Recentemente, a 6ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) proferiu uma decisão relevante sobre um tema delicado do mercado de trabalho: a discriminação velada contra mulheres que acarretam dispensas coletivas.
Obviamente, a manchete que a imprensa divulgou não revela as peculiaridades do caso concreto. Então, isso é o que faremos agora analisando o voto da Relatora do TST.
Olhe o que se divulgou:
“Empresa é condenada por dispensar mulheres e contratar homens em seu lugar”
A bem da verdade, não é qualquer demissão em que você dispensa uma mulher e contrata um homem que acarretaria uma “discriminação direta ou indireta”. Por isso, é importante trazer as peculiaridades do caso concreto. Isto porque, o mérito reside numa situação em que, à primeira vista, poderia parecer apenas uma reestruturação empresarial.
Nessa linha, a partir de um momento, uma empresa decidiu exigir que seus técnicos de enfermagem também tivessem formação como bombeiros civis.
No entanto, cabe destacar exatamente o que aconteceu:
- De um quadro total de 53 profissionais, houve a dispensa de todas as 11 mulheres, enquanto apenas 3 dos 42 homens perderam seus empregos;
- A empresa ofereceu o curso de bombeiro civil – supostamente essencial para a manutenção do emprego – para 28 homens, mas apenas 2 mulheres. Ainda assim, as duas mulheres que receberam o treinamento acabaram sendo dispensadas;
- Por fim, para substituir as técnicas dispensadas, a empresa contratou exclusivamente homens.
Houve discriminação velada?
Vamos pautar, inicialmente, pelo questionamentos que a Ministra Kátia Magalhães Arruda, relatora do caso, trouxe no acórdão:
1. Por que a busca por profissionais mais qualificados excluiu automaticamente as mulheres? 2. Se o curso de bombeiro civil era realmente essencial, por que foi oferecido quase exclusivamente aos homens? 3. Por que mesmo as mulheres que receberam o treinamento foram dispensadas?
Em síntese, na visão da Relatora, o caso exemplifica a aplicação do conceito de “discriminação indireta”.
Mas o que caracteriza esse tipo de discriminação?
Segundo a OIT
Uma primeira informação é relevante, de acordo com a Convenção nº 111 da OIT, ratificada pelo Brasil, a discriminação não se limita apenas a atos intencionais.
Em outras palavras, ela pode ocorrer através de práticas aparentemente neutras que, quando aplicadas, resultam em desvantagem desproporcional para determinado grupo.
Nessa linha há proteção constitucional, internacional e infraconstitucional. Por exemplo, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), na Declaração de Filadélfia, previu que “todos os seres humanos de qualquer raça, crença ou sexo, têm o direito de assegurar o bem-estar material e o desenvolvimento espiritual dentro da liberdade e da dignidade, da tranqüilidade econômica e com as mesmas possibilidades”.
Ademais, a importância de se buscar a igualdade de gênero foi destacada pela ONU, que traz a matéria como Objetivo de Desenvolvimento Sustentável – 5 da Agenda 2030 da ONU.
Inclusive, entre as core obligations da OIT está a Convenção nº 111 (ratificada pelo Brasil), que combate a discriminação em matéria de emprego e profissão, conceituando em seu art. 1º discriminação como:
"Toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão".
Lado outro, conforme se extrai da Convenção nº 111 da OIT, discriminação não é apenas a diferenciação ou exclusão que tem a finalidade ou intenção de alterar a igualdade de oportunidades, mas sobretudo aquela que tem por efeito.
Isto é, o conceito de discriminação inclui, portanto, a discriminação indireta, ou seja, aquela que decorre de um dispositivo, prática ou critério aparentemente neutro, mas que, quando aplicado, acarreta uma desvantagem particular para pessoas pertencentes a um grupo específico.
Segundo a Constituição Federal
Doutra banda, a discriminação em razão de gênero fere a Constituição: o art. 5º, I, segundo o qual “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”, e o art. 7º, XXX, que preconiza que são direitos dos trabalhadores a “proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil”.
