* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Entenda o que aconteceu

Um caso inusitado chamou a atenção do mundo jurídico recentemente: o juiz Tonny Carvalho Araújo Luz, titular da 2ª vara de Balsas/MA, está sendo investigado por uso inadequado de ferramentas de inteligência artificial.
A decisão de abrir investigação partiu do desembargador corregedor José Luiz Oliveira de Almeida, que destacou que a produtividade do juiz passou de uma média mensal de 80 sentenças para 969 apenas no mês de agosto/2024.
Sinais atípicos
Chamaram a atenção do corregedor alguns sinais atípicos:
- Número elevado de sentenças reformadas por ausência de fundamentação;
- Número elevado de sentenças reformadas por ausência de análise probatória;
- Distribuição indevida de processos por prevenção;
- Aplicação de precedentes inexistentes;
- Produtividade mensal acima dos padrões normais.
Todos esses sinais ligaram o alerta da Corregedoria, que suspeita que o magistrado estava prolatando as sentenças por meio de inteligência artificial, gerando insegurança jurídica.
A correição identificou uma produtividade fora dos padrões da unidade: enquanto a média mensal de sentenças era de 80, em agosto de 2024 foram proferidas 969 decisões, muitas delas com padrão textual uniforme – o que reforça a suspeita de uso irregular de IA.
Ademais, o desembargador corregedor destacou a gravidade da situação:
"Uma produção que foge do padrão estatístico da unidade... não se trata apenas de quantidade, mas de um padrão que levanta dúvidas sobre a autenticidade da atuação judicial... Não é apenas uma falha pontual - trata-se de um padrão de conduta que precisa ser enfrentado com rigor institucional”.
Logo, diante desse quadro de inconsistências, a Corregedoria determinou o envio dos autos à Coordenadoria de Reclamações e Processos Disciplinares para a expedição da portaria de instauração da sindicância.
Em seguida, os autos retornarão à juíza corregedora responsável, para acompanhamento das recomendações ainda pendentes.
Fundamentos para a nulidade da sentença
Vamos apontar então alguns fundamentos que podem servir de base para a alegação de nulidade da sentença feita por inteligência artificial.
1º) O art. 5º, LIII, da CF/88 (ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente): a autoridade competente para julgar o processo da apelante é o cidadão investido no cargo de magistrado, e não uma inteligência artificial;
2º) O art. 487, do CPC: o artigo prevê que haverá o julgamento do mérito quando o juiz tomar uma das atitudes indicadas nos incisos do artigo. O juiz, e não a inteligência artificial;
3º) O art. 5º, XXXVII, da CF/88: o inciso constitucional prevê que não haverá juízo ou tribunal de exceção. O julgamento pela inteligência artificial estaria fazendo às vezes de juízo de exceção;
4º) O art. 8º, item 1, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos: a Convenção prevê que toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.
Portanto, a utilização de IA estaria retirando da parte o direito de um juiz competente, de carne e osso, ouvi-la.
5º) O art. 5º, caput, da CF/88: todos são iguais perante a lei. O uso do cálculo de probabilidade de uma decisão juridicamente correta feita pela inteligência artificial acabaria violando o princípio da igualdade.
Características de textos de IA
Algumas características encontradas em textos criados por inteligência artificial:
- Estrutura técnica e formal: o texto estrutura-se com grande precisão técnica, com sequências de citações legais e explicações doutrinárias concisas, características comuns em textos gerados por IAs treinadas para auxiliar em consultas jurídicas;
- Uso extensivo de jurisprudência e referências normativas: modelos de IA treinados em grandes bases de dados de jurisprudência e doutrina costumam replicar exatamente esse tipo de estrutura, citando súmulas e decisões de tribunais superiores para fundamentar explicações jurídicas;
- Linguagem jurídica complexa: a escolha de palavras e o tom impessoal também são indicativos. A IA tende a replicar linguagem formal e técnica, especialmente em áreas como o direito, onde a interpretação precisa de normas é fundamental. Contudo, sem ferramentas específicas para análise de autoria de texto ou confirmação com a fonte original, é impossível afirmar com certeza se foi uma IA ou não que escreveu o texto. Essa avaliação se baseia apenas na observação do estilo e da estrutura.
- Citação de jurisprudência inexistente: não é raro a IA trazer, em textos jurídicos, a exemplo de uma sentença, a citação de decisões judiciais inexistentes ou imprecisas, ante o estágio ainda inicial da tecnologia.
Ética
O uso da inteligência artificial para auxílio nas atividades judiciárias é amplamente debatida e aceita desde o lançamento dessas ferramentas, mas, apesar de ser um meio de padronização e revisão de pronunciamentos judiciais, o seu uso deve ser de forma ética e complementar à atuação dos servidores e magistrados, não substituindo o trabalho humano.
O Código de Ética da Magistratura Nacional prevê, em seus artigos 15 a 19, o dever de integridade pessoal e profissional, os quais o magistrado deve observar.
Além disso, o Estatuto da Magistratura (LC nº 35/79), em seu art. 35, VIII, traz como dever do magistrado “manter conduta irrepreensível na vida pública e particular”.
Art. 35 - São deveres do magistrado:
...
VIII - manter conduta irrepreensível na vida pública e particular.
As penas disciplinares decorrentes da quebra dos deveres da magistratura estão arroladas no artigo 42, do Estatuto da Magistratura. Vejamos então:
Art. 42 - São penas disciplinares:
I - advertência;
II - censura;
III - remoção compulsória;
IV - disponibilidade com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço;
V - aposentadoria compulsória com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço;
VI - demissão.
Podemos concluir, em tese, que se restar comprovado que a sentença foi feita por Inteligência Artificial, ao invés do magistrado, é mesmo caso de anulação da decisão, por violação ao direito fundamental do devido processo legal, que determina o julgamento por um juiz natural e competente, e não por um algoritmo de IA.
Ótimo tema para ser cobrado em provas de direito processual e direito constitucional.
Quer saber quais serão os próximos concursos?
Confira nossos artigos para Carreiras Jurídicas!