“Ainda Estou Aqui”: por que caso da ditadura retratado no filme segue sem resolução

“Ainda Estou Aqui”: por que caso da ditadura retratado no filme segue sem resolução

Entenda o caso

O filme protagonizado pela premiada Fernanda Torres conta a história da família de Rubens Paiva. Ele foi vítima de desaparecimento forçado à época da ditadura militar no Brasil.

A trama mostra os últimos dias de Rubens Paiva junto à sua família, seu desaparecimento, bem como a luta da família em busca de notícias da vítima, terminando por contar o desenrolar da história no período pós-ditadura e a luta de Eunice Paiva, esposa de Rubens.

A ditadura militar

Em 1964, um golpe militar depôs o então presidente João Goulart, instaurando um regime militar no país. O regime consolidou-se com normas de segurança nacional, atos institucionais e medidas de exceção, como o Ato Institucional nº 5 (1968), que ampliou a repressão ao fechar o Congresso, censurar a imprensa, suspender direitos individuais e expandir a justiça militar, introduzindo penas como prisão perpétua e morte.

Dados indicam que cerca de 50 mil pessoas foram presas nos primeiros meses do regime; 20 mil foram torturadas, 354 morreram ou desapareceram, e milhares perderam direitos políticos ou foram expulsas do país.1

Rubens Paiva

Rubens Paiva era engenheiro e se elegeu deputado federal. Tomou posse em 02 de fevereiro de 1963, porém foi cassado. Assim, teve os seus direitos políticos suspensos por dez anos, na legislatura 1963-1967, em face do disposto no art. 10 do Ato Institucional nº 1, de 09 de abril de 1964, nos termos do Ato nº 1 do Comando Supremo da Revolução, de 10 de abril de 1964, publicado no D.O. de 10/04/1964, p. 3217.

O filme conta que mesmo cassado, ele continuou envolvido em atividades políticas e de resistência contra a ditadura, oferecendo auxílio financeiro a militantes que lutavam contra o regime. Essa atuação colocou-o na mira dos órgãos de repressão, como o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e o Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI).

No dia 20 de janeiro de 1971, Rubens Paiva foi preso em sua residência no Rio de Janeiro, não mais retornando. Nunca encontraram seu corpo.

A Lei de Anistia

Caso da ditadura

Em 1979, num período de transição para o regime democrático, houve a publicação da Lei 6.683/79. Buscando a reconciliação nacional, tal Lei concedeu então perdão tanto para opositores políticos quanto para agentes da repressão que cometeram graves violações de direitos humanos.

Com isso, nunca houve apuração judicial das circunstâncias da morte e a responsabilização dos envolvidos, embora o Ministério Público Federal tenha oferecido denúncia contra os supostos envolvidos em maio de 20142.

A discussão

A Corte IDH vem reconhecendo que as leis de anistia promulgadas nos períodos pós-ditadura são inconvencionais. Isso porque obstáculos de ordem interna não podem impedir a investigação, processo e julgamento de graves violações de direitos humanos.

A controvérsia reside na proteção que a anistia confere a torturadores e outros perpetradores de crimes contra a humanidade, indo contra princípios estabelecidos pelo direito internacional.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) desempenhou um papel crucial ao analisar violações de direitos humanos durante regimes autoritários na América Latina, inclusive no Brasil.

Das 14 condenações do Brasil na Corte IDH, 13 têm como fundamento o descumprimento do dever de investigar, processar e punir as violações de direitos humanos (obrigações processuais positivas), sendo duas delas em contexto de desaparecimento forçado no contexto da ditadura (Casos Guerrilha do Araguaia e Herzog vs. Brasil).

A Corte tem reconhecido o direito das vítimas à verdade, e mais do que isso, à investigação, processo e julgamento dos envolvidos, afirmando se tratar de uma obrigação de meio.

Desdobramentos do tema no direito interno

A Corte IDH apreciou o tema da anistia de agentes da ditadura militar.

A primeira apreciação ocorreu no ano de 2009, no julgamento do Caso Gomes Lund. Na oportunidade, reconheceu-se a necessidade de investigar, processar e, eventualmente, punir os responsáveis pelas violações perpetradas ao longo do regime ditatorial brasileiro. O Tribunal registrou que institutos de direito interno não poderiam servir de óbice à persecução e responsabilização dos infratores.

Posteriormente, em 2010, o STF enfrentou a matéria no julgamento da ADPF 153. Na ocasião, a Corte brasileira reconheceu a constitucionalidade da Lei de Anistia.

Em 2014, o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) ajuizou a nova ADPF 320. O objetivo era questionar o descumprimento da sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Gomes Lund.

