O presente texto tem como objetivo realizar uma análise jurídica imparcial sobre o caso envolvendo Guilherme Boulos e Pablo Marçal. Durante um debate eleitoral, Marçal imputou a Boulos a condição de usuário de cocaína.
É importante ressaltar que este texto não reflete qualquer posicionamento ideológico do autor, limitando-se estritamente à apreciação dos aspectos legais e à interpretação das normas jurídicas aplicáveis ao caso, conforme estabelecido pelo Código Eleitoral (CE) e pela jurisprudência dos Tribunais Superiores.
A análise buscará esclarecer se a conduta de Marçal, ao proferir tal imputação, configura ou não a prática de injúria eleitoral, conforme os dispositivos legais pertinentes.
Desdobramentos do caso
Durante o embate eleitoral à Prefeitura de São Paulo, o candidato Guilherme Boulos (PSOL), em manifestação contundente, refutou veementemente as “acusações” levianas do oponente Pablo Marçal (PRTB). Boulos ainda teria desafiado Marçal a trazer à luz qualquer prova concreta de que estaria envolvido no uso de entorpecentes, particularmente cocaína.
A imputação, segundo Boulos, não passa de uma mentira vil e abjeta, reiterada de forma irresponsável por Marçal, que em mais de uma ocasião o qualificou como “aspirador de pó”, em alusão a um suposto hábito do psolista.
O incidente atingiu uma tonalidade emocional quando Boulos, em entrevista ao programa “Roda Viva” da TV Cultura, foi compelido a rememorar os impactos dessas “difamações” sobre sua família, especificamente suas filhas adolescentes.
Com a voz embargada, o candidato relatou que uma de suas filhas, vítima de chacota escolar motivada pelas insinuações maledicentes, chorou ao retornar para casa. Em tom indignado, Boulos bradou contra o nível deplorável a que desce o debate público quando o ataque se dirige a entes queridos, especialmente menores. Isso o levou, conforme justificou, a perder momentaneamente o controle e reagir durante um debate anterior.
Contornos judiciais
A controvérsia ganhou contornos judiciais, com a Justiça Eleitoral determinando que Marçal publicasse direitos de resposta em favor de Boulos.
Duas decisões do Juiz Rodrigo Marzola Colombini, da 2ª Zona Eleitoral de São Paulo, impuseram a obrigação de veicular nos perfis de Marçal, nas redes sociais e no YouTube, conteúdos esclarecedores em favor de Boulos, mantendo-os disponíveis por 48 horas.
Marçal, por sua vez, tentou se escusar das consequências de suas palavras. Ele alegou que suas declarações se limitaram ao exercício legítimo da crítica política no calor do debate eleitoral.
Ainda no plano judicial, outra decisão, proferida pelo Juiz Murillo D’Avila Vianna Cotrim, também da 2ª Zona Eleitoral, condenou Marçal a excluir vídeos ofensivos e a publicar direito de resposta em até 48 horas após a intimação, destacando que a expressão “aspirador de pó”, por ele utilizada, foi intencionalmente maliciosa.
A defesa de Marçal tentou desvirtuar o sentido da expressão. Alegou que tal expressão indicava que Boulos atrairia “lixo para si próprio”, tentativa de racionalização que foi rejeitada.
Em nota, Marçal buscou ampliar a controvérsia ao insinuar a existência de um processo sigiloso contra Boulos, sugerindo de forma pérfida que tal processo envolveria questões de porte de drogas. Dessa maneira, instigou-se ainda mais dúvidas sobre a conduta do “psolista”.
Crimes eleitorais
O Ministério Público de São Paulo, em manifestação promanada do promotor eleitoral Nelson dos Santos Pereira Junior, determinou à Polícia Federal a instauração de inquérito. O objetivo é a apuração de possível prática de crime eleitoral por parte de Pablo Marçal em desfavor de Guilherme Boulos.
Tal providência foi adotada após provocação da campanha “psolista”, que arguiu a existência de indícios suficientes de ilicitude na conduta do adversário, consubstanciada em insinuações difamatórias proferidas publicamente e destituídas de qualquer prova, qualificando Boulos como um “cheirador de cocaína”.
Na peça ministerial, o promotor, com argúcia jurídica, acolheu os argumentos trazidos pela defesa de Boulos, destacando que tais imputações, além de constituírem evidente ataque à honra subjetiva do candidato, revestem-se de gravidade eleitoral, uma vez que potencialmente capazes de comprometer a lisura e a regularidade do pleito.
Vale lembrar que os crimes eleitorais são investigados pela Polícia Federal, sob a coordenação do Ministério Público Eleitoral (MPE). Além disso, os Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) têm competência para supervisionar e julgar tais crimes. A investigação pode ser iniciada tanto por provocação do MPE quanto de ofício pela Polícia Federal.
