Explicação do caso
O julgamento de um feminicídio em Pernambuco foi marcado por um gesto simbólico da magistrada responsável pelo caso. Antes de proferir a sentença que condenou o réu a 32 anos de prisão, a juíza leu uma carta direcionada à vítima, reconhecendo sua luta e afirmando: “Você foi absolvida”.
A atitude da juíza não apenas humanizou o julgamento, mas reforçou um ponto essencial do sistema penal. Isto é, a busca por justiça não se limita à punição do agressor, mas também deve dar voz às vítimas e garantir que o processo ocorra de forma justa e digna para todas as partes envolvidas.
O caso também chamou atenção para uma triste realidade: durante o julgamento, a defesa tentou reiteradamente desqualificar a vítima. Infelizmente, essa estratégia não é incomum em processos que envolvem crimes contra mulheres, principalmente feminicídios e crimes sexuais.
Para coibir esse tipo de prática, alterou-se o Código de Processo Penal para incluir os arts. 400-A e 474-A, que vedam manifestações que atentem contra a dignidade da vítima ou testemunhas. Além disso, o Supremo Tribunal Federal (STF), na ADPF 1107, determinou que questionamentos sobre o modo de vida e a vida sexual pregressa da vítima são inconstitucionais, por violarem os princípios da igualdade e da dignidade humana.
Aspectos jurídicos relevantes
O caso evidencia a importância do processo penal como ferramenta de justiça não apenas para o réu, mas também para a vítima e para a sociedade. O processo penal convencional – alinhado às diretrizes da Corte IDH – não existe para simplesmente punir. Ele serve também para garantir que a persecução criminal ocorra dentro dos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.
O Processo Penal como garantia para todas as partes
O artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal estabelece que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Essa regra protege tanto o acusado, garantindo-lhe um julgamento justo, quanto a vítima e a sociedade, que têm o direito de ver o crime devidamente apurado e julgado.
A Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), no art. 25.1, reforça a obrigação dos Estados de garantir a efetividade da tutela judicial, incluindo a investigação e punição de crimes.
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A Corte Interamericana de Direitos Humanos já decidiu diversos casos contra o Brasil, destacando a falha do Estado em investigar e punir crimes de violência, sobretudo contra mulheres. O Caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras foi um marco nesse entendimento. Nele, consolidou-se a responsabilidade estatal na garantia de procedimentos eficazes (as obrigações processuais positivas: o investigar, processar e, se o caso, punir).
A proteção da dignidade da vítima também está diretamente relacionada à proibição de revitimização no curso do processo. O art. 400-A do Código de Processo Penal estabelece que “todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima”, proibindo perguntas e manifestações que desrespeitem sua dignidade. O mesmo se aplica ao artigo 474-A, que reforça essa proteção durante o júri.
A ADPF 1107, julgada pelo STF, tornou ainda mais clara essa proibição ao decidir que questionar a vítima sobre sua vida pessoal e sexual é incompatível com a Constituição Federal. Essa decisão impede que a defesa utilize estratégias ofensivas e machistas para desqualificar a mulher. Isso assegura que o julgamento se concentre nos fatos relevantes para a condenação do agressor.
O julgamento também se alinha à perspectiva de gênero adotada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que busca garantir que mulheres vítimas de violência sejam tratadas com respeito e tenham sua dignidade protegida durante o processo penal.
A Recomendação nº 128/2022 do CNJ orienta magistrados a adotarem uma abordagem sensível ao gênero, evitando práticas que revitimizem mulheres e reforcem estereótipos de gênero no Judiciário.
Essa recomendação destaca a necessidade de um olhar atento para as desigualdades estruturais que afetam mulheres em situação de violência, garantindo que a Justiça não apenas julgue, mas também contribua para a erradicação da cultura de impunidade e discriminação.
A postura da juíza, ao ler a carta para a vítima, simboliza esse compromisso com uma Justiça humanizada, que reconhece a dor das vítimas e reafirma seu direito à dignidade.
Consequências e reflexões
A condenação do réu a 32 anos de prisão reafirma o papel do processo penal na busca por justiça. Tal papel não é apenas como um mecanismo de punição, mas também como um instrumento que deve garantir respeito e dignidade a todas as partes. Esse julgamento não foi apenas sobre um crime, mas sobre como a Justiça deve lidar com casos de violência contra mulheres.
A postura da magistrada foi exemplar ao impedir que a defesa desqualificasse a vítima e ao ler a carta simbolizando o reconhecimento de sua luta. Essa atitude demonstra que o juiz não é apenas um aplicador “frio” da lei, mas um guardião da dignidade humana.
Como bem destaca a jurisprudência da Corte Interamericana, a obrigação do Estado vai além de simplesmente punir: é necessário garantir um processo justo, livre de práticas abusivas e que respeite os direitos das vítimas.
Por fim, a decisão do STF na ADPF 1107 estabelece um precedente fundamental para o combate à violência contra a mulher no Brasil. Ao proibir que vítimas sejam desrespeitadas no curso do processo, o Supremo reforça a necessidade de um julgamento ético, que respeite os direitos de todas as partes e garanta a dignidade da vítima.
Conclusão
É essencial que magistrados, membros do MP, defensores, advogados e toda a sociedade continuem atentos para impedir que estratégias desleais transformem processos criminais em espaços de revitimização. O devido processo legal existe para garantir justiça, e não para perpetuar injustiças.
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