No dia 28 de novembro de 2024, um júri popular absolveu uma mãe acusada de tentativa de homicídio contra uma mulher que abusou sexualmente de sua filha de três anos em 2013.
O caso ocorreu na cidade de Crateús, no interior do Ceará, e trouxe à tona questões sobre a reação desesperada de uma mãe diante de uma situação de violência extrema.
Após 11 anos respondendo ao processo, a mulher, defendida pela Defensoria Pública do Ceará (DPCE), teve sua inocência reconhecida.
O caso e os fatos apurados
Em junho de 2013, a mãe, à época com 35 anos, estava trabalhando como faxineira em uma casa e precisou levar sua filha ao local por não ter com quem deixá-la.
Durante o trabalho, enquanto tomava banho antes de ir embora, ouviu o choro da filha e, ao sair, encontrou a menina ferida, com evidentes sinais de violência sexual.
A agressora era uma mulher que frequentava a casa, descrita pela Defensoria Pública como um espaço onde o proprietário permitia o uso de drogas por pessoas em situação de prostituição.
Ao presenciar o estado da filha, a mãe reagiu imediatamente e desferiu duas facadas contra a agressora, em um ato de desespero.
Julgamento e defesa jurídica
O Tribunal do Júri é responsável pelo julgamento dos crimes dolosos contra a vida, e, por força da norma contida no art. 78, I, do CPP, também dos crimes conexos.
Há que sustente que a justificativa da escolha de nosso constituinte decorre do fato de que o homicídio é um crime que qualquer um de nós poderia cometer, ainda que amparado por alguma justificante ou dirimente da culpabilidade, diferentemente do furto, do roubo e do tráfico de drogas.
Ao conselho de sentença, integrado por cidadãos do povo, maiores de 18 anos e com notória idoneidade (art. 436, do CPP), cabe a análise de questões fáticas, decidindo, de acordo com a sua íntima convicção, pela condenação ou absolvição do acusado.
Dois detalhes importantes nesse contexto. Primeiro, que o jurado não precisa justificar o seu voto, que aliás, sequer é revelado. O sigilo das votações e a própria dinâmica da votação garante ao jurado a isenção para julgar de acordo com a sua convicção e com a prova dos autos.
Segundo, que o jurado, não tendo que justificar o seu voto e indicar os fundamentos de seu veredicto, pode absolver por clemência, é dizer, pode perdoar o acusado.
Surgiu, inclusive, intenso debate a respeito da recorribilidade da decisão absolutória proferida pelo conselho de sentença. Oportunidade em que o STF afirmou a possiblidade de interposição de recurso, salientando, no entanto, que:
“O Tribunal somente irá determinar a realização de um novo julgamento se a clemência concedida ao acusado se basear em uma tese apresentada pela defesa que seja incompatível com a Constituição, com os precedentes obrigatórios do Supremo Tribunal Federal e com os fatos descritos no processo. Isso pode ocorrer, por exemplo, se as teses da defesa forem baseadas em homofobia, racismo ou machismo (na “legítima defesa da honra”). Essa análise será feita com base na ata de julgamento, documento que registra as falas das partes e dos advogados.”
Com isso, frequentemente as partes alegam teses metajurídicas em plenário, é dizer, teses que não tem respaldo na lei, buscando convencer os jurados sobre a necessidade de condenação ou de absolvição, como por exemplo, o argumento de que os presídios estão lotados, que o sistema prisional não ressocializa, mas ao contrário funciona como uma “escola do crime”.
Possíveis teses jurídicas
No caso narrado, haveria espaço para alguma tese jurídica?
a) Legítima defesa
O artigo 25, do CP dispõe que
“Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”.
A legítima defesa pode ser própria ou de terceiro, pressupondo, em qualquer caso, que a agressão injusta seja atual ou iminente.
E aí vem o questionamento: estaria a mãe amparada pela legítima defesa de terceiro?
Não parece ser o caso, já que a agressão (o abuso) já teria se concretizado!
Do ponto de vista técnico, portanto, não há legítima defesa.
b) Inexigibilidade de conduta diversa?
Bom, a inexigibilidade de conduta diversa é uma exculpante. O fato, embora típico e ilícito, não seria culpável.
A pergunta que se faz é: poderíamos exigir da acusada uma conduta diferente?
Talvez esse tenha sido o fundamento para que os jurados acatassem a tese de absolvição sustentada.
Embora não nos seja dado “fazer justiça com as próprias mãos” (o que inclusive é crime), a situação de nervosismo talvez tenha retirado, ainda que momentaneamente, o discernimento da acusada.
Faço a afirmação, analisando o tema do ponto de vista jurídico e não como Promotor de Justiça!
c) Seria o caso de incidência do privilégio?
O §1º, do artigo 121, do CP diz que
“Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.”
O caso narrado é clássico exemplo de incidência do privilégio, pois a acusada agiu indiscutivelmente dominada por violenta emoção, diante da constatação de que a sua filha havia sido violentada!
A votação
De acordo com a reportagem, o conselho de sentença absolveu a ré, de modo que eventual tese de privilégio não chegou sequer a ser apreciada pelo conselho de sentença.
Os quesitos devem ser elaborados pelo magistrado em observância ao artigo 483, do CPP. Questiona-se materialidade, autoria, se o jurado absolve o acusado, para, em seguida, formular questionamentos em torno de eventual privilégio e qualificadoras.
Como houve absolvição, todos os quesitos subsequentes (incluindo o privilégio) ficam prejudicados.
Não podemos afirmar qual foi o motivo da absolvição, diante do sistema de votação, que não nos permite perquirir os fundamentos do voto de cada jurado. Pode ter sido por inexigibilidade de conduta diversa, clemência ou mesmo a legítima defesa de terceiro.
Vamos lembrar que os jurados não são necessariamente versados em direito e podem se confundir com questões técnicas. Assim, podem ter se convencido de que ali havia uma agressão atual… o que não nos parece razoável diante do que foi contado na reportagem.
Tempo e sofrimento: 11 anos de espera por justiça
A demora no desfecho do caso trouxe sofrimento adicional à mãe, que enfrentou um longo processo penal enquanto cuidava da filha, vítima de violência.
Esse tempo não apenas impacta emocionalmente, mas também levanta questões sobre a morosidade do sistema judicial e a necessidade de mecanismos que garantam uma resposta mais célere em casos que envolvem contextos sociais e emocionais tão delicados.
Reflexões e repercussões
O caso repercute fortemente na sociedade por envolver dois crimes de alta gravidade: o abuso sexual contra uma criança e a tentativa de homicídio em reação ao crime.
A decisão do júri, entretanto, reafirma a importância de analisar o contexto de forma ampla, levando em conta as circunstâncias que envolvem os atos.
E a pergunta que não cala: foi feita justiça no caso concreto?
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