Olá, pessoal. Aqui é o professor Allan Joos e hoje trago para vocês a análise de um caso que chamou a atenção nos últimos dias.

Trata-se de episódio envolvendo uma delegada de polícia do Estado do Pará, que, durante entrega feita por um entregador de aplicativo, passou a proferir diversos xingamentos e exigir que a entrega fosse levada até a porta de seu apartamento, apesar das regras do condomínio e da política da própria plataforma não serem esta. A cena foi registrada em vídeo e viralizou nas redes sociais.
Neste artigo faremos uma análise dando prioridade ao aspecto criminal, verificando as possíveis implicações jurídicas da conduta da agente pública, sem prejuízo de uma análise de possíveis consequências administrativas que poderão decorrer de sua conduta. O conteúdo é relevante para quem se prepara para concursos da área jurídica, em especial aqueles voltados para a magistratura, o Ministério Público e as defensorias públicas.
Do suposto abuso de autoridade e os limites da função pública
De início, é preciso registrar que o Estado confere às autoridades públicas prerrogativas para o exercício de suas funções. No entanto, quando há a utilização dessas prerrogativas com finalidade diversa e de forma abusiva — especialmente para satisfazer interesses pessoais ou impor vontades de maneira autoritária — está-se diante de um desvio de finalidade, que pode ensejar responsabilização penal e administrativa de quem comete o abuso.
No caso concreto, a delegada se valeu de sua posição institucional para exigir que o entregador subisse até o seu apartamento, sem qualquer autorização legal para isso. Segundo relatos e vídeos divulgados nas redes sociais, ao se contrariar, ela passou a gritar com o entregador e a ofendê-lo verbalmente. Inclusive, a delegada o ameaçou, mencionando seu cargo como argumento para impor sua vontade e chegou a dar voz de prisão.
Caso a delegada avançasse em sua conduta, poderia ter praticado, em tese, o crime de abuso de autoridade, tipificado na Lei nº 13.869/2019. No caso, apesar de aparentemente ser dirigido à autoridade judiciária, também pode o delegado de polícia incorrer no mesmo dispositivo legal quando, arbitrariamente, determinar medida privativa de liberdade, quando ilegalmente.
Diz o artigo 9º da Lei 13.869/2019:
Art. 9º Decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais: (Promulgação partes vetadas)
Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
No caso, entretanto, não houve a prática do referido delito, na medida em que a “voz de prisão” ocorreu em um contexto de ameaça, configurando delito específico, com dolo próprio.
Pode-se cogitar, também, a prática do seguinte delito, previsto no citado diploma normativo (Lei de Abuso de Autoridade):
Art. 33. Exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal:
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem se utiliza de cargo ou função pública ou invoca a condição de agente público para se eximir de obrigação legal ou para obter vantagem ou privilégio indevido.
Das ofensas verbais: injúria e a proteção da dignidade subjetiva
Outra possível infração penal cometida no episódio é o crime de injúria, previsto no artigo 140 do Código Penal. Conforme divulgado nos principais portais de notícias, a delegada xingou o entregador de diversas formas, utilizando-se de termos pejorativos, com o claro intuito de ofendê-lo em sua dignidade pessoal, não apenas por uma irritação momentânea, mas como instrumento de dominação simbólica e humilhação diante de terceiros.
Dispõe o art. 140 do CP:
Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro. Pena: detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa.
A doutrina reconhece que a injúria é o crime contra a honra subjetivo, pois se dirige à dignidade da pessoa de modo direto, e não à sua reputação (como na difamação) ou à falsa imputação de fato criminoso (como na calúnia). O dolo específico consiste na intenção de menosprezar ou humilhar o outro.
Vale lembrar que se trata de crime de ação penal privada, exigindo que a vítima ingresse com uma queixa-crime para processar o ofensor (art. 145 do Código Penal).
Ameaça como instrumento de intimidação
Se, além das injúrias, restar comprovado que a delegada ameaçou o entregador com mal injusto e grave — como perda de trabalho, retaliações profissionais ou até mesmo prisão injustificada — podemos estar diante do crime de ameaça, previsto no artigo 147 do Código Penal.
Trata-se de crime formal, ou seja, que se consuma independentemente de o agente ter efetivamente causado o mal prometido. Assim, basta que a vítima tenha se sentido intimidada e que a ameaça tenha plausibilidade.
Vale lembrar que o crime de ameaça se processa mediante ação penal pública condicionada à representação (art. 147, §2º, do Código Penal).
Princípio da consunção
No caso em análise, se restar configurado o crime de abuso de autoridade, já que por mais que não estivesse em serviço a delegada se utilizou do cargo para ofender e humilhar o entregador, certamente os crimes de injúria e ameaça restarão absorvidos, na medida em que a conduta fim – abuso de autoridade – absorve as condutas antecedentes.
Responsabilidade administrativa e reflexos na carreira
A análise penal, embora importante, não esgota as consequências do comportamento da delegada. Como servidora pública investida de função de Estado, sua conduta também pode ensejar responsabilização administrativa e disciplinar.
Além disso, os efeitos práticos sobre a reputação institucional da Polícia Civil e a imagem do serviço público tornam o episódio ainda mais sensível.
Considerações finais: quando a balança se desequilibra
O caso envolvendo a delegada do Pará nos convida a refletir sobre os limites do poder estatal e a importância do controle social sobre aqueles que detêm autoridade pública. A função pública deve ser exercida com responsabilidade, legalidade e, sobretudo, respeito à dignidade humana.
A violência simbólica que emerge de situações como esta não é apenas uma agressão pessoal, mas uma afronta ao próprio Estado Democrático de Direito. Quando uma autoridade utiliza sua posição para intimidar e humilhar um cidadão comum, especialmente um trabalhador em posição de vulnerabilidade social, o Estado falha em seu compromisso mais básico: proteger seus cidadãos, e não oprimi-los.
Por isso, o estudo técnico de casos como este é essencial para quem busca atuar no sistema de justiça. Compreender os limites da tipicidade, a análise das elementares subjetivas dos crimes e os reflexos administrativos é parte do preparo completo que se espera de um futuro defensor público, promotor, juiz ou delegado.
Fiquem atentos, porque são justamente casos como este que inspiram enunciados de questões discursivas, orais e até mesmo peças práticas em concursos jurídicos.
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