Nos crimes eleitorais, a ação penal é, em regra, pública incondicionada. Isso significa que o Ministério Público Eleitoral (MPE) é o responsável por promover a ação penal, independentemente de qualquer representação ou requisição. A atuação do MPE é obrigatória e não depende da manifestação de vontade de terceiros para que a ação seja proposta.
Código Eleitoral
Em uma análise preliminar, com base na conduta de Pablo Marçal ao chamar Guilherme Boulos de “cheirador de cocaína” sem qualquer comprovação, poderia haver o enquadramento no art. 323 do Código Eleitoral, que trata da divulgação de fatos sabidamente inverídicos em desfavor de candidato, capazes de influir no pleito eleitoral.
O artigo 323 do Código Eleitoral prevê:
Divulgar, na propaganda, fatos que sabe inverídicos, em relação a partidos ou candidatos e capazes de exercer influência perante o eleitorado: Pena: Detenção de dois meses a um ano, ou pagamento de 120 a 150 dias-multa.
Considerando que a imputação ocorreu em um debate eleitoral, não se configurando como uma propaganda eleitoral propriamente dita, pode haver quem sustente que haveria a ocorrência do art. 324, que tipifica a calúnia eleitoral:
Art. 324: Divulgar, caluniando alguém, fato que sabe inverídico, tendo em vista fins de propaganda, imputando-lhe falsamente fato definido como crime: Pena: Detenção de seis meses a dois anos, e pagamento de 10 a 40 dias-multa.
A calúnia eleitoral se configura quando alguém, com o propósito de influenciar o resultado do pleito, atribui falsamente a um candidato a prática de um crime.
Mas ser dependente químico não é crime. O que configura crime é portar droga para consumo próprio. O Direito Penal não pune o uso pretérito da droga. Qual seria o crime então?
Lei de Drogas
A Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) pune o porte de drogas para consumo pessoal, mas não o uso pretérito ou a condição de dependente químico. Diante disso, o enquadramento mais preciso para a conduta de Pablo Marçal no debate não seria o crime de calúnia eleitoral.
Considerando o cenário descrito, a tipificação mais adequada no Código Eleitoral é a de difamação eleitoral, prevista no art. 325:
Art. 325: Difamar alguém, na propaganda eleitoral ou visando a fins de propaganda, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação: Pena: Detenção de três meses a um ano, e pagamento de 5 a 30 dias-multa.
Calúnia e difamação
Nos crimes de calúnia e difamação previstos no Código Eleitoral Brasileiro (Lei nº 4.737/1965), o termo “fato” também é um elemento essencial.
- Calúnia Eleitoral (art. 324 do Código Eleitoral): o crime de calúnia eleitoral consiste em imputar falsamente a alguém, durante o período eleitoral, a prática de um crime, com o objetivo de prejudicar a imagem do candidato ou influenciar o resultado das eleições. O “fato” aqui refere-se a um evento ou conduta específica que é falsamente atribuída ao candidato, que, se fosse verdade, configuraria um crime. Por exemplo, acusar falsamente um candidato de desviar verbas públicas seria uma calúnia eleitoral, porque o desvio de verbas é um crime, e a afirmação envolve um fato (o desvio).
- Difamação Eleitoral (art. 325 do Código Eleitoral): a difamação eleitoral, por sua vez, envolve a imputação de um fato que ofende a reputação de alguém, que não precisa ser um crime, mas que é feito com a intenção de prejudicar a imagem do candidato perante o eleitorado. Nesse caso, o “fato” pode ser qualquer ação ou conduta atribuída ao candidato que afete sua honra ou dignidade. Por exemplo, afirmar que um candidato agiu de maneira antiética em negociações políticas, mesmo que não constitua crime, pode configurar difamação eleitoral.
Nem calúnia nem difamação
Portanto, no contexto eleitoral, o “fato” nos crimes de calúnia e difamação se refere a um evento ou conduta atribuída ao candidato, que pode ser falso (no caso da calúnia) ou verdadeiro (no caso da difamação), mas que tem o potencial de impactar negativamente sua reputação e influenciar a opinião pública durante o processo eleitoral.
Como não há imputação de um fato, a conduta de Pablo Marçal se enquadra no art. 326 do Código Eleitoral, uma vez que a “acusação” de ser usuário de drogas, embora não constitua crime, é uma imputação gravemente ofensiva à reputação do candidato e visa descredenciá-lo perante os eleitores.
