Como é cediço, o Carnaval é uma manifestação cultural enraizada no Brasil, representando não apenas “festividades”, mas também uma expressão da identidade nacional. Porém, nos chamou a atenção que vários municípios têm anunciado o cancelamento dos eventos públicos de carnaval, conforme noticiado em sites:
1. Sorocaba (SP): Pelo sexto ano consecutivo, a prefeitura de Sorocaba decidiu não financiar o Carnaval, direcionando os recursos para áreas como saúde e educação. Eventos privados podem ocorrer, desde que organizados pela iniciativa privada e com a devida autorização municipal. (EM; Isto É)
2. Salto (SP): A cidade de Salto cancelou o tradicional desfile dos Bonecões em 2025, justificando a decisão por motivos financeiros e priorização de outras áreas essenciais. (Perfil Brasil; tvsorocaba.com.br; IstoÉ)
3. Mairinque (SP): A prefeitura de Mairinque anunciou que não realizará eventos carnavalescos em 2025, alinhando-se a decretos municipais de contenção de despesas e priorização de investimentos em áreas essenciais. (Jornal Cruzeiro)
4. Três Corações (MG): Enfrentando uma dívida de aproximadamente R$ 60 milhões, o município de Três Corações optou por cancelar o Carnaval para não comprometer pagamentos essenciais, como rescisões trabalhistas e compra de medicamentos. (Pocó SJA)
5. Guaranésia (MG): Declarando estado de emergência financeira desde novembro de 2024, Guaranésia decidiu não realizar as festividades carnavalescas em 2025, priorizando reparos em unidades de saúde, infraestrutura viária e iluminação pública. (Pocó SJA; EM)
6. Serro (MG): Após sofrer prejuízos estimados em mais de R$ 10,7 milhões devido a chuvas intensas, a prefeitura de Serro cancelou o Carnaval de 2025 para focar na recuperação do município e no apoio às famílias afetadas. (Prefeitura de Serro)
7. Juazeiro (BA): Afundada em dívidas, a prefeitura de Juazeiro decretou o cancelamento do Carnaval de 2025, destacando a necessidade de enfrentar a grave crise financeira e priorizar serviços essenciais. (BNews)
Justificativa
No fundo, a justificativa por trás é apontada para a necessidade de contenção de gastos e direcionamento de recursos para áreas consideradas prioritárias, como saúde, educação e infraestrutura.
Afinal, estamos diante de uma decisão legítima, pautada pela responsabilidade fiscal, ou de um potencial desrespeito ao patrimônio cultural imaterial brasileiro?
É legítimo o carnaval ser financiado publicamente pelos entes para contratação de “bandas caras”?
De início, é importante ressaltar que a Constituição Federal, em seu artigo 216, estabelece que constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial. No íntimo, o carnaval, está perfeitamente nessa definição constitucional.
Em outras palavras, sob essa perspectiva, o poder público não apenas está autorizado a promover e financiar os festejos carnavalescos, mas possui um verdadeiro dever constitucional de garantir o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura nacional, conforme preconiza o artigo 215 da Carta Magna:
"O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais."
Entretanto, o grande problema no fundo é o FINANCIAMENTO PÚBLICO para eventos como, por exemplo, a contratação de grandes bandas no carnaval, como divulgado pela mídia:
Salvador (BA):
Léo Santana: contratado pela prefeitura por R$ 2 milhões para quatro shows durante o Carnaval de 2025, resultando em um cachê médio de R$ 500 mil por apresentação. (Aratu On; Portal Umbú)
BaianaSystem: recebeu R$ 700 mil por duas apresentações em 2025: uma no evento “Furdunço” (R$ 300 mil) e outra durante o Carnaval (R$ 400 mil). (BNews)
Aracati (CE):
Nattanzinho: recebeu R$ 450 mil por sua performance no mesmo evento. (Isto É Dinheiro; conexaoto.com.br; Portal Umbú)
Gurupi (TO):
Barões da Pisadinha: contratados por R$ 400 mil para uma apresentação durante o Carnaval de 2023.
João Bosco & Vinícius: receberam R$ 250 mil por seu show no mesmo período. (conexaoto.com.br)
Foz do Iguaçu (PR):
Turma do Pagode: contratada por R$ 400 mil para uma apresentação no Carnaval de 2025.
