Carta psicografada é prova no Júri? Nem pensar! Por que o julgamento precisa ser racional (e não espiritual)

Carta psicografada é prova no Júri? Nem pensar! Por que o julgamento precisa ser racional (e não espiritual)

Introdução

O texto discute a inadmissibilidade das cartas psicografadas como meio de prova em processos penais, especialmente nos julgamentos realizados pelo Tribunal do Júri.

Embora a legislação brasileira assegure ampla liberdade na produção de provas, essa liberdade encontra limites na Constituição, que veda o uso de provas ilícitas, e no princípio da racionalidade, que exige que toda prova tenha um mínimo de confiabilidade empírica ou científica.

Contexto

Imagine a seguinte situação: um médium escreve uma carta dizendo que está transmitindo uma mensagem de uma pessoa já falecida — geralmente, a vítima de um crime. Nessa carta, o “espírito” supostamente explica o que aconteceu e até inocenta o acusado. Essa carta, chamada de psicografada, é levada aos autos de um processo criminal. E o que está em discussão é: essa carta pode ser usada como prova no julgamento?

A princípio, pode até parecer curioso — ou até reconfortante para quem tem fé — pensar que uma vítima “voltou” para se manifestar. Mas será que podemos utilizá-la no processo?

O processo penal é um instrumento racional de busca da verdade e da justiça. E por mais que respeite todas as crenças religiosas, ele não pode admitir uma prova que não tenha nenhuma confiabilidade mínima, que seja fruto apenas de fé — e não de fato.

Ampla liberdade na produção de provas

No Brasil, o processo admite ampla liberdade na produção de provas, desde que elas sejam lícitas e relevantes. O artigo 369 do Código de Processo Civil, que se aplica ao processo penal de forma subsidiária, deixa isso bem claro: as partes podem empregar todos os meios legais, ou moralmente legítimos, mesmo que não previstos em lei, desde que aptos a provar a verdade dos fatos.

Carta psicografada

Mas essa liberdade não é absoluta. A Constituição Federal, no artigo 5º, inciso LVI, proíbe expressamente o uso de provas ilícitas, ou seja, aquelas obtidas com desrespeito a regras de direito material ou processual.

Mas além disso, há um outro requisito essencial, e que muitas vezes passa despercebido: a racionalidade da prova. Isso significa que a prova precisa ser minimamente confiável do ponto de vista lógico, científico ou empírico — precisa ter o que se chama de idoneidade epistêmica.

E é justamente nesse ponto que a psicografia esbarra. Essa prática é muito conhecida no meio espírita: um médium recebe mensagens de espíritos e as escreve manualmente. A psicografia tem um valor espiritual enorme para quem acredita, mas não tem nenhum tipo de comprovação científica. Não existe hoje qualquer método racional de verificação que comprove que aquilo que está escrito veio, de fato, de alguém morto.

Ora, se uma prova não pode ser checada por critérios técnicos, científicos ou de experiência comum, ela simplesmente não serve ao processo penal, que exige demonstração, e não crença. A fé há de ser respeitada — mas não pode substituir a prova. Isso vale para qualquer crença, de qualquer religião. E essa restrição não tem nada a ver com perseguição religiosa, nem com o princípio da laicidade do Estado. O problema da carta psicografada não é ser religiosa — é ser irracional. Foi o que decidiu o STJ no RHC 167.478-MS.

Tribunal do Júri

Agora, pense na situação do Tribunal do Júri. Os jurados são cidadãos comuns, escolhidos por sorteio, e não precisam justificar os seus votos. Eles julgam com base na chamada íntima convicção — ou seja, decidem de acordo com aquilo que sentem ou acreditam ser verdade. Isso é legítimo, mas também perigoso, porque abre espaço para influências emocionais, subjetivas e até místicas.

Justamente por isso, o juiz presidente do Júri tem um papel fundamental: ele precisa filtrar as provas que vão ser apresentadas ao Conselho de Sentença. Não pode permitir que os jurados tenham contato com provas que não sejam minimamente confiáveis — sob pena de colocar em risco todo o julgamento.

Conclusão

Aceitar uma carta psicografada como prova é o mesmo que abrir a porta para outros tipos de manifestações sobrenaturais no processo penal, o que é absolutamente incompatível com a lógica do processo penal moderno, que exige rigor, imparcialidade e racionalidade.

É importante dizer também que, embora a psicografia não seja prova admissível em juízo, ela não é ilícita. Ou seja, a pessoa que escreve ou entrega uma carta psicografada não está cometendo crime. O que se discute é o valor dessa carta como meio de prova, não a legalidade do ato em si. Inclusive, numa fase preliminar de investigação, uma carta dessas pode até ser usada como uma pista: por exemplo, ela pode levantar um nome, ou indicar um local, que depois seja investigado por meios objetivos e legais.

Mas quando se trata do julgamento — especialmente no Júri — a coisa muda de figura. A Justiça não pode permitir que os jurados se deixem levar por provas emocionais, espirituais ou irracionais. O risco de erro judiciário é grande.


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