Boxeadora falsamente rotulada de trans massacra oponente feminina nas Olimpíadas e causa revolta na internet. Rival abandonou a luta.
* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Entenda o caso
A boxeadora argelina Imane Khelif venceu a luta contra a italiana Angela Carini na categoria de até 66 kg do boxe feminino nos Jogos Olímpicos de Paris (2024). Após 46 segundos de luta, a italiana abandonou o confronto após tomar um soco no nariz que a machucou muito.
Seria mais uma luta normal se não fosse o fato de que a argelina estava sendo acusada de ser uma mulher trans, ou seja, biologicamente ela seria homem, o que desequilibraria a disputa, tornando a luta injusta.
Mas na verdade Imane não é uma mulher trans, como amplamente propagado nas redes sociais, mas sim uma pessoa intersexo, antes chamada de hermafrodita.
Vamos entender melhor os conceitos.
Pessoas transexuais e pessoas intersexuais
As pessoas transexuais são aquelas que têm uma identidade de gênero divergente do sexo biológico atribuído no nascimento. Exemplo: um bebê do sexo feminino se identifica com o gênero masculino. Não é esse o caso da lutadora argelina.
Já as pessoas intersexuais nascem com características sexuais — incluindo genitais, padrões cromossômicos e glândulas, como testículos e ovários –, que não se encaixam nas noções binárias típicas de corpos masculinos ou femininos. Elas podem ser diagnosticadas no pré-natal, no nascimento, durante a puberdade e em outros momentos, como ao tentar conceber um filho. Exemplo: pessoa que possui os genitais e órgãos internos referentes ao sexo feminino, mas que não produz hormônios correspondentes, pessoa que possui pênis e ovários ou pessoa que nasceu com pênis e vagina.
Infelizmente as pessoas nessa condição (intersexo) sofrem bastante com discriminação e preconceito, e isso tem gerado, na maioria dos casos, perseguições, humilhações, violência, danos à honra e à imagem, o que demanda de todos uma maior conscientização e combate a esse flagelo que é o preconceito.
No caso da lutadora argelina, ela se enquadra na condição de intersexo, e não de mulher trans, ou seja, ela não nasceu biologicamente como homem e se identifica como mulher. Ela apenas não possui os níveis de testosterona próprios e comuns às mulheres.
Imane Khelif foi excluída do Mundial Feminino de Boxe em 2023, horas antes de disputar a medalha de ouro. A decisão foi tomada pela Federação Internacional da modalidade (IBA), que alegou que a atleta “não atendia aos critérios de elegibilidade”, e essa condição poderia comprometer a integridade física da adversária e a justiça da competição, já que ela teria vantagens biológicas se comparadas às adversárias do sexo feminino.
Em resposta, o Comitê Olímpico Internacional emitiu nota, ressaltando:
Toda pessoa tem o direito de praticar esporte sem discriminação. Todos os atletas participantes do torneio de boxe dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 cumprem os regulamentos de elegibilidade e inscrição da competição, bem como todos os regulamentos médicos aplicáveis definidos pela Unidade de Boxe de Paris 2024 (PBU)... Vimos em reportagens informações enganosas sobre duas atletas competindo nos Jogos Olímpicos de Paris 2024. As duas atletas competem em competições internacionais de boxe há muitos anos na categoria feminina, incluindo os Jogos Olímpicos de Tóquio 2020, o Campeonato Mundial da Associação Internacional de Boxe (IBA) e torneios sancionados pela IBA. Essas duas atletas foram vítimas de uma decisão repentina e arbitrária da IBA. Perto do fim do Campeonato Mundial da IBA em 2023, elas foram repentinamente desqualificadas sem nenhum devido processo... Tal abordagem é contrária à boa governança. As regras de elegibilidade não devem ser alteradas durante a competição em andamento, e qualquer alteração nas regras deve seguir processos apropriados e deve ser baseada em evidências científicas. O COI está comprometido em proteger os direitos humanos de todos os atletas que participam dos Jogos Olímpicos, conforme a Carta Olímpica, o Código de Ética do COI e o Quadro Estratégico do COI sobre Direitos Humanos. O COI está triste com o abuso que as duas atletas estão sofrendo atualmente.
