Prof. Gustavo Cordeiro
Introdução: a divergência na Primeira Turma
O julgamento da Ação Penal 2668 na Primeira Turma do STF registrou divergência significativa quando o Ministro Luiz Fux votou pela absolvição de Jair Bolsonaro em todos os cinco crimes denunciados pela Procuradoria-Geral da República. Esta decisão contrariou os votos condenatórios dos Ministros Alexandre de Moraes e Flávio Dino, estabelecendo o placar em 2 a 1 pela condenação do ex-presidente.
Este artigo apresenta análise exclusivamente jurídica e descritiva dos fundamentos invocados pelo Ministro Fux para absolver Bolsonaro, contrastando com os argumentos utilizados por Moraes para a condenação, sem qualquer viés político-partidário. O objetivo é fornecer aos candidatos a Magistratura, Ministério Público, Defensoria Pública e demais carreiras jurídicas uma compreensão técnica da divergência jurisprudencial sobre temas fundamentais de direito penal e processual penal.
Os fundamentos de Fux para a absolvição de Bolsonaro
Crime de organização criminosa armada
Para o crime de organização criminosa armada (art. 2º da Lei 12.850/2013), Fux fundamentou a absolvição na ausência de estrutura organizacional típica do delito. O ministro interpretou que não houve formação de “entidade autônoma com processos decisórios próprios”, elemento essencial para caracterização do crime.
Fux considerou que as condutas não demonstraram divisão hierárquica clara nem permanência suficiente para configurar organização criminosa. Para o ministro, as reuniões e articulações constituíram atos políticos dentro das prerrogativas presidenciais, não configurando associação criminosa estruturada.
O ministro também afastou o caráter armado, argumentando que não houve potencial armamentício efetivo demonstrado, mas apenas cogitações sobre envolvimento militar que não se materializaram em atos concretos.
Crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito
Quanto ao art. 359-L do Código Penal, Fux baseou a absolvição na ausência de violência ou grave ameaça específica contra o Estado Democrático. O ministro interpretou que as críticas ao sistema eleitoral constituem exercício legítimo da liberdade de expressão, não configurando tentativa de abolição.
Para Fux, “a simples defesa da mudança do sistema de votação não pode ser considerada narrativa subversiva”. O ministro caracterizou a postura de Bolsonaro como de “boa-fé”, visando “esclarecer e aperfeiçoar o sistema eletrônico de votação”.
O ministro aplicou o conceito de cogitação versus execução, argumentando que as minutas golpistas constituíam “mera documentação ‘cogitatio'”, não configurando atos executórios necessários para caracterizar a tentativa do crime.
Crime de Golpe de Estado
Para o art. 359-M do Código Penal, Fux fundamentou que “as condutas praticadas durante o mandato presidencial não podem configurar” este crime específico. O ministro interpretou que discussões sobre medidas constitucionais (estado de sítio, estado de defesa) não caracterizam tentativa de golpe.
Fux foi categórico ao afirmar que “é contraditório imaginar tentativa de abolição do Estado Democrático com autorização e participação ativa dos membros do Congresso”. Para o ministro, as minutas prevendo medidas que dependem de aprovação congressional não configuram tentativa de deposição do governo.
O ministro também aplicou a ausência de dolo específico, argumentando que não havia intenção inequívoca de depor o governo eleito, mas sim exercício de prerrogativas constitucionais durante a transição de governo.
Crime de dano qualificado
Quanto ao art. 163, parágrafo único do Código Penal, Fux absolveu Bolsonaro por ausência de nexo causal com os eventos de 8 de janeiro. O ministro argumentou que “o trágico episódio foi mais reflexo da insatisfação daqueles que estavam lá do que reflexo de um golpe planejado”.
Para Fux, “Bolsonaro não tinha dever algum de desmobilizar” as manifestações, pois tal exigência violaria o princípio da liberdade de expressão. O ministro interpretou que não há responsabilidade penal por omissão quando não existe dever jurídico específico de agir.