O crime de injúria eleitoral (Art. 326 do Código Eleitoral): análise doutrinária e jurisprudencial
O crime de injúria eleitoral, previsto no art. 326 do Código Eleitoral, constitui uma infração penal que visa a proteger a honra subjetiva dos indivíduos, especialmente candidatos, no contexto das eleições.
A tipificação abrange a conduta de ofender a dignidade ou o decoro de alguém, quando tal ofensa ocorre na propaganda eleitoral ou com fins de propaganda até mesmo num debate, sendo punível com detenção de até seis meses ou pagamento de 30 a 60 dias-multa.
De acordo com Capez (2021), a injúria eleitoral diferencia-se dos demais crimes contra a honra previstos no Código Eleitoral, como a calúnia (art. 324) e a difamação (art. 325), porque não requer a imputação de um fato concreto, seja ele criminoso ou ofensivo. A injúria se consuma com a mera atribuição de uma qualidade negativa ou com a utilização de expressões que, em si mesmas, sejam ofensivas à honra, à dignidade ou ao decoro da vítima (CAPEZ, 2021, p. 175).
Postura do TSE
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tem adotado uma postura rigorosa na repressão à injúria eleitoral, entendendo que o exercício da liberdade de expressão durante o período eleitoral não pode ser confundido com a permissão para ofensas pessoais.
Em um importante precedente, o TSE decidiu que
“a crítica política, ainda que áspera, não pode desbordar para o terreno das ofensas à honra, à dignidade ou ao decoro dos candidatos”.
(TSE, Recurso Especial Eleitoral nº 0601492-53.2020.6.00.0000, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 15/09/2020)
Fernandes (2022) reforça esse entendimento, e aponta que a injúria eleitoral não se limita à propaganda formal, mas abrange toda e qualquer manifestação que tenha por finalidade influenciar a opinião do eleitorado por meio da depreciação pessoal do adversário. Trazemos à baila novamente o debate. O autor sublinha que
“o crime de injúria eleitoral ocorre sempre que se ultrapassa o campo das ideias e propostas, atingindo diretamente a esfera íntima do candidato, com o claro intuito de denegrir sua imagem pública” (FERNANDES, 2022, p. 203).
Em sede jurisprudencial, o TSE tem reafirmado a necessidade de uma postura equilibrada por parte dos candidatos, ainda que em momentos de acirramento eleitoral. No julgamento do Recurso Especial Eleitoral nº 0600932-79.2018.6.00.0000, o Tribunal destacou que
“a inviolabilidade da honra e da imagem dos candidatos é princípio fundamental que deve ser observado durante todo o processo eleitoral, devendo a justiça eleitoral atuar de forma enérgica contra condutas que se revistam de injúria”.
(TSE, Recurso Especial Eleitoral nº 0600932-79.2018.6.00.0000, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 22/11/2018)
Ainda que se considere a pena prevista para a injúria eleitoral relativamente branda, a sua tipificação desempenha um papel crucial na manutenção da lisura e do respeito mútuo durante as eleições.
O legislador reconheceu que, mesmo no calor das campanhas, é imperativo que se mantenha um padrão ético nas interações entre os candidatos, assegurando que a disputa não se transforme em um campo de ataques pessoais que possam desvirtuar o processo eleitoral.
Conclusão
Diante do exposto, pode-se concluir que Pablo Marçal, ao imputar a Guilherme Boulos o epíteto de “cheirador de cocaína” durante um debate eleitoral, cometeu o crime de injúria eleitoral, conforme previsto no art. 326 do Código Eleitoral.
A conduta de Marçal ultrapassou os limites da liberdade de expressão e do debate político legítimo, adentrando o campo da ofensa pessoal que atinge a dignidade e o decoro de Boulos.
A jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e a doutrina especializada reiteram que tais manifestações, quando objetivam depreciar a honra subjetiva de um candidato sem qualquer base fática, configuram injúria eleitoral. Por isso, elas devem ser reprimidas para garantir a integridade do processo eleitoral e a manutenção de um ambiente de respeito entre os concorrentes.
Portanto, a conduta de Marçal se enquadra nos preceitos do art. 326, sendo passível das sanções previstas na legislação eleitoral.
Referências
CAPEZ, F. Curso de Direito Penal: Parte Especial. São Paulo: Saraiva, 2021.
FERNANDES, J. C. Direito Eleitoral: teoria e prática. São Paulo: Saraiva, 2022.
TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Recurso Especial Eleitoral nº 0601492-53.2020.6.00.0000, Relator: Min. Alexandre de Moraes, julgado em 15/09/2020.
TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Recurso Especial Eleitoral nº 0600932-79.2018.6.00.0000, Relator: Min. Edson Fachin, julgado em 22/11/2018.
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