PL 3496/2024 e a Responsabilidade do Estado por “desvio produtivo” – é possível?

PL 3496/2024 e a Responsabilidade do Estado por “desvio produtivo” – é possível?

Introdução ao PL 3496/2024

De início, o PL 3496/2024, proposto pelo deputado Jonas Donizette, traz à tona uma discussão crucial sobre a responsabilidade civil do Estado em relação ao tempo desperdiçado pelo cidadão em interações com o poder público – o que se chama de “desvio produtivo”.

Para tanto, criaria-se um artigo no Código Civil:

“Art. 43-A. As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos ou omissões dos seus agentes que nessa qualidade causem desvio produtivo de terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo.” 

Vamos imaginar uma situação para que você compreenda o tema. E abordar uma análise jurídica do processo.

Um cidadão precisa renovar sua carteira de identidade. Ele agenda um horário online na central de atendimento do governo, tira um dia de folga do trabalho e se desloca até o local designado. 

Ao chegar lá, descobre que o sistema está fora do ar. O funcionário pede que ele retorne em outro dia, sem oferecer qualquer solução imediata ou compensação pelo transtorno. 

O cidadão, então, precisa reagendar, tirar outro dia de folga e repetir todo o processo. Neste cenário, temos um claro exemplo de desvio produtivo causado pela ineficiência do serviço público. Isto porque, o cidadão:

  • Perdeu dois dias de trabalho
  • Gastou tempo e recursos com deslocamento
  • Teve que reorganizar sua agenda pessoal e profissional duas vezes
  • Sofreu estresse e frustração desnecessários (…)

A lista é infinita, acontece comigo, acontece com você. Todo esse tempo e energia poderiam ter sido utilizados de forma produtiva, seja no trabalho, em atividades pessoais ou em lazer. Ao invés disso, foram desperdiçados devido a uma “falha do serviço público”.

desvio produtivo

Conceito de Desvio Produtivo

O desvio produtivo, conceito originalmente desenvolvido no âmbito do direito do consumidor pelo jurista Marcos Dessaune, refere-se à situação em que um indivíduo é obrigado a desperdiçar seu tempo e desviar suas competências de atividades necessárias ou desejadas para lidar com problemas criados por terceiros.

No contexto das relações de consumo, isso ocorre quando o consumidor precisa dedicar tempo e esforço para resolver problemas causados por produtos ou serviços defeituosos. Dessaune argumenta que esse desvio representa um dano existencial, pois priva o indivíduo de usar seu tempo – um recurso escasso e irrecuperável – de maneira produtiva ou prazerosa:

“a sociedade pós-industrial [...] proporciona a seus membros um poder liberador: o consumo de um produto ou serviço de qualidade, produzido por um fornecedor especializado na atividade, tem a utilidade subjacente de tornar disponíveis o tempo e as competências que o consumidor necessitaria para produzi-lo [por si mesmo] para seu próprio uso” pois “o fornecimento de um produto ou serviço de qualidade ao consumidor tem o poder de liberar os recursos produtivos que ele utilizaria para produzi-lo pessoalmente” (DESSAUNE, Marcos V. Teoria aprofundada do desvio produtivo do consumidor: uma visão geral. Revista de Direito do Consumidor: RDC, São Paulo, v. 27, n. 119, p. 89-103, set./out. 2018). 
“A teoria do desvio produtivo do consumidor sustenta que o tempo despendido pelo consumidor na tentativa de solucionar problemas oriundos de falhas nos serviços ou produtos fornecidos é um dano indenizável, pois afeta negativamente sua produtividade e qualidade de vida” 

ANDRADE, M. D. de; PINTO, E. R. G. de C.; ARAGÃO, L. M. Responsabilidade civil pelo desvio produtivo: estudo de caso para identificar o posicionamento do Tribunal de Justiça de São Paulo na aplicação da teoria do desvio produtivo do consumidor. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, 2021).

Jurisprudência sobre o tema

Como é esse tema na jurisprudência dos Tribunais?

Tem-se aceitado a teoria do desvio produtivo nas relações de consumo?

  • SIM!

Existem pelo menos três julgados do STJ nos quais já se aplicou a referida teoria.

No primeiro deles, o STJ afirmou que o tempo despendido injustamente pelo consumidor mereceria proteção, pois “à frustração do consumidor de adquirir o bem com vício, não é razoável que se acrescente o desgaste para tentar resolver o problema ao qual ele não deu causa, o que, por certo, pode ser evitado – ou, ao menos, atenuado – se o próprio comerciante participar ativamente do processo de reparo, intermediando a relação entre consumidor e fabricante, inclusive porque, juntamente com este, tem o dever legal de garantir a adequação do produto oferecido ao consumo” (STJ. 3ª Turma. REsp 1.634.851/RJ, Min. Nancy Andrighi, julgado em 12/9/2017).
Posteriormente, no julgamento do REsp 1737412 /SE, a Terceira Turma, em processo envolvendo dano moral coletivo e o descumprimento de normas municipais e federais que estabelecem parâmetros para a adequada prestação do serviço de atendimento presencial em agências bancárias, assentou, mais uma vez abordando a mencionada teoria, que “o desrespeito voluntário das garantias legais, com o nítido intuito de otimizar o lucro em prejuízo da qualidade do serviço, revela ofensa aos deveres anexos ao princípio boa-fé objetiva e configura lesão injusta e intolerável à função social da atividade produtiva e à proteção do tempo útil do consumidor” (REsp 1.737.412/SE, julgado em 5/2/2019).
Finalmente, no julgamento do REsp 1929288/TO, o STJ, com base na referida construção doutrinária, consignou que “a inadequada prestação de serviços bancários, caracterizada pela reiterada existência de caixas eletrônicos inoperantes, sobretudo por falta de numerário, é apta a caracterizar danos morais coletivos” (STJ. 3ª Turma. REsp 1.929.288/TO, julgado em 22/2/2022).