Na petição inicial, o PSOL pugnou que fosse declarado que a Lei 6.683/79 (Lei de Anistia) não se aplica aos crimes de graves violações de direitos humanos cometidos por agentes públicos, e que determinasse a todos os órgãos do Estado que dessem cumprimento integral aos pontos proferidos na sentença da Corte IDH. A ação encontra-se pendente de julgamento.

A teoria do duplo controle

Há um aparente conflito entre a deliberação tomada pela Corte e a decisão do STF na ADPF 153. A solução para isso pode ocorrer através da teoria do duplo controle.

Sabemos que as normas jurídicas editadas no plano interno devem obediência à Convenção Americana sobre Direitos Humanos e à Constituição Federal. Sem prejuízo do controle de convencionalidade realizado pelos juízes nacionais, a Corte IDH, intérprete última da Convenção, realiza um controle concentrado; e, em paralelo, no plano interno, os juízes e o STF realizam o controle de constitucionalidade.

Na primeira modalidade de controle, avalia-se a compatibilidade da norma com a Convenção, ao passo que na segunda, com a Constituição. A norma, para se considerar válida, deve passar por ambos os filtros.

Pode-se afirmar que a norma em questão passou pelo filtro da constitucionalidade (como resultado do controle feito pelo STF, na ADPF 153), embora não tenha passado pelo filtro da convencionalidade (conforme afirmado pela Corte IDH).

Logo, resta aguardar como o STF vai se pronunciar na ADPF 320.

A Comissão da Verdade

A Lei 12.528/11 instituiu a Comissão Nacional da Verdade (CNV) no Brasil, com o objetivo de investigar e esclarecer graves violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura militar (1964-1985). Foi uma iniciativa histórica para promover a memória, a verdade e a justiça, alinhando-se a esforços similares em outros países da América Latina que também enfrentaram regimes autoritários.

Seus objetivos são:

I - esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações de direitos humanos no contexto da ditadura;

II - promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior;

III - identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos no contexto da ditadura;

IV - encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e qualquer informação obtida que possa auxiliar na localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos;

V - colaborar com todas as instâncias do poder público para apuração de violação de direitos humanos;

VI - recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional; e

VII - promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história dos casos de graves violações de direitos humanos, bem como colaborar para que seja prestada assistência às vítimas de tais violações.

A Comissão, no entanto, não tem função jurisdicional.

No julgamento do Caso Vladmir Herzog, a Corte IDH afirmou que toda pessoa tem o direito de conhecer a verdade. Sublinhou ainda que a “verdade histórica”, propiciada a partir de Comissões (Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos e Comissão Nacional da Verdade), não substitui a obrigação estatal de investigar e eventualmente e punir por meio dos processos judiciais penais. Esses processos têm papel significativo na reparação das vítimas, reconhecendo-as como titulares de direitos.

A solução do caso Rubens Paiva

O relatório preliminar de pesquisa da Comissão Nacional da Verdade no Caso Rubens Paiva, datado de fevereiro de 20143, reconheceu o seguinte:

20 de janeiro de 1971:

  • Prisão de Rubens Paiva em casa, no Leblon, por agentes do CISA. Em seguida, levam-no ao Quartel da 3ª Zona Aérea, onde sofre as primeiras torturas.

–  21 de janeiro de 1971:

  • Médico Amílcar Lobo atende Rubens Paiva no DOI e constata hemorragia abdominal por ruptura hepática.

–  Farsa do resgate:

  • Após a morte de Rubens Paiva, o DOI simulou um resgate armado nas proximidades do Alto da Boa Vista para encobrir sua execução e ocultação do corpo.
Em resumo: A CNV concluiu que Rubens Paiva foi torturado até a morte sob custódia do DOI, com conhecimento e supervisão do general Belham. A ocultação do corpo e a construção de uma narrativa falsa foram deliberadamente orquestradas pelo comando militar.

A responsabilização criminal dos envolvidos, no entanto, depende de que seja superado o obstáculo imposto pela Lei de Anistia (cuja inconvencionalidade foi reconhecida pela Corte IDH).


  1. Dados extraídos da sentença proferida pela Corte IDH no Caso Guerrilha do Araguaia vs. Brasil. ↩︎
  2. COMISSÃO Nacional da Verdade. Denúncia Rubens Paiva MPFRJ. Disponível em: <https://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/arquivos/documentos/doc01-denuncia-rubens-paiva-mpfrj>. ↩︎
  3. COMISSÃO Nacional da Verdade. Relatório Preliminar de Pesquisa: caso Rubens Paiva. Disponível em: <https://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/upload/003-relatorio-preliminar-CNV.pdf>. ↩︎

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