação de eventual pena privativa de liberdade.

Resta saber se a prisão preventiva é adequada à situação posta.

Punição

Pune-se o crime de tráfico com uma pena de reclusão de 5 a 15 anos. A droga estava sendo levada de Londrina/PR a Diadema/SP, incidindo, assim, a causa de aumento prevista no artigo 40, V (tráfico entre estados da Federação). A quantidade/qualidade da droga não servem para, isoladamente, justificar o afastamento da causa de diminuição do tráfico privilegiado (artigo 33, §4º, da Lei 11.343/06), conforme REsp 1887511/SP.

Esse simples cálculo revela a proporcionalidade da prisão no caso concreto, diante de um prognóstico de pena em caso de condenação.

A grande quantidade de cocaína (826 kg), carga avaliada em mais de 40 milhões de reais, e a qualidade da droga (de alto poder viciante), indicam que o flagranteado está seriamente comprometido com a narcotraficância. Isso constitui um indicativo de que, acaso colocado em liberdade, voltará a delinquir, colocando em risco a ordem pública.

Não se está a afirmar (ou presumir) que ele integra organização criminosa, mas a gravidade em concreto da conduta, decorrente do alto volume de entorpecente transportado, demonstram a periculosidade do agente, diante de sua indiferença com a ordem jurídica vigente.

Decisões e jurisprudência

O próprio STJ já decidiu pela manutenção da prisão em casos similares (e com um volume inferior de droga), conforme se vê:

prisão preventiva está devidamente fundamentada na garantia da ordem pública, com base na gravidade concreta do delito, evidenciada pela apreensão de uma porção grande de cocaína pura, com peso aproximado de 44 gramas, um tijolo de maconha com peso aproximado de 636 gramas e uma sacola contendo haxixe, o que denota periculosidade e envolvimento em tráfico de drogas. AgRg no HC 939025 / SP

DIREITO PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. PRISÃO PREVENTIVA. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. RECURSO IMPROVIDO. I. CASO EM EXAME

1. Agravo regimental interposto contra decisão que manteve a prisão preventiva do agravante, acusado de tráfico de drogas, com apreensão de 272 kg de cocaína. A decisão de origem fundamentou a necessidade da prisão preventiva na gravidade da conduta, periculosidade do agente, reincidência e risco à ordem pública.

II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO

2. A prisão preventiva é compatível com a presunção de inocência quando não assume caráter de antecipação de pena e é justificada por elementos concretos.

3. A decisão de origem está alinhada com a jurisprudência, que admite a prisão preventiva em casos de tráfico de drogas pela quantidade apreendida e risco à ordem pública.

4. A substituição por medidas cautelares menos gravosas é inviável diante da gravidade concreta da conduta e periculosidade do agravante.

III. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.

(AgRg no HC n. 907.041/SP, relatora Ministra Daniela Teixeira, Quinta Turma, julgado em 30/10/2024, DJe de 5/11/2024.)

Importante anotar que o STJ tem jurisprudência consolidada no sentido de que os predicados da primariedade, trabalho lícito e residência fixa não tem o condão de, por si sós, obstar a prisão, conforme se extrai do julgado abaixo:

As condições pessoais favoráveis, como primariedade, ocupação lícita e residência fixa, não afastam a necessidade da prisão preventiva quando presentes elementos concretos que justifiquem a medida extrema, como a quantidade de drogas apreendidas e o risco à ordem pública.

(AgRg no HC 943525/PR)

Assim, respeitosamente, e, à vista da própria jurisprudência do STJ, parece-nos necessária e adequada a decretação da prisão do motorista, que, ainda que seja “mula” (jargão utilizado para designar o transportador da droga), revela alta periculosidade.


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