* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
A Justiça catarinense criou uma vara para julgar casos contra facções criminosas no estado. Detalhe: o julgamento de todos os processos ocorrerá de forma anônima, com tecnologia para proteger os magistrados.
Os magistrados da 1ª Vara Estadual contra facções criminosas em Santa Catarina já estão sendo chamados de “juízes secretos”.
A vara funcionará na comarca de Florianópolis, região que concentra 30,1% dos processos relacionados às facções em todo o Estado.
Vara secreta
Estrutura da “vara secreta”:
• 5 magistrados;
• 35 servidores;
• Acervo de 2.087 processos, sendo 1.841 em andamento e 246 suspensos.
Para garantir a segurança tanto dos juízes quanto dos servidores, os julgamentos serão colegiados e todos os atos, desde audiências até decisões judiciais, ocorrerão de forma anônima.
Além disso, a “vara secreta” atuará sob 4 diretrizes, segundo o desembargador Luiz Antônio Zanini Fornerolli, chefe da Corregedoria-Geral de Justiça:
- Eficiência;
- Celeridade;
- Segurança jurídica; e
- Proteção dos operadores da Justiça.
O desembargador foi incisivo:
“Trabalhamos basicamente com quatro vetores nesta vara, que funcionam como catalisadores. Eficiência, que é o resultado da prestação judicial. Celeridade, porque o Judiciário é responsável por dar uma pronta resposta técnica à sociedade, de acordo com a legislação. Segurança jurídica, para que nós tenhamos uma cultura de decisões a respeito das organizações criminosas. E segurança dos operadores que vão trabalhar nessa unidade jurisdicional”.
A chamada “vara secreta” terá competência em todo o território catarinense, com exceção de processos do Tribunal do Júri, de violência doméstica e do Juizado Especial Criminal.
Ademais, para garantir o anonimato e a consequente segurança dos operadores do Direito, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina firmou parceria com a Microsoft, que desenvolveu um recurso que distorce o rosto e a voz dos magistrados durante as audiências, impedindo a identificação de gênero ou características pessoais, além de realizar reconhecimento facial de testemunhas e a degravação integral das audiências, com transcrição literal do conteúdo.
Análise jurídica
Assim, a grande discussão que se apresenta relacionada aos julgamentos realizados por juízes anônimos é acerca da transparência e do acesso à justiça, além da imparcialidade e legitimidade das decisões judiciais.
Esses julgamentos anônimos teriam o condão de comprometer a confiança no sistema judiciário e a abertura do processo judicial à sociedade?
É o que veremos a partir de agora.
Argumentos
PONTOS FAVORÁVEIS AO JULGAMENTO ANÔNIMO | PONTOS DESFAVORÁVEIS AO JULGAMENTO ANÔNIMO |
Necessidade de proteger a segurança do juiz e de seus familiares, especialmente em casos de crimes organizados ou com grande risco à integridade física. | A falta de identificação do juiz pode dificultar a análise da decisão, a responsabilização e a fiscalização da atuação judicial, arranhando a transparência da prestação jurisdicional. |
Necessidade de garantir a imparcialidade do juiz e evitar pressões externas que possam influenciar a decisão. | O anonimato pode minar a confiança da sociedade no sistema de justiça, especialmente em casos de grande repercussão. |
Experiência exitosa do sistema de anonimado em alguns países, para situações excepcionais, como casos de terrorismo ou crime organizado. | A ausência de identificação dificulta o acompanhamento do processo por parte da sociedade e das partes envolvidas, além de impedir a análise da conduta do juiz. |
O anonimato pode facilitar a tomada de decisões arbitrárias, sem que o juiz se sinta responsabilizado pela sua atuação. | |
O anonimato do juiz pode dificultar a defesa, pois impede a identificação de eventuais vícios ou irregularidades na condução do processo, prejudicando o direito do réu de se defender adequadamente. | |
O anonimato pode ferir o princípio do juiz natural, que estabelece que o julgamento deve ser realizado por um juiz previamente definido por lei, garantindo que ninguém seja julgado por um tribunal de exceção ou por um juiz escolhido especificamente para o caso. |
Segurança e justiça
Como se pode observar acima, os pontos de crítica são bem mais numerosos que os pontos favoráveis, tornando o tema polêmico e gerador de debates acalorados.
O ideal e, portanto, o grande desafio da comunidade jurídica e do próprio ordenamento jurídico, é conciliar a segurança dos magistrados e servidores envolvidos em casos criminais de grande repercussão, ou envolvendo facções criminosas perigosas, com a garantia de acesso à justiça, parcialidade, legitimidade e controle das decisões judiciais.
Princípio da imparcialidade
O princípio da imparcialidade do juiz decorre da Constituição Federal, que veda o juízo ou tribunal de exceção, bem como garante que o processo e a sentença sejam conduzidos pela autoridade competente que sempre será determinada por regras estabelecidas anteriormente ao fato sob julgamento (artigo 5º, XXXVII c/c artigo 5º, LIII).
CF/88
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
...
XXXVII – não haverá juízo ou tribunal de exceção;
...
LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;
Em uma primeira análise, não parece haver inconstitucionalidade quanto à adoção dos chamados “juízes sem rosto” para casos excepcionais, haja vista que o magistrado não está sendo designado para aquele caso específico (não é juízo de exceção).
Além disso, as decisões exaradas pelos juízes anônimos podem ser controladas e fiscalizadas pelo Tribunal, não havendo ofensa ao princípio da imparcialidade ou qualquer afronta à legitimidade das decisões.
Projeto na Câmara

Inclusive, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 141/24, que determina que decisões judiciais referentes a crimes cometidos com violência ou grave ameaça, que tragam riscos à vida do juiz, sejam proferidas em anonimato para resguardar a identidade do magistrado.
O texto objetiva alterar o Código de Processo Penal.
A principal alteração proposta no CPP é o acréscimo do artigo 381-A, com a seguinte redação:
“Art. 381-A. Nos crimes cometidos com violência ou grave ameaça, havendo risco à vida do juiz, as decisões judiciais serão proferidas em anonimato de forma a resguardar a identidade do magistrado.”
O autor da proposta, deputado Félix Mendonça Júnior, justifica a medida:
“Muitos magistrados que atuam no âmbito penal são constantemente ameaçados de morte ou assassinados em razão da função que desempenham e, na maioria dos casos, precisam lidar com pessoas de alta periculosidade”.
Segundo justificativa do PL, muitos magistrados que atuam no âmbito penal são constantemente ameaçados de morte ou assassinados em razão da função que desempenham e, na maioria dos casos, precisam lidar com pessoas de alta periculosidade.
A proposição busca adotar medidas para minimizar os riscos à vida desses magistrados, possibilitando que atuem na função jurisdicional, mas de forma a preservar-lhes a vida, eis que os citados ataques demonstram a vulnerabilidade não só do magistrado enquanto pessoa física, mas do Estado e da Democracia.
O que se busca com essa proposta é proteger a pessoa do julgador e não o ato jurídico por ele praticado, que continuará público, preservando assim o princípio da publicidade, insculpido no art. 5º, LX, e art. 93, IX da Constituição Federal de 1988, bem como o princípio do juiz natural previsto no art. 5º, XXXVII e LIII, também da Carta Magna.
Assim, ao acusado será garantido um julgamento justo e imparcial por um magistrado constitucionalmente investido para tais funções com todas as decisões processuais públicas.
Ótimo tema para provas de processo penal e direito constitucional.
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