Guerra dos móveis: falsa acusação como fato gerador de danos à imagem e à reputação x direito de crítica
Imagem: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

Guerra dos móveis: falsa acusação como fato gerador de danos à imagem e à reputação x direito de crítica

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Entenda a guerra dos móveis

A 17ª Vara Federal no Distrito Federal condenou o governo Lula (União) a indenizar o ex-presidente Jair Bolsonaro e a ex-primeira-dama, Michelle Bolsonaro, em R$ 15 mil por danos morais, em razão de declarações envolvendo os móveis do Palácio da Alvorada, no que ficou conhecido como “a guerra dos móveis”. A AGU já afirmou que recorrerá da decisão.

Em 2023, no início do mandato, o presidente Lula afirmou, sem apresentar provas, que o casal Bolsonaro havia “levado tudo”. Contudo, os móveis que teriam sumido foram encontrados no fim daquele ano.

A primeira-dama, Janja, afirmou que o Palácio da Alvorada estava em estado de conservação ruim e que faltavam móveis “originais” do local. Lula reclamou de começar o seu governo vivendo em um hotel de Brasília por causa da má conservação do local.

Lula disparou:

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“Não tem cama, não tem sofá. Possivelmente, se fosse dele [Bolsonaro], ele tinha razão de levar mesmo. Mas ali é uma coisa pública. Não sei porque tem que levar cama embora. Troca o colchão e troca a roupa de cama e dorme à vontade”…

“Não sei por que que fizeram. Não sei se eram coisas particulares do casal [Bolsonaro], mas levaram tudo. Então, a gente está fazendo a reparação, porque aquilo é um patrimônio público. Tem que ser cuidado”.

Na ocasião, o governo Lula gastou mais de R$379 mil com móveis para a residência oficial, sem licitação.

Em resposta às acusações de Lula e Janja, o ex-presidente Jair Bolsonaro afirmou, em uma rede social, que todos os móveis estavam no Alvorada e que Lula fez uma falsa comunicação de furto. Já Michelle Bolsonaro, ex-primeira-dama, afirmou que todos os móveis estavam em depósitos do Palácio da Alvorada.

Em setembro de 2023 os objetos foram localizados pela Presidência da República. A Casa Civil da Presidência da República esclareceu:

“Concluídos os trabalhos da Comissão de Inventário Anual da Presidência da República, os 261 bens não localizados anteriormente, da unidade patrimonial do Palácio da Alvorada, foram localizados”.

Análise jurídica

O casal Bolsonaro (Jair e Michelle) já havia processado diretamente Lula pelo caso. Contudo, a Justiça do Distrito Federal extinguiu a ação, sem analisar o mérito, alegando que o processo deveria ter sido apresentado contra a União. Assim, um novo pedido foi apresentado na Justiça Federal. Dessa vez foi aceito.

Bolsonaro fez 2 pedidos ao Poder Judiciário:

a) condenação da União em R$20 mil por danos morais (honra e imagem); e

b) retratação publicada nos canais oficiais da Presidência da República.

O juiz da causa, o Dr. Diego Câmara, acolheu parcialmente o primeiro pedido, condenando a União a pagar R$15 mil a título de danos morais, entendendo que, como os itens em referência sempre estiveram sob guarda da União durante todo o período indicado, restou configurado dano à honra objetiva e subjetiva do casal Bolsonaro.

Já em relação ao segundo pedido (retratação pública), o juiz negou o pedido, sob o fundamento de que a fala de Lula “não se deu pelas redes sociais vinculadas à Presidência da República, nem mesmos pelos canais oficiais de comunicação do Governo Federal, não se revelando possível e adequado que eventual direito de retratação se manifeste por tal meio“.

O magistrado registrou que as falas “alcançaram grande repercussão na mídia nacional e internacional, acarretando mácula à sua imagem e reputação [de Bolsonaro e Michelle]”. O juiz afirmou, ainda, que os comentários do atual presidente foram além do “direito de crítica” ao sugerirem o envolvimento de seus adversários “em desvio de móveis do palácio presidencial que, conforme apurado, sequer ocorreu”.

A questão discutida gira em torno de saber se a falsa acusação se insere dentro do direito de crítica, ou se pode se enquadrar como ato ilícito gerador de danos à honra e à imagem (danos extrapatrimoniais).

Direito de crítica e danos morais1

O direito de crítica é um importante aspecto da liberdade de expressão, e consiste na possibilidade de emitir uma opinião (juízo de valor) sobre um fato, uma pessoa, uma obra ou uma instituição, e tem por objetivo garantir o pluralismo de ideias, o debate público e a fiscalização dos poderes públicos e privados. Ele é fundamental para garantir o exercício da cidadania, da democracia e do controle social.

Mas, como sabemos, não existem direitos absolutos. O direito de crítica também tem seus limites, devendo respeitar os demais direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, como o direito à honra, à imagem, à intimidade e à vida privada. Também deve observar os princípios da veracidade, da proporcionalidade e da boa-fé.

Recomendações para o exercício regular do direito de crítica:

  • Deve-se fundamentar a crítica em fatos verídicos e comprováveis. Não se pode atribuir falsamente a alguém a autoria de um crime (calúnia) ou imputar a alguém um fato ofensivo à sua reputação (difamação).
  • A crítica deve ser proporcional ao fato criticado. Não se pode usar termos desproporcionais ou excessivos que ofendam a dignidade ou o decoro de alguém (injúria).
  • Deve-se fazer a crítica com respeito e civilidade. Não se pode usar palavras ou expressões que incitem o ódio, a violência ou a discriminação contra alguém por motivo de raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência (injúria qualificada).
  • A crítica deve ter uma finalidade legítima e socialmente aceitável. Não se pode usar a crítica como pretexto para atacar pessoalmente alguém ou para obter vantagem indevida.

Abuso do direito de crítica

Quando uma pessoa exerce o direito de crítica além dos limites impostos pelo ordenamento jurídico ela comete abuso de direito. Nesse caso, pode haver ofensa à honra, à dignidade ou à imagem de alguém por meio de injúria, difamação ou calúnia, gerando danos passíveis de indenização.

O direito de crítica é considerado um direito fundamental, e tem por base, dentre outros, o artigo 5º, IV, da CF:

CF/88

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes...

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

...

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

...

§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

Mas a Constituição também alberga o direito à honra/imagem:

CF/88

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes...

...

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

E o código civil não deixa dúvidas ao punir os danos decorrente da prática de ato ilícito:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

...

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Enfim, o Judiciário considerou que as falas do presidente Lula e de sua esposa, Janja, excederam o mero direito de crítica, causando danos à honra e à imagem do ex-presidente Bolsonaro e sua esposa, Michelle, acarretando a condenação da União ao pagamento de R$15 mil reais.

A União poderá ingressar com ação de regresso em face do presidente Lula, a fim de se ressarcir do prejuízo causado pela fala desarrazoada e sem fundamentos do ex-presidente da República.

Ótimo tema para provas de direito civil e administrativo.


  1. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/artigos/o-direito-de-critica-na-sociedade-democratica/1814237525>. ↩︎

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