O ministro também considerou que “não há qualquer prova” de que Bolsonaro tenha determinado diretamente a destruição dos bens públicos, sendo insuficiente a conexão remota entre discursos e atos de terceiros.
Crime de deterioração de patrimônio tombado
Para o art. 62, I da Lei 9.605/1998, Fux aplicou os mesmos fundamentos do dano qualificado, enfatizando a ausência de participação direta nos atos materiais e a falta de nexo causal entre as condutas presidenciais e a deterioração dos bens tombados.
O ministro interpretou que os eventos de 8 de janeiro resultaram de “insatisfação popular” espontânea, não de coordenação criminosa envolvendo o ex-presidente. Para Fux, a responsabilidade penal exige participação concreta nos atos lesivos, não sendo suficiente a influência política remota.
Ausência de dolo e nexo causal – fundamento transversal

O núcleo central da argumentação de Fux, aplicável a todos os crimes, baseou-se na ausência de dolo específico e falta de nexo causal. O ministro fundamentou que “além de faltar o dolo, falta o indispensável nexo de causalidade” para vincular o ex-presidente aos resultados criminosos.
Fux utilizou analogia demonstrativa: seria “igualmente absurdo considerar como partícipe em um atentado à vida de um candidato todos aqueles que houvessem proferido discursos inflamados contra sua pessoa”, referindo-se ao atentado de 2018 contra o próprio Bolsonaro.
Ausência de conhecimento dos planos específicos
Transversalmente a todos os crimes, Fux foi categórico: “não há nenhum elemento que identifique ciência do ex-presidente” sobre os planos extremos como “Punhal Verde e Amarelo” e grupo “Copa 2022”.
O ministro sustentou “não há absolutamente nenhuma prova” do conhecimento de Bolsonaro sobre monitoramento de autoridades ou planos de assassinato, elemento fundamental para caracterizar participação consciente nos crimes.
Crítica à individualização da conduta
Fux criticou diretamente a técnica acusatória da PGR, sustentando que “não descreveu a conduta de Bolsonaro individualizada”. Para o ministro, a denúncia falhou em distinguir especificamente quais atos concretos teriam sido praticados pelo ex-presidente para cada crime imputado.
Confronto entre os argumentos de Moraes e Fux
Sobre a liderança da organização criminosa
MORAES (CONDENAÇÃO):
- Identificou Bolsonaro como líder inequívoco da organização criminosa
- A posição presidencial foi instrumentalizada para conferir legitimidade às ações
- Organização estruturada durante 18 meses com divisão clara de tarefas
- Potencial armamentício pela tentativa de envolvimento das Forças Armadas
FUX (ABSOLVIÇÃO):
- Negou existência de “entidade autônoma” com processos decisórios próprios
- Ausência de dolo específico para constituir organização criminosa
- Condutas não caracterizam estrutura organizacional típica do crime
- Absolveu todos os réus do crime de organização criminosa armada
Sobre o conhecimento dos planos criminosos
MORAES (CONDENAÇÃO):
- Três cópias do plano “Punhal Verde e Amarelo” foram levadas ao Palácio do Alvorada
- Evidenciou conhecimento e anuência de Bolsonaro sobre planos extremos
- Reuniões com comandantes militares demonstraram discussão de quebra constitucional
- Apresentação da “minuta golpista” configurou busca de apoio militar
FUX (ABSOLVIÇÃO):
- “Não há nenhum elemento” que identifique ciência do ex-presidente
- Ausência de provas diretas do conhecimento sobre assassinatos planejados
- Minutas constituem “mera cogitação”, não atos executórios
- Falta nexo causal entre documentos e conduta presidencial
Sobre os eventos de 8 de janeiro
MORAES (CONDENAÇÃO):
- Atos executórios “consumaram” os crimes contra o Estado Democrático
- Bolsonaro tinha dever de desmobilizar manifestações antidemocráticas
- Conexão direta entre discursos presidenciais e invasão dos prédios públicos
- Configuração de dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado
FUX (ABSOLVIÇÃO):
- “Bolsonaro não tinha dever algum de desmobilizar” manifestações
- Solicitação de desmobilização violaria liberdade de expressão
- Eventos foram “reflexo da insatisfação”, não de golpe planejado
- Comparação com protestos de junho de 2013 como manifestação legítima
Sobre as ameaças ao Poder Judiciário
MORAES (CONDENAÇÃO):
- Ameaças configuraram violência moral e grave ameaça
- Manifestação de 7 de setembro demonstrou desacato institucional
- “Ultimato” ao STF caracterizou tentativa de intimidação
- Instrumentalização de órgãos públicos para pressionar o Judiciário
FUX (ABSOLVIÇÃO):
- Críticas constituem exercício da liberdade de expressão
- Ausência de dolo específico para intimidar autoridades
- Diferenciação entre crítica política e ameaça criminosa
- Boa-fé nas manifestações sobre sistema eleitoral
Os votos específicos de Fux sobre outros réus
Condenação de Mauro Cid
Embora tenha absolvido Bolsonaro, Fux condenou Mauro Cid pelo crime de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito. O ministro fundamentou que “não é crível o colaborador ter recebido R$ 100 mil de Braga Netto e não saber para que operação criminosa iria o montante”.
