Juiz aposentado mata ciclista enquanto dirigia com mulher nua em seu colo: culpa consciente ou dolo eventual?

Juiz aposentado mata ciclista enquanto dirigia com mulher nua em seu colo: culpa consciente ou dolo eventual?

Prof. Gustavo Cordeiro

O caso

A madrugada de 24 de julho de 2025 seria apenas mais uma quinta-feira comum em Araçatuba, não fosse pela tragédia que se desenrolaria nas proximidades do Supermercado Rondon. Um juiz aposentado, após uma noite regada a álcool em uma boate local, protagonizaria uma cena que desafia qualquer senso de normalidade. Ao volante de sua Ford Ranger, visivelmente embriagado, ele permitiu que sua acompanhante – uma mulher completamente nua – tentasse se acomodar em seu colo enquanto dirigia.

As câmeras de segurança capturaram o momento exato em que o absurdo se transformou em tragédia. Com a mulher despida tentando se posicionar sobre suas pernas, o magistrado aposentado perdeu completamente o controle do veículo. A caminhonete foi acelerada de forma abrupta, invadiu a contramão e atingiu violentamente Thais Bonatti, auxiliar de cozinha de 30 anos que seguia de bicicleta para mais um dia de trabalho no hospital onde preparava as refeições dos pacientes. O impacto foi devastador. Thais foi arremessada contra o asfalto com tamanha violência que sua bicicleta ficou irreconhecível.

Lesão corporal culposa qualificada pela embriaguez

Enquanto Thais agonizava no chão, o casal fugiu do local. Durante a fuga em alta velocidade, a mulher conseguiu se vestir e posteriormente desapareceu, nunca sendo identificada pelas autoridades. O magistrado foi localizado e preso em flagrante, apresentando sinais evidentes de embriaguez: fala desconexa, andar cambaleante e forte odor etílico. Na delegacia, inicialmente, capitulou-se o fato no artigo 303, §2º, do Código de Trânsito Brasileiro – lesão corporal culposa qualificada pela embriaguez. Com base nessa tipificação, arbitrou-se fiança de R$ 40 mil, prontamente paga, permitindo que o juiz respondesse em liberdade.

Thais lutou bravamente pela vida. Submetida a duas cirurgias de emergência, enfrentou fraturas múltiplas, traumatismo craniano e duas paradas cardíacas durante os procedimentos. Após dois dias de agonia na UTI, não resistiu. Morreu na madrugada de sábado, transformando completamente o panorama jurídico do caso.

A primeira análise: por que defender a culpa consciente?

Com a morte de Thais, a discussão jurídica ganhou novos contornos. É possível, em uma primeira análise, sustentar que estamos diante de homicídio culposo qualificado pela embriaguez, previsto no artigo 302, §3º, do Código de Trânsito Brasileiro. Esta interpretação encontra sólido amparo na jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça.

O STJ tem sido categórico ao estabelecer que a embriaguez, por si só, não caracteriza dolo eventual. No paradigmático REsp 1.689.173-SC, julgado em 2017, o Ministro Rogério Schietti Cruz estabeleceu o que se tornaria a orientação dominante da Corte: para a configuração do dolo eventual em crimes de trânsito, não basta a embriaguez do agente, sendo imprescindível a demonstração de que ele tenha assumido o risco de produzir o resultado morte.

Esta orientação foi reafirmada recentemente no AgRg no REsp 2.194.943/RS, julgado em maio de 2025, onde a Quinta Turma deixou claro que a embriaguez e o excesso de velocidade, por si sós, não demonstram o dolo eventual, sendo necessária a presença de outros elementos concretos aptos a indicar a assunção do risco.

A ratio decidendi dessa jurisprudência é cristalina: o Direito Penal brasileiro não admite presunções de dolo. A embriaguez pode tornar o agente mais propenso a comportamentos arriscados, mas isso não significa que ele tenha aceitado a possibilidade de matar alguém. Na culpa consciente, o agente prevê o resultado como possível, mas sinceramente acredita que pode evitá-lo. É a confiança – ainda que desarrazoada – na própria habilidade ou na sorte.

O Código de Trânsito Brasileiro passou por significativa evolução no tratamento da embriaguez ao volante. A Lei 13.546/2017 criou a figura qualificada do §3º do artigo 302, estabelecendo pena de reclusão de cinco a oito anos para quem pratica homicídio culposo na direção de veículo automotor sob a influência de álcool.

Trata-se de um endurecimento substancial. Antes da reforma, o motorista embriagado que causasse morte respondia pelo tipo básico do caput, com pena de detenção de dois a quatro anos. A nova redação mais que dobrou a pena mínima e alterou a natureza da reprimenda de detenção para reclusão, com todas as consequências que isso acarreta no regime de cumprimento e na possibilidade de substituição por penas alternativas.

