Hospital deverá indenizar paciente após diagnóstico errôneo de HIV – Uma análise da responsabilidade civil do Estado

Hospital deverá indenizar paciente após diagnóstico errôneo de HIV – Uma análise da responsabilidade civil do Estado

Saiba o que acontece quando é dado diagnóstico de HIV errôneo por Hospital da rede pública à paciente.

(Diagnóstico errôneo HIV)

Diagnóstico errôneo HIV

Imagine a situação de Terezinha.

Em março de 2003, após um contato sexual desprotegido com um portador do HIV, ela procurou atendimento médico no renomado Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP).

Apesar de um teste sorológico inicial em junho de 2003 ter diagnóstico negativo para HIV, Terezinha foi submetida a um acompanhamento médico como se fosse portadora do vírus por mais de 10 anos.

Durante esse período, ela realizou diversos exames de carga viral de HIV, três dos quais apresentaram resultados positivos entre 2004 e 2007.

Somente em julho de 2016, mais de uma década depois, um novo teste rápido para HIV foi realizado, confirmando o que o teste inicial já havia indicado: Terezinha era soronegativa. Durante todo esse tempo, ela viveu com o peso de um diagnóstico errôneo de uma doença grave e estigmatizante.

Diante desses fatos, surge uma questão crucial: o Estado, representado pelo Hospital das Clínicas, deve ser responsabilizado por esse erro médico prolongado? O diagnóstico equivocado para HIV e o acompanhamento médico desnecessário por mais de dez anos configuram uma falha na prestação do serviço público de saúde capaz de gerar responsabilidade civil do Estado?

Sim, na visão da 7ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo que manteve decisão da 9ª Vara da Fazenda Pública da Capital. Vamos entender a decisão.

(diagnóstico HIV)

Responsabilidade Civil do Estado – (HIV)

Vamos às aulas do Professor Rodolfo.

Historicamente, o conceito de responsabilidade estatal evoluiu de uma total irresponsabilidade – epitomizada pela máxima “The King can do no wrong” – para um sistema onde o Estado responde objetivamente pelos danos que causa.

No Brasil, essa evolução culminou no artigo 37, § 6º, da Constituição Federal de 1988, que estabelece claramente a responsabilidade objetiva do Estado.

Mas o que significa, na prática, essa responsabilidade objetiva?

Em essência, significa que o Estado deve reparar os danos causados por seus agentes independentemente da existência de culpa. Basta que se comprove o dano e o nexo causal entre a ação ou omissão estatal e o prejuízo sofrido pelo cidadão.

Vale ressaltar que essa abordagem baseia-se na teoria do risco administrativo, reconhecendo que as atividades estatais, embora essenciais, podem gerar riscos à sociedade. É importante notar, contudo, que a responsabilidade objetiva não transforma o Estado em um segurador universal.

(HIV)

Por outro lado, existem situações em que o poder público pode se eximir da responsabilidade, como nos casos de culpa exclusiva da vítima, caso fortuito ou força maior, ou fato exclusivo de terceiro.

Um ponto particularmente complexo e debatido na doutrina e jurisprudência diz respeito à responsabilidade estatal por omissão. Nesse âmbito, o Supremo Tribunal Federal tem adotado uma distinção crucial entre omissão específica e omissão genérica.

(HIV)

A primeira, caracterizada pelo descumprimento de um dever específico de agir, gera responsabilidade objetiva. Já a segunda, relacionada a um dever genérico, leva a uma responsabilidade subjetiva, baseada na teoria da culpa administrativa.

Perceba, enquanto na responsabilidade objetiva só precisamos demonstrar o dano, ação e nexo de causalidade, na responsabilidade subjetiva eu tenho que demonstrar que há culpa/dolo para haver responsabilidade.

Logo, essa distinção não é meramente acadêmica. Ela tem implicações práticas significativas, influenciando diretamente como os tribunais decidem casos envolvendo danos causados pela inação estatal.

Por exemplo, a falta de manutenção em uma rodovia federal que leva a um acidente pode ser vista como uma omissão específica, enquanto a falha em prevenir um crime em via pública pode ser considerada uma omissão genérica.

A dúvida é: o TJ-SP considerou que houve uma omissão ou um ato comissivo da Administração Pública no caso Terezinha?

Análise jurídica do acórdão do TJSP -(HIV)

Primeiramente, é importante destacar, como vimos que a responsabilidade civil do Estado, conforme estabelecido no art. 37, §6º da Constituição Federal, é objetiva (nos ato comissivos):

“As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”

No caso em tela, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) aplicou a teoria da responsabilidade objetiva, fundamentando-se na teoria da falha do serviço.

O relator, desembargador Coimbra Schmidt, enfatizou que a responsabilidade em análise não decorre da atividade administrativa (risco administrativo), isto é de alguma omissão, mas sim de alegada falha no cumprimento do dever de cuidado com o diagnóstico.

O TJSP considerou que houve uma prestação de serviço público deficitária por parte do hospital.