Análise jurídica
Agora que entendemos o que aconteceu, vamos à análise técnica.
Legislação
A discussão jurídica que se impõe é o choque entre o direito fundamental da atleta trans ou intersexual de exercer sua profissão sem discriminação sexual (liberdade sexual e de gênero) de um lado versus o princípio desportivo da igualdade da competição (igualdade de armas).
Ambos os princípios têm o seu fundamento, as suas razões, as suas justificativas e a sua respectiva tutela jurídica.
Assim como todo indivíduo tem a o direito de escolher sua orientação sexual e não sofrer discriminação por tal escolha (artigo 3º, IV, da CF) os competidores também possuem o direito de competir em igualdade de condições com o oponente, sob pena de afronta ao princípio da igualdade de competição (artigo 2º, I, IV, VII, XI, XV e XVI, todos da Lei Geral do Esporte – Lei nº 14.597/2023).
CF/88 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: ... IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. ...
Lei nº 14.597 Art. 2º São princípios fundamentais do esporte: I - autonomia; ... IV - diferenciação; ... VII - especificidade; ... XI - integridade; ... XV - saúde; XVI - segurança.
Dividir para competir
O ponto mais sensível na discussão é que as competições esportivas são naturalmente segregacionistas, de modo que existem diversos critérios para se estabelecer os competidores. Os mais comuns são a divisão por sexo (masculino e feminino), por idade, por peso, pelo nível dos competidores.
Essa divisão busca tornar a competição justa e equilibrada. Imagine uma luta de boxe entre uma criança franzina e um homem adulto forte. A própria integridade física do menor estaria em risco, e o resultado seria praticamente certo.
Estudos comprovam que homens têm cerca de 30% mais massas musculares que as mulheres, resultando em maior potência de arranque, maior força física e capacidade cardiovascular.
Por outro lado, as mulheres têm mais fibras elásticas nos músculos, o que resulta numa estrutura mais elástica. Tais características favorecem-nas em determinadas atividades físicas, como a ginástica, por exemplo.
Perceba, portanto, que a separação é possível, mas desde que haja motivo razoável que justifique a utilização desse critério diferenciador.
Parece razoável proibir que um homem lute contra uma mulher nas olimpíadas, haja vista que existe uma diferenciação biológica que favorece o homem. Isso tornaria a luta totalmente desproporcional e perigosa para a mulher.
Ou seja, a preocupação em proibir que se coloque oponentes de sexo oposto em uma luta de boxe é válida, e tem por objetivo garantir a igualdade esportiva.
Enfim, essa segregação binária (homem e mulher) no esporte ainda persiste como instrumento fundamental de equilíbrio das competições.
Assim leciona o professor Vinícius Calixto:
“Diferentemente de outras esferas sociais, no esporte a segregação entre homens e mulheres não é apenas aceita, mas vista ainda como um dos critérios fundamentais para a manutenção da igualdade esportiva e da incerteza dos resultados. A justificativa para a divisão reside nas diferenças físicas que propiciariam aos homens vantagens de desempenho sobre as mulheres nas competições esportivas”1.
Conclusão
Os grandes problemas, e consequentemente as grandes discussões, surgem quando partimos para casos mais complexos, como a transexualidade e a intersexualidade, já que envolvem elementos os mais variados, como liberdade sexual e orientação ou indefinição de gênero.
É dever da sociedade, dos operadores do direito, da comunidade acadêmica e do poder público debaterem o tema de forma razoável. Isso deve ser feito sem preconceitos de qualquer lado, a fim de que possamos chegar a soluções que tutelem os mais variados direitos fundamentais envolvidos.
Ótimo tema para provas de direito constitucional e direitos humanos!
- CALIXTO. Vinicius. Lex sportiva e Direitos Humanos: Entrelaçamento transconstitucionais e aprendizados recíprocos. Belo Horizonte: Editora D`Placido. 2017, página 119. ↩︎
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