Importante notar que o legislador optou por manter a natureza culposa do delito, mesmo com a qualificadora da embriaguez. É uma escolha legislativa consciente: a embriaguez agrava a culpa, mas não a transforma automaticamente em dolo. Esta interpretação é reforçada pela própria sistemática do Código, que mantém a conduta no capítulo dos crimes culposos de trânsito.

Além disso, o §1º do artigo 302 estabelece causas de aumento de pena, sendo aplicável ao caso a prevista no inciso III: deixar de prestar socorro, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à vítima do acidente. A fuga do local eleva a pena de um terço até a metade, podendo a reprimenda final alcançar doze anos de reclusão.

As hipóteses consolidadas de dolo eventual

A jurisprudência do STJ, embora rígida quanto à embriaguez isolada, reconhece que determinadas circunstâncias, quando somadas ao estado etílico, podem configurar dolo eventual. São situações em que o agente demonstra total indiferença quanto ao resultado morte:

1. Participação em “racha” ou competições ilegais -> Quando o condutor embriagado participa de disputas de velocidade em vias públicas, assumindo conscientemente o risco extremo da atividade.

2. Direção deliberada na contramão -> Não a invasão momentânea por perda de controle, mas a escolha consciente de trafegar em sentido contrário ao fluxo.

3. Manobras arriscadas em alta velocidade -> Ultrapassagens em zigue-zague, costurando o trânsito de forma agressiva e reiterada.

4. Fuga de fiscalização policial -> Empreender fuga em alta velocidade de blitz ou abordagem policial, colocando em risco pedestres e outros motoristas.

5. Atropelamentos múltiplos e sucessivos -> Quando o condutor atinge várias vítimas em locais distintos e prossegue na condução perigosa.

O denominador comum dessas hipóteses é a demonstração inequívoca de que o agente não apenas previu a possibilidade do resultado morte, mas demonstrou total indiferença quanto à sua ocorrência. É o que a doutrina chama de “teoria do consentimento”: o agente consente com o resultado, ainda que não o deseje diretamente.

O precedente inédito: dirigir com mulher nua no colo

Dolo eventual

Aqui chegamos ao cerne da questão jurídica. Dirigir com uma mulher nua no colo é situação inédita na jurisprudência dos tribunais superiores brasileiros. Não há precedentes no STF ou STJ que tenham analisado especificamente esta circunstância como elemento caracterizador do dolo eventual.

A análise deve partir de uma constatação fática incontestável: é fisicamente impossível dirigir com segurança tendo outra pessoa sentada no colo. O condutor não tem acesso adequado aos pedais, sua visão fica parcialmente obstruída, seus movimentos são limitados, sua capacidade de reação é praticamente anulada. Não se trata de uma imprudência gradativa, como dirigir falando ao celular ou acima da velocidade. É a certeza absoluta da incapacidade de controlar o veículo.

Quando alguém assume a direção de um veículo de duas toneladas sabendo que não tem condições físicas de controlá-lo – e aqui não falamos de uma mera dificuldade, mas de uma impossibilidade concreta – não estaria aceitando a possibilidade de causar uma tragédia? Se dirigir com uma mulher nua no colo não configura assunção do risco de matar alguém, o que mais poderia configurar?

A tendência é que os tribunais reconheçam o dolo eventual nesta hipótese. O argumento é poderoso: enquanto nas demais situações de imprudência o motorista ainda mantém algum controle sobre o veículo, aqui há uma abdicação voluntária e consciente desse controle. É como se o condutor transformasse seu veículo em um projétil desgovernado de duas toneladas.

A competência do Tribunal do Júri

Aspecto processual fundamental: havendo elementos que permitam cogitar a existência de dolo eventual, a competência para decidir entre este e a culpa consciente é do Tribunal do Júri. A Jurisprudência em Teses do STJ, Edição 114, é taxativa:

"Na hipótese de homicídio praticado na direção de veículo automotor, havendo elementos nos autos indicativos de que o condutor agiu, possivelmente, com dolo eventual, o julgamento acerca da ocorrência deste ou da culpa consciente compete ao Tribunal do Júri, na qualidade de juiz natural da causa."

Esta orientação foi recentemente reafirmada no AgRg no AREsp 2.795.012-SP, julgado em março de 2025, onde o STJ estabeleceu que, em casos envolvendo a prática de homicídio na direção de veículo automotor, havendo elementos indiciários que subsidiem, com razoabilidade, as versões conflitantes acerca da existência de dolo, ainda que eventual, a divergência deve ser solvida pelo Conselho de Sentença.

