Prof. Gustavo Cordeiro
Imagine-se diante desta situação prática: João foi condenado por furto em 2010, cumpriu integralmente sua pena, reconstruiu sua vida e, quinze anos depois, comete um novo delito. A condenação antiga deve aumentar sua pena atual? Esta pergunta, aparentemente simples, esconde uma das discussões mais sofisticadas do Direito Penal contemporâneo e tem sido objeto de intensa exploração em concursos jurídicos de alto nível.
O Superior Tribunal de Justiça, em precedente paradigmático no Informativo 856, reconheceu que condenações muito antigas podem ser “esquecidas” para fins de dosimetria da pena, estabelecendo um marco temporal de dez anos. No entanto, para compreender a revolução que isso representa, precisamos primeiro dominar conceitos fundamentais que, se confundidos, podem custar sua aprovação.
A base conceitual: entendendo reincidência e maus antecedentes
A dosimetria da pena no Brasil segue o sistema trifásico estabelecido pelo artigo 68 do Código Penal. Na primeira fase, o juiz fixa a pena-base analisando as circunstâncias judiciais do artigo 59, entre elas os antecedentes criminais. Na segunda fase, aplica agravantes e atenuantes, incluindo a reincidência. Já na terceira, as causas de aumento e diminuição.
Aqui surge a primeira distinção crucial: reincidência e maus antecedentes são institutos completamente diferentes, embora derivem do mesmo fato – uma condenação criminal anterior definitiva. A reincidência opera como agravante na segunda fase e possui prazo legal expresso de cinco anos para sua depuração, ao fim do qual a condenação definitiva passa a considerar-se como maus antecedentes. Já os antecedentes criminais funcionam como circunstância judicial desfavorável na primeira fase e, até recentemente, não possuíam limitação temporal definida.
O Código Penal estabelece que a reincidência ocorre quando o agente comete novo crime depois de transitar em julgado sentença condenatória por crime anterior. Mas atenção: essa reincidência possui prazo de validade. O artigo 64, inciso I, determina que não prevalece a condenação anterior se entre o cumprimento ou extinção da pena e a nova infração decorrer período superior a cinco anos. Este é o chamado período depurador da reincidência.

Mas e quando a condenação é antiga demais para gerar reincidência? Ela automaticamente se transforma em mau antecedente? Durante décadas, a resposta foi sim. Condenações de dez, quinze, vinte anos atrás eram rotineiramente utilizadas para aumentar a pena-base, criando uma espécie de “marca perpétua” na vida do condenado.
A evolução jurisprudencial: do automatismo à análise crítica
O Supremo Tribunal Federal deu o primeiro passo para mudar esse cenário. No julgamento do Tema Repetitivo 150 (RE 593.818/SC), estabeleceu que “não se aplica ao reconhecimento dos maus antecedentes o prazo quinquenal de prescrição da reincidência”, mas – e aqui está a revolução – permitiu que o julgador, “fundamentada e eventualmente”, deixe de aumentar a pena quando considerar as condenações “desimportantes ou demasiadamente distanciadas no tempo”.
Perceba então a mudança de paradigma: saímos de uma aplicação automática e irrefletida para uma análise contextualizada. O STF reconheceu que o tempo possui força transformadora e que condenações muito antigas podem não mais refletir a personalidade atual do agente.
O Superior Tribunal de Justiça foi além. Em março de 2025, no Informativo 856, a Quinta Turma aplicou expressamente a teoria do direito ao esquecimento aos maus antecedentes criminais. O Ministro Ribeiro Dantas, relator do precedente, fundamentou a decisão em dois pilares constitucionais: a vedação de penas perpétuas (art. 5º, XLVII, “b”, CF) e o princípio da ressocialização.
A grande novidade foi o estabelecimento de um parâmetro temporal objetivo: dez anos. Segundo o STJ, condenações cuja pena foi extinta há mais de uma década podem ser desconsideradas na dosimetria. O tribunal ressaltou que esse prazo não é absoluto, permitindo ao magistrado uma “apreciação discricionária” conforme os princípios da proporcionalidade e razoabilidade.
A mecânica dos prazos no direito ao esquecimento: quando e como contar
A aplicação prática desses conceitos exige precisão cirúrgica. Para a reincidência, o marco inicial do período depurador de cinco anos é o cumprimento ou extinção da pena. Mas cuidado: se houve suspensão condicional da pena (sursis) ou livramento condicional, conta-se do início do período de prova. O prazo de cinco anos deve decorrer entre esse marco e a prática do novo crime.
Para o direito ao esquecimento nos maus antecedentes, o STJ estabeleceu que se conta da extinção da pena anterior até a prática do novo delito. Logo, são dez anos de “vida limpa” que permitem ao indivíduo libertar-se do peso de seu passado criminal.
Assim, imagine um exemplo prático: Pedro foi condenado por estelionato a dois anos de reclusão, substituídos por penas restritivas de direitos. A pena foi declarada extinta em janeiro de 2014. Em março de 2025, ele comete novo crime. Passaram-se mais de onze anos – a condenação anterior não gera reincidência (ultrapassou cinco anos) e também não pode ser considerada mau antecedente (ultrapassou dez anos), segundo essa recente decisão do Superior Tribunal de Justiça.

Os limites do sistema: o que não pode ser valorado
A jurisprudência construiu um sistema de proteções contra o uso indevido de registros criminais. A Súmula 444 do STJ veda categoricamente o uso de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base. Assim, a ratio é clara: sem condenação definitiva, prevalece a presunção de inocência.
