Introdução
O sistema prisional brasileiro vem sendo alvo de inúmeras críticas devido às condições precárias oferecidas aos detentos.
Um dos pontos mais controversos diz respeito ao fornecimento de água quente para o banho dos presos, especialmente em regiões com invernos rigorosos, como é o caso do estado de São Paulo.
Recentemente, após anos de disputa judicial, foi firmado um acordo entre a Defensoria Pública e o governo do estado de São Paulo para garantir o fornecimento de água quente nas unidades prisionais:
Presos em SP terão banho com água quente após acordo com a Defensoria
Este artigo analisará os aspectos jurídicos envolvidos nessa questão, bem como as implicações da recente decisão para o sistema penitenciário paulista e para os direitos humanos dos detentos, à luz da Constituição Federal e dos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.
Contexto Histórico e Legal
A questão do banho quente para os presos em São Paulo não é recente.
Em 2013, a Defensoria Pública do estado ajuizou uma ação civil pública visando obrigar o Estado a disponibilizar equipamentos para banho dos presos em temperatura adequada.
O caso chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 2017, que determinou a instalação de chuveiros aquecidos em todas as unidades prisionais do estado:
Estado de São Paulo deverá fornecer banho quente a presidiários
A decisão do STJ baseou-se em diversos fundamentos legais e princípios constitucionais, incluindo:
- A dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal);
- A proibição de tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III, da CF);
- O respeito à integridade física e moral dos presos (art. 5º, XLIX, da CF);
- As Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos da ONU (Regras de Mandela);
- A Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984).
Fundamentação constitucional e internacional
Constituição Federal do Brasil
A Constituição Federal de 1988 estabelece princípios fundamentais que, embora não mencionem explicitamente o direito ao banho quente, são interpretados de forma a garantir condições dignas aos detentos, incluindo:
Artigo 1º, inciso III: "A República Federativa do Brasil (...) tem como fundamentos: (...) III - a dignidade da pessoa humana". Este princípio fundamental é a base para a interpretação de que condições básicas de higiene, incluindo o banho quente, são parte integrante da dignidade humana. Artigo 5º, inciso III: "Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante". A ausência de banho quente, especialmente em regiões de clima frio, pode ser interpretada como um tratamento desumano ou degradante. Artigo 5º, inciso XLIX: "é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral". O banho quente é considerado parte da manutenção da integridade física e moral dos presos, especialmente considerando os riscos à saúde associados ao banho frio em climas frios.
Tratados e Convenções Internacionais
O Brasil é signatário de diversos tratados internacionais que, embora não mencionem especificamente o banho quente, estabelecem princípios de tratamento humanitário aos presos:
Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), Artigo 5º:
“Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.”
Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966, ratificado pelo Brasil em 1992), Artigo 10:
“Toda pessoa privada de sua liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana.”
Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, 1969, ratificado pelo Brasil em 1992), Artigo 5º, item 2:
“Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano.”
Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos (Regras de Mandela, atualizadas em 2015), Regra 16:
“Devem ser fornecidas instalações adequadas para banho e chuveiro, de modo que cada preso possa tomar banho ou chuveiro, com água a uma temperatura adequada ao clima, com a frequência necessária à higiene geral, de acordo com a estação do ano e a região geográfica, mas pelo menos uma vez por semana em um clima temperado.”
A Decisão do STJ e seus fundamentos
No julgamento do REsp 1.537.530-SP, o ministro Herman Benjamin, relator do caso, enfatizou que a omissão do Estado em fornecer banho quente aos presos fere a dignidade humana e constitui violação massificada aos direitos humanos. Assim, o ministro argumentou que:
O banho quente não é um privilégio, mas um direito básico ligado à saúde e dignidade dos detentos;
A exposição a banhos frios, especialmente em períodos de baixa temperatura, pode agravar ou desencadear doenças;
O Estado tem o dever de garantir condições mínimas de saúde e higiene aos presos sob sua custódia.
O STJ entendeu que, quando estão em jogo aspectos elementares da dignidade da pessoa humana – um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro, conforme o artigo 1º da Constituição Federal – é impossível subordinar direitos indisponíveis a critérios que não sejam os constitucionais e legais.