Significa, portanto, que, se o Ministério Público optar por denunciar o magistrado aposentado por homicídio doloso, argumentando que a combinação de embriaguez com a impossibilidade física de controlar o veículo configura dolo eventual, caberá ao juiz da primeira fase decidir sobre a pronúncia. Havendo elementos mínimos que permitam a tese do dolo eventual, o magistrado deve pronunciar o réu.

As implicações da mudança de capitulação

A morte de Thais Bonatti transformou completamente o cenário jurídico. O que era lesão corporal culposa qualificada (artigo 303, §2º, CTB), crime afiançável com pena de dois a cinco anos, pode se tornar homicídio doloso (artigo 121, CP), com pena de seis a vinte anos e natureza inafiançável.

Se o Ministério Público denunciar por homicídio doloso, a fiança de R$ 40 mil perde eficácia, pois crimes com pena máxima superior a quatro anos são inafiançáveis. Seria necessária nova análise sobre a necessidade de prisão preventiva, considerando os requisitos do artigo 312 do Código de Processo Penal.

Por outro lado, mantida a capitulação como homicídio culposo qualificado (artigo 302, §3º, CTB), a pena seria de cinco a oito anos, aumentada de um terço a metade pela fuga sem prestação de socorro. Ainda assim, uma condenação substancial que poderia alcançar doze anos de reclusão.

O significado jurídico da fuga

Questão relevante que merece esclarecimento: a fuga do local do acidente, embora configure causa de aumento de pena, não caracteriza, por si só, o dolo eventual. O STJ já pacificou este entendimento no AgRg no AREsp 2.519.852-SC, julgado em setembro de 2024: “A tentativa de fuga após o acidente é posterior aos fatos e não permite concluir que o réu agiu com dolo.”

A lógica é impecável: o dolo, seja direto ou eventual, deve existir no momento da conduta, não sendo possível deduzí-lo de comportamentos posteriores. A fuga pode demonstrar covardia, falta de solidariedade ou tentativa de escapar às consequências, mas não retroage para transformar culpa em dolo.

Reflexões para o futuro da jurisprudência

Este caso tem potencial para estabelecer um precedente histórico. Se os tribunais superiores vierem a reconhecer que dirigir com pessoa no colo configura dolo eventual quando somado à embriaguez, estaremos diante de uma nova categoria na jurisprudência criminal.

O impacto seria significativo. Quantos acidentes ocorrem em circunstâncias similares, com motoristas que voluntariamente se colocam em situação de absoluta incapacidade de controlar seus veículos? O precedente poderia alcançar casos de motoristas que dirigem durante atos sexuais, sob efeito de drogas pesadas ou em outras situações de impossibilidade física de controle.

A mensagem social também seria poderosa. O Direito Penal tem função pedagógica, e reconhecer dolo eventual nessas circunstâncias extremas enviaria claro recado: há limites para a irresponsabilidade no trânsito que, quando ultrapassados, transformam imprudência em aceitação da morte alheia.

As consequências civis: a responsabilidade integral pelos danos

A responsabilidade do magistrado aposentado não se esgota na esfera penal. O Código Civil estabelece em seus artigos 186 e 927 a obrigação de reparar integralmente os danos causados. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito e fica obrigado a repará-lo.

No caso concreto, a família de Thais Bonatti poderá pleitear indenização por danos materiais e morais. Os danos materiais abrangem as despesas com funeral e sepultamento, além dos lucros cessantes – aquilo que a família deixará de receber em razão da morte prematura de Thais. Considerando que ela tinha apenas 30 anos e trabalhava como auxiliar de cozinha, o cálculo dos lucros cessantes levará em conta sua expectativa de vida e capacidade laborativa até a idade de aposentadoria.

Os danos morais, por sua vez, são presumidos em caso de morte. A jurisprudência do STJ tem arbitrado valores substanciais nesses casos, especialmente quando há circunstâncias agravantes como a embriaguez e a fuga do local. Não é incomum que as indenizações ultrapassem centenas de milhares de reais, podendo comprometer significativamente o patrimônio do causador do dano.

Importante destacar que eventual seguro DPVAT, quando existente, não exclui a responsabilidade civil do condutor. O valor recebido a título de seguro obrigatório será apenas deduzido da indenização total devida. A ação civil poderá ser proposta independentemente do resultado da ação penal, conforme estabelece o artigo 935 do Código Civil, ressalvada apenas a hipótese de absolvição criminal que reconheça inexistência do fato ou negativa de autoria.