Por conseguinte, a Súmula 241 do STJ estabelece outra proteção fundamental: não se pode usar, simultaneamente, a mesma condenação como agravante (reincidência) e circunstância judicial (mau antecedente). É a vedação do bis in idem na dosimetria.
O Tema Repetitivo 1.077 do STJ complementa esse sistema protetivo: condenações anteriores só podem valorar antecedentes criminais, sendo vedado seu uso para desabonar personalidade ou conduta social. Cada elemento do artigo 59 tem sua autonomia e não pode haver contaminação entre eles.
A prática em concursos: análise de caso complexo
O concurso do Ministério Público do Rio de Janeiro de 2025, cuja aplicação da prova preambular ocorreu no domingo passado (3/8/2025), trouxe questão que sintetiza toda essa complexidade:
ENUNCIADO
O Magistrado, ao efetuar a dosimetria da pena de um réu por crime de receptação, fato praticado em 8 de julho de 2021, constatou, em sua folha de antecedentes criminais, duas anotações:
Primeira anotação: condenação criminal por crime de furto, praticado em 12 de junho de 2016, com trânsito em julgado para a condenação em 5 de março de 2021, cujo processo ainda está pendente no Tribunal de Justiça por recurso especial interposto pela defesa perante Superior Tribunal de Justiça;
Segunda anotação: condenação criminal por crime de roubo circunstanciado, praticado em 7 de agosto de 2012, com condenação a 4 anos de reclusão mais multa, que transitou em julgado no dia 1º de março de 2014, com início do período de prova do livramento condicional em 20 de junho de 2016 e extinção da pena pelo término do período de prova em junho de 2020.
Considerando o cenário descrito, o Promotor de Justiça, ao analisar a sentença condenatória, deve:
ALTERNATIVAS
(A) anuir com a dosimetria da pena e, no ponto, não recorrer da sentença.
(B) discordar da dosimetria da pena somente em relação ao reconhecimento da reincidência pela segunda anotação e, no ponto, recorrer da sentença.
(C) discordar da dosimetria da pena apenas no que tange ao reconhecimento de mau antecedente pela primeira anotação e, no ponto, recorrer da sentença.
(D) discordar da dosimetria da pena, já que a primeira anotação não poderia ser considerada mau antecedente, e a segunda anotação não caracterizaria reincidência, mas mau antecedente, e, no ponto, recorrer da sentença.
(E) discordar da dosimetria da pena apenas em relação ao reconhecimento de mau antecedente pela primeira anotação, a qual deveria ser considerada como reincidência, assim como a segunda anotação, e, no ponto, recorrer da sentença.
GABARITO: ALTERNATIVA D.
Analisando a primeira anotação (Furto – 2016)
- Crime: 12/06/2016
- Trânsito em julgado: 05/03/2021
- Recurso Especial pendente no STJ
- Crime atual: 08/07/2021
Análise jurídica:
- NÃO pode ser considerada mau antecedente: a existência de recurso especial pendente no STJ impede o trânsito em julgado definitivo. Conforme jurisprudência pacífica, somente condenações com trânsito em julgado definitivo (sem recursos pendentes) podem gerar antecedentes criminais.
- NÃO pode configurar reincidência: pela mesma razão – ausência de trânsito em julgado definitivo devido ao recurso pendente.
Analisando a segunda anotação (Roubo – 2012)
- Crime: 07/08/2012
- Trânsito em julgado: 01/03/2014
- Livramento condicional: 20/06/2016
- Extinção da pena: junho/2020
- Crime atual: 08/07/2021
Cálculo do período depurador da reincidência:
- Marco inicial: 20/06/2016 (início do período de prova do livramento condicional – art. 64, I, CP)
- Crime atual: 08/07/2021
- Tempo decorrido: mais de 5 anos
Análise jurídica:
- NÃO configura reincidência: entre o início do período de prova do livramento condicional (junho/2016) e o novo crime (julho/2021) transcorreram mais de 5 anos, aplicando-se o período depurador do art. 64, I, do CP.
- PODE ser considerada mau antecedente: como não se aplica a reincidência, a condenação pode ser valorada como circunstância judicial desfavorável (antecedentes) na primeira fase da dosimetria, nos termos do art. 59 do CP e do Tema 150 do STF.
O Promotor deve discordar da dosimetria em ambos os pontos:
- A primeira anotação não pode gerar qualquer efeito (nem antecedente, nem reincidência) devido ao recurso pendente.
- A segunda anotação não gera reincidência (ultrapassou 5 anos), mas pode ser considerada mau antecedente.
Perspectivas futuras: tendências para concursos
Por fim, o reconhecimento do direito ao esquecimento nos antecedentes criminais abre novo campo de exploração para as bancas examinadoras. Espere questões que explorem a constitucionalidade dessa construção jurisprudencial, já que o STJ criou um prazo sem previsão legal expressa.
Além disso, questões dissertativas podem exigir análise crítica sobre a legitimidade do Poder Judiciário para estabelecer prazos não previstos em lei. O candidato preparado deve saber defender que não há violação ao princípio da legalidade, pois o Judiciário atua como garantidor de direitos fundamentais contra omissões legislativas que perpetuam punições.
Na prova oral, esteja preparado para explicar a evolução do tema: do automatismo irrefletido (toda condenação antiga vira antecedente) para a discricionariedade vinculada do STF (o juiz pode desconsiderar) e, finalmente, para o parâmetro objetivo do STJ (presunção de esquecimento após dez anos).
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