Veja em resumo a decisão do STJ:
A omissão injustificada da Administração em providenciar a disponibilização de banho quente nos estabelecimentos prisionais fere a dignidade de presos sob sua custódia.
A determinação de que o Estado forneça banho quente aos presos está relacionada com a dignidade da pessoa humana, naquilo que concerne à integridade física e mental a todos garantida.
O Estado tem a obrigação inafastável e imprescritível de tratar prisioneiros como pessoas, e não como animais.
O encarceramento configura pena de restrição do direito de liberdade, e não salvo-conduto para a aplicação de sanções extralegais e extrajudiciais, diretas ou indiretas.
Em presídios e lugares similares de confinamento, ampliam-se os deveres estatais de proteção da saúde pública e de exercício de medidas de assepsia pessoal e do ambiente, em razão do risco agravado de enfermidades, consequência da natureza fechada dos estabelecimentos, propícia à disseminação de patologias.
STJ. 2ª Turma. REsp 1537530-SP, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 27/04/2017 (Info 666).
O Acordo recente e suas implicações
Em agosto de 2024, após mais de 20 anos de discussão na Justiça, a Defensoria Pública firmou um acordo com o governo de São Paulo para o fornecimento de água quente nas prisões do estado.
Os principais pontos do acordo são:
- Instalação de chuveiros aquecidos em áreas comuns de todas as unidades do estado;
- Prazo de 90 dias para o governo apresentar um Plano de Trabalho;
- 18 meses para concluir a instalação em todas as unidades penitenciárias;
- Multa diária de R$ 10 mil em caso de descumprimento, limitada a 30 dias.
Portanto, este acordo representa um avanço significativo na garantia dos direitos dos detentos e no cumprimento das determinações judiciais anteriores, alinhando-se com os princípios constitucionais e as normas internacionais de direitos humanos
Análise Crítica
Assim, a decisão de fornecer banho quente aos presos suscita debates sobre a alocação de recursos públicos e os limites da intervenção judicial em políticas penitenciárias.
Alguns argumentos contrários à medida incluem:
- O alto custo de implementação em um sistema já sobrecarregado;
- A percepção pública de que os presos estariam recebendo “privilégios”;
- A alegação de ingerência do Judiciário nas atribuições do Executivo.
No entanto, é importante ressaltar que conforme entendimento do STF/STJ já sedimentado:
- O respeito aos direitos humanos não é negociável, mesmo em situações de escassez de recursos;
- A melhoria das condições carcerárias pode contribuir para a redução de doenças e, consequentemente, dos gastos com saúde no sistema prisional;
- O Judiciário tem o dever constitucional de garantir o cumprimento dos direitos fundamentais, inclusive dos detentos.
Como o tema já caiu em provas
CESPE / CEBRASPE - 2022 - PC-ES - Delegado de Polícia A omissão injustificada da administração pública em providenciar a disponibilização de banho quente nos estabelecimentos prisionais fere a dignidade dos presos sob sua custódia (Certo).
Conclusão
A decisão do STJ em 2017 no caso do banho quente para presos em São Paulo representa um marco importante na jurisprudência brasileira sobre direitos humanos e condições prisionais. Ela demonstra uma postura ativa do Judiciário na proteção dos direitos fundamentais, baseada na interpretação conjunta da Constituição Federal e dos tratados internacionais de direitos humanos.
Além disso, esta decisão reafirma o princípio de que deve-se respeitar a dignidade humana dos presos, independentemente da natureza de seus crimes ou das dificuldades administrativas e financeiras do Estado. Tal postura está alinhada com os compromissos internacionais do Brasil em matéria de direitos humanos e com os princípios fundamentais da Constituição Federal.
Nesse sentido, o acordo firmando visando a implementação do banho quente nas prisões de São Paulo, embora desafiadora do ponto de vista logístico e financeiro, é um passo crucial para adequar o sistema prisional paulista às normas nacionais e internacionais de tratamento de pessoas privadas de liberdade. Ao cabo, o que temos é um “acordo” para cumprir uma decisão do STJ.
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