A blindagem administrativa da aposentadoria

Aspecto que causa particular indignação social é a impossibilidade de consequências administrativas para o magistrado aposentado. A aposentadoria constitui ato jurídico perfeito e acabado, protegido constitucionalmente. Salvo hipóteses excepcionais de cassação por falta grave cometida quando ainda na ativa, os proventos de aposentadoria permanecem intocados.

Essa situação cria uma assimetria perversa no sistema de responsabilização. Um juiz em atividade que cometesse tal conduta poderia sofrer processo administrativo disciplinar, com possibilidade de demissão a bem do serviço público. O professor, o médico, o policial – todos perderiam seus vínculos funcionais. O magistrado aposentado, contudo, mantém seus proventos integrais pagos pelo erário público.

Trata-se de uma blindagem que não encontra paralelo na iniciativa privada. O trabalhador comum que comete crime perde seu emprego e sua fonte de sustento. O aposentado do regime geral pode ter benefícios previdenciários suspensos em determinadas hipóteses criminais. O magistrado aposentado, não. Seus proventos continuam depositados mensalmente, independentemente da gravidade de sua conduta.

Essa proteção absoluta dos proventos de aposentadoria tem sido objeto de discussões no Congresso Nacional, com projetos de emenda constitucional que buscam permitir a cassação de aposentadorias em casos de crimes graves. Até o momento, contudo, a blindagem permanece intacta, gerando sensação de impunidade e privilégio incompatível com o princípio republicano da igualdade.

O custo humano por trás da discussão técnica

Enquanto juristas debatem conceitos e precedentes, não podemos esquecer que Thais Bonatti está morta. Trinta anos, auxiliar de cozinha, pedalava para o trabalho quando sua vida foi ceifada pela combinação fatal de álcool, irresponsabilidade e circunstâncias que desafiam qualquer senso de normalidade.

Sua família agora enfrenta não apenas o luto, mas a revolta de ver o responsável responder em liberdade. A discussão sobre culpa consciente ou dolo eventual não é mero exercício acadêmico – é a busca por uma resposta jurídica que faça justiça à gravidade do ocorrido.

Como o tema aparece em concursos públicos

Para candidatos às carreiras jurídicas, este caso oferece um laboratório perfeito de questões que as bancas adoram explorar. A FGV, conhecida por suas questões contextualizadas e analíticas, certamente se inspiraria em caso similar. Vejamos um exemplo de como poderia aparecer em prova objetiva:

Questão estilo FGV - Magistratura Estadual:

João, magistrado aposentado, após ingerir bebida alcoólica em quantidade que comprometeu sua capacidade psicomotora, assumiu a direção de veículo automotor permitindo que sua acompanhante, despida, sentasse em seu colo enquanto conduzia. Perdendo o controle do veículo em razão da impossibilidade física de dirigi-lo adequadamente, invadiu a pista contrária e atropelou Maria, ciclista que se dirigia ao trabalho, causando-lhe lesões que resultaram em sua morte no dia seguinte. João fugiu do local sem prestar socorro.

Considerando a jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça, assinale a alternativa correta:

a) A embriaguez ao volante, por si só, caracteriza dolo eventual, devendo João responder por homicídio doloso.

b) A conduta deve ser tipificada como homicídio culposo qualificado pela embriaguez, pois a jurisprudência do STJ exige, além da embriaguez, outros elementos para configuração do dolo eventual, sendo a competência do juiz singular.

c) O fato de João ter fugido do local sem prestar socorro demonstra que agiu com dolo eventual, devendo responder perante o Tribunal do Júri.

d) Havendo elementos que permitam cogitar tanto culpa consciente quanto dolo eventual, a competência para julgamento é do Tribunal do Júri, que decidirá sobre a natureza do elemento subjetivo.

e) Por ser magistrado aposentado, João possui prerrogativa de foro, devendo ser julgado pelo Tribunal de Justiça.

Gabarito comentado: Alternativa D. Conforme a Jurisprudência em Teses do STJ (Edição 114), havendo dúvida razoável entre culpa consciente e dolo eventual em homicídios no trânsito, compete ao Tribunal do Júri decidir.

A alternativa A está incorreta pois contraria a jurisprudência pacífica (REsp 1.689.173-SC). A alternativa B peca por afirmar categoricamente a natureza culposa quando há elementos que permitem cogitar o dolo (dirigir com pessoa no colo). Já a alternativa C erra ao considerar a fuga como elemento caracterizador do dolo (AgRg no AREsp 2.519.852-SC). A alternativa E é absurda, pois aposentados não possuem prerrogativa de foro.

Em provas discursivas e orais, o tema oferece riquíssimas possibilidades de exploração, desde a análise da tipificação penal até as consequências civis e a discussão sobre a intangibilidade dos proventos de aposentadoria.


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