Durante sessão de julgamentos, uma desembargadora do TJ/BA criticou o sistema de cotas em universidades e concursos públicos, e afirmou que a política afirmativa “baixou o nível” de qualidade nas instituições públicas de ensino superior, veja o diálogo completo:
- "o sistema de cotas veio mais dividir do que unir a população"
- A declaração sobre a queda de qualidade das universidades públicas: "o desnível das Universidades públicas que eram tops (...) hoje em dia já não é tanto porque todos os professores comentam o desnível, a falta de qualidade do estudante"
- A negação das cotas como solução para a dívida histórica: "eu acho que nós temos sim uma dívida grande com os negros, mas não é por aí que se paga"
- A caracterização das cotas como "solução mais fácil" que "criou um grande problema"
- A vinculação implícita entre cotas e suposta perda de qualidade do ensino público: "hoje em dia ninguém mais quer estudar em colégio público, escola pública, por quê? Porque não tem mais qualidade"
Antes de tudo, precisamos separar o que são argumentos do ponto de vista de “opinião pessoal” e o que é do ponto de vista estritamente jurídico com a fundamentação legal e na jurisprudência.
Mas, antes, vamos contextualizar para você.
O que é o sistema de cotas e o que já decidiu o STF?
De início, vamos aprofundar o tema do sistema de cotas nas universidades e concursos públicos, conforme sedimentado pela jurisprudência da Suprema Corte:
O sistema de cotas em universidades públicas, com base em critério étnico-racial, é CONSTITUCIONAL. No entanto, as políticas de ação afirmativa baseadas no critério racial possuem natureza transitória. STF. Plenário ADPF 186/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 25 e 26/4/2012 (Informativo 663).
É também constitucional fixar cotas para alunos que sejam egressos de escolas públicas. STF. Plenário. RE 597285/RS, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 9/5/2012 (repercussão geral) (Informativo 665).
No caso das ações afirmativas, impende destacar que o princípio constitucional da isonomia, insculpido no artigo 5º, caput, da Lei Maior, apresenta uma dicotomia fundamental para a compreensão da matéria sub examine.
Por um lado, manifesta-se em sua vertente formal, consubstanciada na paridade de tratamento perante o ordenamento jurídico.
Por outro, revela-se em sua dimensão material, que reconhece a necessidade de tratamento diferenciado para situações fáticas desiguais, em observância ao brocardo aristotélico de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades.
Nessa linha, o STF, ao debruçar-se sobre a constitucionalidade do sistema de cotas na ADPF 186, desenvolveu uma hermenêutica constitucional alicerçada na teoria da justiça distributiva, preconizada por John Rawls, segundo a qual a mera declaração formal de igualdade revela-se insuficiente para a consecução dos objetivos fundamentais da República.
Inclusive, imperioso ressaltar que as ações afirmativas, conforme preceituado no artigo 2º, II, da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, incorporada ao ordenamento pátrio em 1968, configuram medidas especiais e concretas destinadas a assegurar o desenvolvimento e a proteção de determinados grupos sociais.
Por outro lado, cumpre enfatizar a natureza transitória das políticas de cotas, como delineou o STF.
Isto é, a Suprema Corte, em seu múnus constitucional, assentou que tais medidas não constituem privilégios permanentes, mas instrumentos temporários de correção de distorções históricas, em consonância com o princípio da proporcionalidade.
Origem e critérios
Por curiosidade, é forçoso reconhecer que, diversamente do que se propaga no senso comum, as ações afirmativas não têm sua gênese no direito norte-americano.
Sua origem remonta ao direito indiano, especificamente ao Government of India Act de 1935, que já estabelecia medidas para mitigar as desigualdades decorrentes do sistema de castas.
Ademais, no que concerne aos critérios de implementação, o Supremo Tribunal Federal fixou balizas importantes.