E no âmbito do Direito Civil?

  • NÃO tem sido aceita pela jurisprudência do STJ!

A Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor é predisposta a ser aplicada no âmbito do direito consumerista, notadamente em razão da situação de desigualdade e de vulnerabilidade que são características das relações de consumo, não se aplicando, portanto, a relações jurídicas não consumeristas regidas exclusivamente pelo Direito Civil.
STJ. 3ª Turma. REsp 2017194-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 25/10/2022 (Info Especial 9).

Com base na teoria do desvio produtivo, seria possível identificar, no ordenamento jurídico nacional, uma verdadeira obrigação imposta aos fornecedores de garantir a otimização e o máximo aproveitamento dos recursos produtivos disponíveis na sociedade, entre eles, o tempo.

Tal obrigação teria por fundamento:
I) a vulnerabilidade do consumidor;

II) o princípio da reparação integral (Art. 6º, VI, do CDC);

III) a proteção contra práticas abusivas (art. 39, do CDC);

IV) o dever de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho imposto aos fornecedores de produtos e serviços (Art. 4º, II, “d”, do CDC); e

V) o dever de informar adequadamente e de agir sempre com boa-fé (Art. 6º, III e 51, IV, do CDC).

Logo, a tutela do tempo útil e seu máximo aproveitamento – valores subjacentes à função social da atividade produtiva – é imposta aos fornecedores com base nas disposições especiais e protetivas do Código de Defesa do Consumidor.

Assim, infere-se da origem, dos fundamentos e dos seus requisitos que a Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor – como indica o próprio nome que lhe foi atribuído – é uma construção doutrinária aplicável no âmbito do direito do consumidor, notadamente em razão da situação de desigualdade e de vulnerabilidade que são as notas distintivas das relações de consumo.

Por essas razões, não é possível importar essa teoria para outros ramos, como no caso do Direito Civil, como decidiu o STJ.

O Direito do Consumidor possui autonomia e lógica de funcionamento próprias, máxime por regular relações jurídicas especiais compostas por um sujeito em situação de vulnerabilidade, o consumidor.

Isto porque, as construções doutrinárias erigidas com base neste ramo especial do Direito não podem ser livremente importadas, sem maiores reflexões, por outros ramos do ordenamento jurídico, notadamente pelo Direito Civil, sob pena de se instalar indevido sincretismo metodológico que deve ser evitado.

Ademais, por envolver a adoção de um conceito jurídico indeterminado sobre o qual ainda não há nenhum acordo semântico – a denominada “perda do tempo útil” -, eventual aplicação da Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor exige cautela e parcimônia, sob pena de causar indesejada insegurança jurídica.

Vale ressaltar, por fim, que “a tutela jurídica do tempo, principalmente na via indenizatória, jamais poderá ser subvertida por sua conversão em fonte fácil de renda e enriquecimento sem causa” (Cf. MAIA, Maurílio Casas. O dano temporal indenizável e o mero dissabor cronológico no mercado de consumo: quando o tempo é mais que dinheiro – é dignidade e liberdade. Revista de direito do consumidor, v. 23, n. 92, p. 170, mar./abr. 2014).

E então, poderíamos aplicar a “teoria do desvio produtivo” ao Poder Público?

Pensamos que não.

Veja, ao transpor esse conceito para a esfera pública, o PL 3496/2024 busca responsabilizar o Estado pelo tempo que o cidadão perde ao lidar com ineficiências e problemas na administração pública. Nessa linha, a justificativa do projeto, apresentada pelo deputado Donizette, enfatiza a importância do tempo na sociedade contemporânea, caracterizando-o como um “ativo importante” cuja “escassez é inerente à vida moderna”.  Nesse sentido, o parlamentar argumenta que o cidadão frequentemente desperdiça seu tempo resolvendo problemas junto à administração pública, o que configura um desvio produtivo que merece ser reconhecido e reparado.

Relembre, a proposta legislativa visa incluir o artigo 43-A no Código Civil, estabelecendo que “as pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos ou omissões dos seus agentes que nessa qualidade causem desvio produtivo de terceiros”. 

Implicações Constitucionais

Esta formulação, à primeira vista, parece uma extensão natural do princípio da responsabilidade objetiva do Estado, já consagrado no artigo 37, § 6º da Constituição Federal.