Para Fux, mesmo como “mero ajudante de ordens”, Cid se envolveu diretamente nos preparativos para operação visando prender Alexandre de Moraes, caracterizando participação consciente nos planos criminosos.
Condenação de Braga Netto
Fux também condenou Walter Braga Netto por tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, mas o absolveu dos demais crimes. O ministro considerou que Braga Netto, “junto ao major De Oliveira e Mauro Cid, planejou e financiou” operação para assassinar Alexandre de Moraes.
Críticas de Fux ao próprio STF
Questionamento da competência
Fux reiterou que o STF sequer deveria julgar o processo, mantendo posição sobre incompetência absoluta da Corte para crimes de ex-presidente. O ministro sustentou que, se houvesse competência, o julgamento deveria ocorrer no Plenário, não na Primeira Turma.
Separação entre direito e política
O ministro foi enfático ao afirmar que “não compete ao STF realizar juízo político” e que “o papel do julgador não pode ser confundido com o de ator político”. Esta posição representou crítica velada à atuação de outros ministros no caso.
Comparação com o mensalão
Fux mencionou o processo do Mensalão, afirmando que “as penas foram irrisórias diante da grandeza daquele ato atentatório contra a democracia”. O ministro sugeriu que a caracterização de organização criminosa poderia ter alterado aquele julgamento.
Resultado do julgamento: maioria para Cid e Braga Netto
O voto de Fux formou maioria (3 votos) para condenar Mauro Cid e Walter Braga Netto pelo crime de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito. Com os votos de Moraes, Dino e Fux, ambos os réus foram condenados por este crime específico.
Esta situação criou paradoxo jurídico interessante: o líder (Bolsonaro) foi absolvido enquanto os subordinados (Cid e Braga Netto) foram condenados pelo mesmo tipo de conduta, evidenciando as diferentes interpretações sobre autoria e participação nos crimes contra a segurança nacional.
Conclusão: divergência e implicações jurisprudenciais
A divergência entre Moraes e Fux na AP 2668 evidencia a complexidade dos crimes contra a segurança nacional e a dificuldade de caracterização em casos envolvendo autoridades públicas. Para concurseiros, o debate oferece lições fundamentais sobre aplicação de institutos penais clássicos em contextos políticos complexos.
A diferenciação entre cogitação e execução representa conceito fundamental que certamente será cobrado em futuras questões sobre tentativa e iter criminis. A discussão sobre liberdade de expressão versus narrativa subversiva também se tornará tema recorrente.
A crítica à individualização da conduta na denúncia demonstra a importância técnica da descrição específica dos fatos imputados a cada réu, princípio fundamental do devido processo penal.
O paradoxo da absolvição do líder com condenação dos subordinados oferece material didático excepcional para compreensão das teorias de autoria e participação no direito penal brasileiro.
Quer saber quais serão os próximos concursos?
Confira nossos artigos para Carreiras Jurídicas!