Seguindo esta linha, o legislador infraconstitucional positivou a Lei nº 9.029/95, que busca coibir práticas discriminatórias em matéria de trabalho. Referida lei, em seu art. 1º, prevê que:
"É proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho, ou de sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, deficiência, reabilitação profissional, idade, entre outros, ressalvadas, nesse caso, as hipóteses de proteção à criança e ao adolescente [...]".
Segundo a CLT
Já a CLT, ao listar práticas que constituem discriminação contra a mulher em matéria trabalhista em seu art. 373-A, destaca, entre elas, a utilização do sexo como fator motivador para dispensa ou variável determinante para fins de formação profissional:
Art. 373-A. Ressalvadas as disposições legais destinadas a corrigir as distorções que afetam o acesso da mulher ao mercado de trabalho e certas especificidades estabelecidas nos acordos trabalhistas, é vedado:
I - publicar ou fazer publicar anúncio de emprego no qual haja referência ao sexo, à idade, à cor ou situação familiar, salvo quando a natureza da atividade a ser exercida, pública e notoriamente, assim o exigir;
II - recusar emprego, promoção ou motivar a dispensa do trabalho em razão de sexo, idade, cor, situação familiar ou estado de gravidez, salvo quando a natureza da atividade seja notória e publicamente incompatível;
III - considerar o sexo, a idade, a cor ou situação familiar como variável determinante para fins de remuneração, formação profissional e oportunidades de ascensão profissional;
Segundo Protocolo do CNJ
Por fim, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ – criado com o objetivo primordial de superar os entraves que impossibilitam a equivalência de dignidade entre mulheres e homens, em todos os cenários – destaca que as barreiras de inclusão e ascensão de mulheres no mercado de trabalho, muitas vezes, são impostas de forma velada:
“Um olhar sob a perspectiva de gênero para estas situações, quando trazidas ao Judiciário, permite a transposição de barreiras invisíveis criadas pela suposta neutralidade da norma, especialmente num mercado de trabalho que até hoje reluta em garantir a simetria em matéria de gênero”. (Conselho Nacional de Justiça (Brasil). Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero. Brasília: Conselho Nacional de Justiça – CNJ; Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados — Enfam, 2021, p. 105)
Inequívoca discriminação
E o que caracterizou que houve a discriminação indireta?
Lembre que: a) o quadro de pessoal era composto por 11 mulheres técnicas de enfermagem e 42 homens técnicos de enfermagem; b) foram dispensadas todas as mulheres e apenas 3 homens, sob o argumento de que só poderia permanecer no emprego quem tivesse o curso de bombeiro civil; c) a empresa ofertou o curso de bombeiro civil (condição imposta para manutenção no emprego) a 28 homens e apenas 2 mulheres (mas nenhuma permaneceu no emprego); d) para as vagas das mulheres dispensadas foram contratados homens.
Houve, pois, o inequívoco marcador de gênero como componente da dispensa de todas as mulheres do quadro de pessoal da empresa.
Assim, numa leitura estrutural da relação trabalhista, que em grande medida reproduz os vieses estruturais históricos, culturais, econômicos e sociológicos da sociedade como um todo, é inegável que as mulheres foram atingidas de forma desproporcional pela dispensa coletiva e de maneira discriminatória tiveram obstados a manutenção do emprego e o acesso a melhores oportunidades.
Desta feita, independentemente da eventual intenção da empresa, caracterizou-se a inequívoca discriminação ao menos de forma indireta nos termos da Convenção nº 111 da OIT e do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ, o que não se pode admitir.
Como consequência, o TST reconheceu o caráter discriminatório da dispensa, condenou a reclamada a indenizar as reclamantes, na forma prevista no art. 4º, II, da Lei nº 9.029/95, bem como ao pagamento de indenização por danos morais, no importe de R$ 5.000,00 para cada trabalhadora.
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