Introdução: um caso sem precedentes no judiciário brasileiro
O recente caso envolvendo o juiz aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, que durante 45 anos utilizou uma identidade falsa para construir sua carreira jurídica, representa um dos mais surpreendentes episódios da história do judiciário brasileiro.
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Narra-se que, José Eduardo Franco dos Reis, brasileiro nato, criou para si a identidade fictícia de Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield, supostamente descendente de nobres britânicos. Com este nome, ele não apenas ingressou na Faculdade de Direito da USP, mas também foi aprovado em concurso público para magistratura em 1995, exercendo a função de juiz até sua aposentadoria em 2018.
A fraude só veio à tona em outubro de 2024, quando o sistema biométrico do Poupatempo identificou a duplicidade de registros ao comparar as impressões digitais apresentadas pelo falso Edward com as registradas em nome de José Eduardo.
Esta revelação suscita uma questão jurídica de extrema relevância e complexidade: qual seria o status das milhares de sentenças e decisões proferidas pelo magistrado ao longo de mais de duas décadas de atuação? Estaríamos diante de um caso de funcionário de fato, cujos atos manteriam sua validade, ou de um usurpador de função pública, cujas decisões estariam maculadas de nulidade absoluta?
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A natureza da fraude identitária e seus reflexos na investidura
De início, cumpre distinguir a peculiaridade do caso em análise.
Não estamos diante de uma simples irregularidade formal na investidura do cargo, como ocorreria, por exemplo, se o juiz tivesse sido nomeado por autoridade incompetente ou em desrespeito a formalidades do concurso.
A situação é consideravelmente mais grave: trata-se de uma fraude identitária completa, em que a própria pessoa física que prestou o concurso e foi empossada no cargo não corresponde, juridicamente, àquela que efetivamente exerceu a função.
Com efeito, José Eduardo Franco dos Reis não apenas utilizou um nome falso, como construiu toda uma persona fictícia, incluindo origem familiar e formação acadêmica inventadas.
Destarte, o concurso público foi prestado e vencido por alguém que, formalmente, não existe no mundo jurídico.
Noutras palavras, a fraude contamina não apenas a regularidade do ato de investidura, mas a própria existência jurídica do magistrado enquanto titular do cargo.
Funcionário de fato versus usurpador de função pública: uma análise conceitual
Para compreender adequadamente as consequências jurídicas deste caso, é imperioso estabelecer a distinção técnica entre duas figuras jurídicas fundamentais: o funcionário de fato e o usurpador de função pública.
O funcionário de fato na doutrina administrativista
O funcionário de fato (ou agente putativo) é aquele que, apesar de possuir investidura irregular, mantém algum vínculo jurídico com a Administração Pública que lhe confere aparência de legitimidade. A doutrina administrativista, conforme leciona José dos Santos Carvalho Filho, classifica os agentes de fato em duas categorias:
- Agentes necessários: atuam em situações emergenciais ou excepcionais;
- Agentes putativos: desempenham atividade pública com aparência de legitimidade, embora com investidura viciada.
Na teoria do funcionário de fato, os atos praticados pelo agente, embora formalmente inválidos por vício de competência, produzem efeitos jurídicos em virtude da aparência de legalidade e da boa-fé de terceiros.
Doutra banda, a jurisprudência dos tribunais superiores tem reconhecido a validade dos atos praticados por funcionários de fato, especialmente quando serviram ao interesse público e não causaram prejuízo a terceiros.
O usurpador de função pública: conceito e consequências
Entrementes, o usurpador de função pública representa figura distinta e mais grave.
Trata-se daquele que exerce função pública sem qualquer investidura ou liame jurídico precedente com o Estado. Sua atuação configura crime previsto no art. 328 do Código Penal, e os atos por ele praticados são considerados juridicamente inexistentes, não gerando, via de regra, efeitos para os particulares.
Face ao exposto, a distinção central reside na existência, ainda que irregular, de algum vínculo ou procedimento que legitime minimamente a atuação do agente.
Enquanto o funcionário de fato possui investidura viciada (mas existente), o usurpador simplesmente se apropria da função sem qualquer legitimação prévia.
O caso concreto: funcionário de fato ou usurpador?
O caso do falso juiz britânico situa-se em uma zona cinzenta entre essas duas categorias jurídicas tradicionais, desafiando os limites da dogmática administrativa.
Por um lado, existem elementos que aproximariam José Eduardo Franco dos Reis da figura do funcionário de fato:
- Submeteu-se a concurso público regular;
- Foi formalmente nomeado e empossado no cargo;
- Exerceu regularmente a função durante décadas;
- Suas decisões foram revisadas normalmente pelas instâncias superiores;
- Criou-se uma aparência de legitimidade estável e duradoura.
Por outro lado, características do caso sugerem tratar-se de usurpação de função pública:
- A identidade utilizada para prestar o concurso era completamente fictícia;
- A fraude identitária vicia o próprio ato inicial de inscrição no concurso;
- Estabeleceu-se um vínculo jurídico com o Estado e uma pessoa inexistente;
- Houve dolo na construção e manutenção da fraude durante décadas.
De mais a mais, um aspecto crucial para esta análise é verificar se o falso juiz possuía a qualificação técnica necessária para o exercício do cargo.
Segundo as informações disponíveis, José Eduardo de fato cursou Direito na USP e foi aprovado regularmente no exame da OAB e no concurso para magistratura, ainda que sob identidade falsa.