Os elementos que levaram a esta conclusão foram:

  1. A paciente foi submetida a acompanhamento médico como portadora de HIV por mais de dez anos, apesar de ter tido um teste inicial negativo para o vírus.
  2. Durante o período de acompanhamento, foram realizados três exames de carga viral que apresentaram resultados positivos. No entanto, conforme apontado pela perícia, estes resultados mereciam melhor investigação, pois poderiam ser falsos positivos ou resultantes de erros na coleta ou realização do exame.
  3. O hospital continuou tratando a paciente como portadora de HIV baseando-se apenas nos resultados de carga viral, desconsiderando o teste sorológico inicial negativo. Somente após mais de uma década, um novo teste rápido para HIV foi realizado, apresentando novamente resultado negativo.

Assim, o TJSP entendeu que o nexo causal entre a conduta do hospital de dar diagnóstico errôneo de HIV, e o dano sofrido pela paciente estava claramente estabelecido.

Além disso, o dano moral foi considerado presumido (in re ipsa), dada a gravidade da situação – a paciente passou mais de uma década acreditando ser portadora de uma doença grave e estigmatizante.

É importante notar que o TJSP aplicou a teoria do risco administrativo, que admite excludentes de responsabilidade. No entanto, no caso em questão, o hospital não conseguiu comprovar nenhuma excludente (como culpa exclusiva da vítima, caso fortuito ou força maior).

Vale ressaltar que o STJ tem entendido que o erro de diagnóstico em exames laboratoriais configura falha na prestação do serviço e enseja a reparação por danos morais:

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. DANOS MORAIS. DIAGNÓSTICO INCORRETO DE HANSENÍASE (FALSO POSITIVO). MÉTODO BIFÁSICO. VALORAÇÃO. PARADIGMAS DE TRIBUNAIS LOCAIS. EXTENSÃO. MENOR DE IDADE. PREJUÍZOS PELA MEDICAÇÃO DESNECESSÁRIA. TEMPO DE DURAÇÃO DO TRATAMENTO. INCERTEZA QUANTO AOS ELEMENTOS DISTINTIVOS DA SITUAÇÃO. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO.

1. O agravante, menor de idade, foi diagnosticado equivocadamente como portador de hanseníase, tendo sido tratado com medicamentos indevidos por 28 dias. O tratamento inadequado ensejou reações cutâneas e hepáticas.

2. O tribunal local reconheceu os danos morais e fixou o valor reparatório em R$ 60.000,00 (sessenta mil reais) – cerca de 60 salários mínimos à época. Diante da jurisprudência de tribunais locais invocados pela parte recorrente, a decisão monocrática, aplicando o método bifásico, ajustou a condenação para R$ 11.000,00 (onze mil reais) – cerca de 10 salários mínimos.

3. As alegações de distinção apresentadas no agravo interno carecem de certeza, sendo inviável adotá-las com a finalidade de, na segunda fase do método de quantificação dos danos morais, ajustar a condenação ante a diferença da extensão dos danos tidos como experimentados pela vítima.

4. Agravo interno desprovido.

(AgInt nos EDcl no REsp n. 1.914.366/PA, relator Ministro Afrânio Vilela, Segunda Turma, julgado em 22/4/2024, DJe de 25/4/2024.)

Quanto à quantificação do dano moral, o valor de R$ 20.000,00 foi considerado razoável pelo tribunal, levando em conta a extensão do dano e o caráter punitivo-pedagógico da indenização.

(HIV)

Como o tema já caiu em provas:

VUNESP – 2024 – MPE-RJ – Promotor de Justiça Substituto

Alaíde, durante toda sua gravidez, realizou acompanhamento pré-natal em hospital público. Após o parto, também realizado em hospital público, verificou-se que o feto nasceu em péssimas condições vitais, apresentando convulsões, tendo sido internado em leito de UTI com grave quadro clínico em decorrência de Sofrimento Fetal Agudo, Asfixia Perinatal Grave e Síndrome Hipóxico-Isquêmica, tendo permanecido internado na UTI por quase nove meses. Em decorrência de tais complicações, evoluiu com encefalopatia crônica (paralisia cerebral com graves sequelas neurológicas irreversíveis), com dependência total de terceiros para sua sobrevivência e acompanhamento médico especializado e contínuo. O laudo do perito judicial concluiu que as lesões graves e irreversíveis decorreram de imperícia grave da equipe médica que realizou o parto.

Nesse caso em análise:

A)não há responsabilidade civil do Estado por erro médico, pois além de demonstração da culpa genérica da Administração, por não ter atuado para impedir a ocorrência do dano, faz-se imprescindível a individualização da conduta culposa do agente.

B)há responsabilidade civil do Estado por erro médico, caracterizado como conduta por omissão, bastando que se comprove a existência de nexo de causalidade entre o dever do Estado de agir e o dano sofrido pelos indivíduos.

C)não há responsabilidade civil do Estado por erro médico, posto que a causadora dos danos sofridos pelos indivíduos foi a equipe médica, essa sim responsável pela indenização daí resultante.

D)há responsabilidade civil do Estado, que responde subjetivamente pelos atos e omissões da equipe médica que, no exercício de suas funções, cause danos a terceiros, não admitindo excludente de responsabilidade.

E)não há responsabilidade civil do Estado por erro médico, posto que somente é cabível a responsabilização estatal por ação e não por omissão.

Gab: B

(HIV)

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