No entanto, uma análise mais aprofundada revela problemas significativos de constitucionalidade

Primeiramente, ao tentar estabelecer uma nova modalidade de responsabilidade estatal por meio de uma simples alteração no Código Civil, o projeto ignora a hierarquia das normas jurídicas. 

A responsabilidade civil do Estado é matéria de estatura constitucional, e sua ampliação ou modificação substancial deveria, portanto, ser objeto de emenda à Constituição, não de legislação ordinária.

Além disso, o projeto corre o risco de transformar o poder público em uma espécie de “segurador universal” do tempo dos cidadãos ao responsabilizar o Estado por qualquer situação que possa ser caracterizada como “desvio produtivo

Nessa linha, vale lembrar entendimento do STJ:

“No Brasil, a regra geral de responsabilização civil do Estado varia conforme se trate de ação ou omissão. Na conduta comissiva, o ente público responde objetivamente; na omissiva, subjetivamente. Justifica-se a responsabilidade subjetiva sob o argumento de que nem toda omissão estatal dispara, automaticamente, dever de indenizar. Do contrário seria o Estado transformado em organismo segurador universal de todos contra tudo”

(STJ; AREsp 1.717.869; Proc. 2020/0150928-5; MG; Segunda Turma; Rel. Min. Herman Benjamin; Julg. 20/10/2020; DJE 01/12/2020)

“Não se imputa ao Estado, nem se mostra viável fazê-lo, a posição de segurador universal da integralidade das lesões sofridas por pessoas ou bens protegidos. Tampouco parece razoável, por carecer de onipresença, exigir que a Administração fiscalize e impeça todo e qualquer ato de infração à Lei.” (STJ; REsp 1.376.199; Proc. 2011/0308737-6; SP; Segunda Turma; Rel. Min. Herman Benjamin; DJE 07/11/2016)

Ora, qualquer hipótese de responsabilidade “universal” como a por “danos nucleares” prevista na Constituição apresenta justificativa muito evidente e clara, não sendo o caso, meros aborrecimentos que podem acontecer na seara pública.

Além disso, resta evidente que, se o STJ não adota a teoria do desvio produtivo na seara do Direito Civil, quanto mais se adotará na seara do Direito Pública em que é regida pela primazia do Interesse Público sob o interesse privado.

Conclusão

Por fim, essa abordagem não apenas é financeiramente insustentável, mas também conceitualmente problemática. O Estado, por sua natureza e complexidade, nem sempre pode garantir a eficiência absoluta em todas as suas interações com os cidadãos. Transformar toda ineficiência ou demora em um dano indenizável poderia paralisar a administração pública, temerosa de incorrer em responsabilidades a cada ação ou omissão.

Dessa forma, outro ponto crítico é a indefinição do conceito de “desvio produtivo” no texto do projeto. Ao não estabelecer critérios claros para a caracterização desse desvio, o PL abre margem para interpretações excessivamente amplas, potencialmente levando a uma enxurrada de demandas judiciais baseadas em percepções subjetivas de tempo perdido.

Em conclusão, embora o PL 3496/2024 traga à tona uma discussão importante sobre o valor do tempo do cidadão e a eficiência da administração pública, sua formulação atual apresenta sérios problemas de constitucionalidade e praticabilidade, sendo possivelmente rejeitada sua aplicação ao Direito Público pelo STJ. 

Como o tema já caiu em concursos

FCC – 2021 – DPE-BA – Defensor Público

A teoria do desvio produtivo:

a) tem sido reiteradamente rechaçada pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça na seara consumerista.

b) tem previsão expressa tanto no Código Civil como no Código de Defesa do Consumidor, para fins de responsabilidade civil.

c) tem sido utilizada para fundamentar o pedido de indenização do consumidor em razão do dano temporal sofrido.

d) serve para reconhecer a aplicação da legislação consumerista àquele que adquire o produto ou serviço, mas não na condição de destinatário final.

e) é o fundamento da indenização pela perda de uma chance.

Gab: Letra C

VUNESP – 2018 – Câmara de Olímpia – SP – Procurador Jurídico 

Decisões recentes do Superior Tribunal de Justiça encamparam a teoria do desvio produtivo do consumidor para condenar fornecedores a indenizar em danos morais os consumidores, cujo fundamento invocado consiste em – reconhecer que todo tempo desperdiçado pelo consumidor para a solução de problemas gerados por maus fornecedores constitui dano indenizável. 

(CERTO)

2019 – DPE-MG – Defensor Público

O dano temporal, fundado na teoria do desvio produtivo do consumidor, é categoria autônoma de dano, ao lado do dano moral, material, estético e coletivo. 

(CERTO)

FCC – 2018 – DPE-AM – Defensor Público 

Duas Turmas do Superior Tribunal de Justiça se pautaram pelo cabimento de dano moral indenizável pela falta de pronta solução pelo fornecedor para reparos dos vícios apresentados pelo produto e serviço, e pelo tempo gasto pelo consumidor para tentar, sem conhecimento técnico, solucioná-los. Tal tese denomina-se de – desvio produtivo do consumidor. 

(CERTO)

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