Isto é, o vício estaria na identidade civil, não necessariamente na capacidade técnica para o exercício da função.
A validade das sentenças: princípios norteadores e solução jurídica
Princípios aplicáveis na análise da validade das decisões
A questão da validade das sentenças proferidas pelo falso juiz deve ser analisada à luz de diversos princípios fundamentais do ordenamento jurídico:
- Segurança jurídica: princípio constitucional que visa proteger situações consolidadas pelo tempo, evitando a revisão de atos e relações já estabilizadas;
- Boa-fé objetiva: os jurisdicionados que submeteram suas controvérsias ao falso juiz agiram de boa-fé, confiando na aparência de legitimidade do magistrado;
- Teoria da aparência: confere proteção jurídica às situações em que uma realidade aparente gerou legítima confiança em terceiros;
- Teoria da imputação (ou Teoria do Órgão): os atos praticados pelo agente público são imputados ao órgão que representa, não à sua pessoa física;
- Proporcionalidade: exige ponderação entre a gravidade do vício e as consequências da invalidação das decisões.
Possíveis soluções jurídicas
Considerando os princípios acima elencados e a peculiaridade do caso, vislumbram-se três possíveis soluções para a questão da validade das sentenças:
- Validade plena das decisões: reconhecendo a aplicação da teoria do funcionário de fato, todas as sentenças seriam válidas e eficazes, independentemente da fraude identitária;
- Nulidade absoluta: considerando o magistrado como usurpador de função pública, todas as suas decisões seriam juridicamente inexistentes;
- Solução intermediária: preservação das decisões já transitadas em julgado por força da segurança jurídica, permitindo a revisão apenas daquelas ainda em fase recursal.
A teoria do funcionário de fato aplicada ao caso concreto

A aplicação da teoria do funcionário de fato ao caso do falso juiz britânico depende da resposta a uma questão fundamental: a fraude identitária representa mera irregularidade na investidura ou atinge a própria existência do vínculo jurídico com o Estado?
Perceba, a peculiaridade do presente caso reside na completa falsidade da identidade utilizada para ingresso no serviço público. Não se trata de irregularidade posterior à investidura, mas de fraude que pode contaminar o próprio ato inicial de ingresso na carreira pública.
Nessa senda, o caso transcende as hipóteses tradicionais de funcionário de fato, situando-se em zona intermediária. Por um lado, houve procedimento formal de seleção e nomeação; por outro, a pessoa nomeada era juridicamente inexistente.
A solução mais adequada, portanto, parece ser a aplicação da teoria do funcionário de fato com temperamentos.
As decisões já transitadas em julgado devem ser preservadas por força da segurança jurídica e proteção da boa-fé dos jurisdicionados.
Eu estou curioso para saber como o Poder Judiciário decidirá, e você o que acha?
Penso que, ainda que se reconheça a gravidade da fraude perpetrada, a invalidação retroativa de todas as decisões proferidas ao longo de décadas poderia gerar um caos jurídico de proporções incalculáveis, afetando milhares de jurisdicionados que agiram de boa-fé…
A preponderância do princípio da segurança jurídica, neste caso, parece ser a solução mais adequada.
Vou fazer um breve resumo aqui das correntes:
Funcionário de Fato vs. Usurpador de Função
Argumentos para Funcionário de Fato | Argumentos para Usurpador de Função |
Submeteu-se regularmente ao concurso público e foi aprovado | A identidade utilizada era completamente fictícia |
Foi formalmente nomeado e empossado pelo Estado | A fraude identitária vicia o próprio ato inicial de inscrição no concurso |
Possuía qualificação técnica real (formação em Direito) | O vínculo jurídico foi estabelecido com pessoa juridicamente inexistente |
Exerceu legitimamente a função por mais de duas décadas | Houve dolo e má-fé na criação e manutenção da fraude por décadas |
Suas decisões foram normalmente revisadas pelas instâncias superiores | Falsificou múltiplos documentos públicos para sustentar a fraude |
Estabeleceu-se genuína aparência de legitimidade | A falsidade atinge um elemento essencial do vínculo: a própria pessoa |
Integrou formalmente a estrutura administrativa do Judiciário | Manteve dupla identidade durante todo o período, demonstrando consciência da ilicitude |
Recebeu remuneração legítima e contribuiu para a previdência | A conduta configura crime de falsidade ideológica e uso de documento falso |
Validade das Decisões Judiciais
Argumentos pela Validade das Decisões | Argumentos pela Nulidade das Decisões |
Segurança jurídica (proteção de situações consolidadas) | Vício na própria investidura do magistrado |
Boa-fé objetiva dos jurisdicionados | Inexistência jurídica do vínculo entre o Estado e o falso juiz |
Teoria da aparência (proteção da confiança legítima) | Fraude que contamina o próprio ato de nomeação |
Teoria da imputação/Teoria do Órgão (atos são do Estado, não da pessoa) | Impossibilidade de convalidação de atos praticados por agente inexistente |
Preponderância do interesse público (evitar caos jurídico) | Crime de usurpação de função pública (art. 328 do CP) |
Proporcionalidade (o custo social da anulação seria imenso) | Princípio da legalidade estrita na Administração Pública |
Presunção de legitimidade dos atos estatais | Impossibilidade de produção de efeitos por atos inexistentes |
Decisões que já transitaram em julgado estão protegidas pela coisa julgada | O vício é transrescisório, atingindo o plano da existência do ato judicial |
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