Pedro Paulo & Alex: a dupla sertaneja recebeu R$ 210 mil por seu show no mesmo evento. (conexaoto.com.br; Isto É Dinheiro)
Zé Doca (MA):
Maria Marçal: a cantora gospel foi contratada por R$ 210 mil para uma apresentação no evento “1º Zé Doca com Cristo” em 2025, que substituiu o Carnaval tradicional. (Isto É Dinheiro)
Banda Morada: recebeu R$ 170 mil para se apresentar no mesmo evento. (Isto É Dinheiro)
Isto é, deve o ente público continuar contratando artistas consagrados para eventos como o carnaval? Ou talvez pensarmos na continuidade, mas na contratação de bandas locais que sejam menos custosos?
O argumento da responsabilidade fiscal

Por outro lado, a administração pública está adstrita aos princípios estabelecidos no artigo 37 da Constituição Federal: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Esses princípios exigem que os gestores públicos apliquem os recursos de maneira responsável, priorizando o interesse público e a sustentabilidade financeira do município.
Ademais, a Lei Complementar nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF) impõe limites e condições para a gestão fiscal, exigindo que as despesas públicas sejam compatíveis com a receita e não comprometam as funções essenciais do Estado. Segundo esse diploma legal, a gestão fiscal pressupõe uma ação planejada e transparente, com prevenção de riscos e correção de desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas.
No contexto específico do carnaval, a LRF não proíbe expressamente a realização de festividades, mas estabelece condições que devem ser observadas:
- Os gastos com o carnaval devem estar previstos no orçamento anual;
- Esses gastos não podem comprometer o equilíbrio fiscal do município;
- Deve haver proporcionalidade entre o gasto e a capacidade financeira do município.
O grande problema é que a LRF não estabelece expressamente uma hierarquia de despesas que determine que certas obrigações (como folha de pagamento) devam ser pagas antes de se realizar eventos festivos. O que existe são:
- Disposições sobre o equilíbrio fiscal geral (art. 1º);
- Normas sobre limitação de empenho quando houver risco de não cumprimento das metas fiscais (art. 9º);
- Obrigações específicas de aplicação mínima em saúde e educação (que vêm da Constituição Federal, não da LRF);
- Limites para despesas com pessoal (arts. 19 e 20).
Suspensão de orçamento
No fundo, a priorização de despesas essenciais sobre festividades decorre mais da interpretação dos Tribunais de Contas e da doutrina administrativa do que do texto literal da LRF.
Por exemplo, quando um Tribunal de Contas recomenda suspender gastos com carnaval para priorizar pagamento de servidores (como no caso de Correntina/BA), isso representa uma interpretação da fiscalização sobre a adequada gestão fiscal, não uma determinação expressa da lei:
Juíza veta folia de carnaval de R$ 6,5 mi enquanto prefeitura na BA não pagar servidores
A Vara Cível de Correntina, no interior da Bahia, determinou a suspensão do orçamento de R$ 6,5 milhões para as festas de carnaval enquanto o município não pagar os salários atrasados dos servidores. A decisão considera que a nova gestão da prefeitura adotou uma conduta 'omissiva' em relação às obrigações financeiras assumidas na gestão anterior. Segundo os autos, mais de 2 mil servidores estão com o salário de dezembro e o décimo terceiro atrasados. A prefeitura alegou que não recebeu a folha de pagamentos da gestão anterior.
A ideia de “obrigações prioritárias” também deriva do princípio da eficiência administrativa (art. 37 da Constituição Federal) e da noção de interesse público primário versus secundário, conceitos do Direito Administrativo que orientam a aplicação da LRF, mas que não estão textualmente nela.
Em suma, os gestores municipais optam pelo cancelamento do carnaval com a ideia de que os recursos economizados serão revertidos para áreas essenciais como saúde, educação e assistência social.
E o que dizem os Tribunais de contas?
Para o corrente ano, só sabemos de notícias informativas:
1. Tribunal de Contas do Estado do Ceará (TCE-CE):
Em fevereiro de 2025, o presidente do TCE-CE, Rholden Queiroz, destacou que o objetivo do Tribunal não é se opor às festividades, mas assegurar que os gastos estejam em conformidade com a legislação vigente.