A identificação dos beneficiários pode ocorrer tanto por autodeclaração quanto por heterodeclaração, desde que preservada, in totum, a dignidade da pessoa humana. Em concursos públicos, é comum que haja uma “comissão de heteroidentificação”.
Por fim, reconheceu-se que, não obstante a inexistência de lastro científico para o conceito biológico de raça, o critério étnico-racial mantém sua validade como categoria social e histórica.
Mas, finalmente, o que decidiu o STF?
Em sede de controle concentrado de constitucionalidade, a Suprema Corte reconheceu que as universidades transcendem seu papel de centros de formação profissional, constituindo espaços privilegiados de formação das elites dirigentes do país. Destarte, a democratização do acesso ao ensino superior produz um efeito multiplicador na sociedade. Logo, seria constitucional às cotas no acesso as Universidades.
Tal entendimento, decorre do artigo 207 da Constituição Federal, no julgamento do RE 597285/RS, referente ao sistema de cotas da UFRGS. O tribunal assentou a desnecessidade de lei formal para a instituição do sistema de cotas, bastando ato administrativo da própria universidade, em respeito à autonomia universitária.
Por derradeiro, na opinião do STF, impende consignar que o sistema de cotas produz um efeito simbólico ou pedagógico, na medida em que proporciona paradigmas positivos para as gerações futuras, contribuindo para a desconstrução de estereótipos negativos cristalizados no tecido social.
Voltando ao caso da manifestação da Desembargadora, vamos aos 3 argumentos principais
"O sistema de cotas veio mais dividir do que unir a população"
No íntimo, trata-se de opinião pessoal.
Isto porque, juridicamente, digo na opinião do STF, essa frase contraria o próprio fundamento constitucional das ações afirmativas.
Veja, a ideia das cotas é justamente fazer com que a sociedade fique mais coesa e integrada, reduzindo desigualdades históricas.
"O desnível das Universidades públicas... falta de qualidade do estudante"
Aqui também estamos falando de opinião pessoal.
A Desembargadora quer constatar que o estudante que passou através de cotas tem um desempenho inferior que o estudante que ingressou através de uma nota mais alta.
A rigor não há fundamentação jurídica aqui, nem há conhecimento se existe um estudo que faça uma comparação entre cotistas x ampla concorrência.
"Temos uma dívida grande com os negros, mas não é por aí que se paga"
Trata-se também de opinião pessoal.
No âmbito jurídico o STF destacou que as ações afirmativas são constitucionais porém precisam ser temporárias.
Há uma dívida histórica não somente com os negros, com outras raças, entretanto, há quem queira impor outras formas de correção. Você concorda? Ou melhor que outras formas de correção seriam essas?
Como o tema já caiu em provas
Prova: FMP Concursos - 2015 - DPE-PA - Defensor Público Substituto Sobre ações afirmativas no contexto normativo brasileiro, é correto afirmar que: Alternativas A) não existe previsão legal no ordenamento jurídico brasileiro para adoção de ações afirmativas pelo Estado, as quais estão contempladas, entretanto, no Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) como previsão de política pública opcional aos governos. B) a veiculação da dimensão formal do princípio da igualdade pelo artigo 3º, IV, da Constituição Federal de 1988 impede a adoção de ações afirmativas no direito brasileiro. C) segundo o conceito presente no ordenamento jurídico brasileiro, são medidas especiais provisórias que visam a acelerar a igualdade de fato, as quais devem ser suspensas, assim que os objetivos de igualdade de oportunidade e tratamento tenham sido alcançados. D) o reconhecimento da constitucionalidade das ações afirmativas no direito brasileiro decorre exclusivamente de interpretação jurisprudencial oriunda do Supremo Tribunal Federal no exame do princípio da igualdade. E) a única previsão normativa no Brasil a respeito do tema está na Constituição Federal de 1988, no que se refere à reserva de vagas em concursos públicos para pessoas com deficiência. Gabarito: C.
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