Até o final de fevereiro de 2025, as despesas das prefeituras cearenses para o Carnaval somavam R$ 72,4 milhões, sendo R$ 51,8 milhões destinados à contratação de artistas e R$ 17,7 milhões à infraestrutura. O Tribunal enfatizou importância da transparência e do controle social nesses gastos:
TCE Ceará vai acompanhar despesas relacionadas às festividades de Carnaval em municípios
2. Tribunal de Contas do Estado da Paraíba (TCE-PB):
O TCE-PB orientou os gestores municipais para que os gastos com festividades, incluindo o Carnaval, não comprometam os limites legais estabelecidos para despesas públicas.
A Corte enfatiza a necessidade de equilíbrio nas contas públicas e alerta que a realização de eventos festivos não deve prejudicar áreas essenciais como saúde, educação e pagamento de servidores:
TCE-PB orienta prefeitos para que gastos com festividades não comprometam limites legais
3. Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco (TCE-PE):
Em fevereiro de 2019, o TCE-PE recomendou à Prefeitura de Camaragibe a não utilização de recursos públicos no Carnaval daquele ano, devido à ausência de orçamento aprovado no município.
A procuradora geral do Ministério Público de Contas, Germana Laureano, argumentou que, na falta de um orçamento aprovado, seria imprudente realizar despesas com festividades.
Carnaval: TCE mantém recomendação feita à prefeitura de Camaragibe
Entretanto, em fevereiro de 2025, a Justiça determinou que a Prefeitura de Correntina/BA não utilizasse recursos públicos para a realização do Carnaval antes de quitar os salários atrasados dos servidores municipais e regularizar os repasses para a área da saúde.
Obviamente, além da perspectiva cultural um dos argumentos mais fortes contra o cancelamento do carnaval é justamente de natureza econômica.
De acordo com dados da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), o carnaval de 2023 movimentou cerca de R$ 8,2 bilhões na economia nacional, impactando positivamente setores como turismo, gastronomia, hotelaria, transporte e comércio em geral:
CNC estima que carnaval movimente R$ 8,1 bilhões em todo o país
Critérios de decisão e alternativas ao cancelamento total
Nas decisões, é cediço que os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade devem prevalecer.
1)Há necessidade de planejamento e estudos técnicos prévios que demonstrem o impacto econômico positivo ou negativo da realização do evento.
2)Em segundo lugar, aponta-se para alternativas ao cancelamento total, como a redução da programação, a busca por patrocínios privados, ou então até a contratação de artistas mais baratos prestigiando a economia local.
3)O papel da participação popular: um elemento frequentemente negligenciado nesse debate é a participação popular nas decisões sobre o carnaval público.
A Constituição Federal consagra o princípio da participação comunitária na formulação e execução das políticas culturais (art. 216, § 1º), enquanto o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) estabelece a gestão democrática como diretriz fundamental das cidades.
Assim, perguntamos: o cancelamento do carnaval é uma prudência ou desrespeito?
Conclusões preliminares
1. O cancelamento do carnaval público pode ser juridicamente legítimo quando comprovadamente necessário para garantir o equilíbrio das contas públicas e a manutenção de serviços essenciais;
2. Entretanto, tal decisão, bem como de financiar um carnaval publicamente, não deve ser tomada de forma discricionária, devendo apoiar-se em estudos técnicos que demonstrem a inviabilidade econômica ou a desproporcionalidade dos gastos;
3. Alternativas ao cancelamento total devem ser seriamente consideradas, como redução de programação, parcerias privadas ou redimensionamento do evento;
4. A participação da comunidade, especialmente dos agentes culturais diretamente afetados (artistas, produtores, blocos carnavalescos), é fundamental para legitimar qualquer decisão nesse sentido.
5. Entretanto, deve-se buscar em conta alternativas como a consagração de artistas locais em detrimento de artistas que são reconhecidamente, caso não haja uma comprovação fiscal.
Convido você ao raciocínio, caro leitor.
Saudações para você curtir o seu carnaval da forma que for!
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