Assédio sexista e perspectiva de gênero: a resposta institucional orientada pelo CNJ

Assédio sexista e perspectiva de gênero: a resposta institucional orientada pelo CNJ

*Juliana Ferreira de MoraisJuíza do Trabalho do TRT2ª Região, Doutoranda e mestre em Direito do Trabalho, Professora de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho do Estratégia, Autora de livros

Uma vendedora de Curitiba/PR será indenizada por danos morais após ser alvo de conduta sexista no ambiente de trabalho: seu gerente sugeria que ela utilizasse saias curtas para “melhorar” o desempenho em vendas.

O caso, julgado pela 5ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, culminou na condenação da empresa ao pagamento de R$ 15 mil, diante da violação à dignidade da trabalhadora e da constatação de discriminação de gênero.

Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero

A decisão judicial ganhou destaque por aplicar, de forma expressa, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. O CNJ tornou obrigatório este instrumento normativo com o objetivo de orientar a magistratura na identificação e desconstrução de estereótipos que historicamente afetam a participação plena e igualitária das mulheres na sociedade e nas relações de trabalho[1].

Trata-se, assim, de um julgamento paradigmático, que afirma com clareza o dever jurídico de enfrentamento à desigualdade de gênero nas relações laborais. A conduta do gestor, ao associar o desempenho profissional da vendedora à sua aparência, foi corretamente qualificada como assédio sexista. Tal comportamento é incompatível com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade material e da não discriminação.

Ao analisar o caso, o relator fundamentou seu voto no Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, aprovado pela Resolução CNJ nº 492/2023, que expressamente reconhece que “estereótipos traduzem visões ou pré-compreensões generalizadas sobre atributos ou características que membros de um determinado grupo têm, ou sobre os papéis que desempenham ou devem desempenhar”.

Ao sugerir vestimentas como ferramenta de convencimento, o gerente reforçou padrões de subordinação historicamente impostos às mulheres no espaço profissional, traduzindo uma lógica de exploração da imagem feminina como ativo comercial.

O protocolo estabelece que “é de extrema importância que magistradas e magistrados estejam atentos à presença de estereótipos e adotem uma postura ativa em sua desconstrução”, e que essa atuação passa por quatro etapas:

  • “Tomar consciência de sua existência;
  • Identificá-los em casos concretos;
  • Refletir sobre os prejuízos potencialmente causados; e
  • Incorporar essas considerações na atuação jurisdicional”.

A decisão do TRT-9 materializa de forma concreta as diretrizes propostas pelo Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. Isso porque lança-se um olhar atento à presença de estereótipos e reconhecer a necessidade de sua desconstrução no contexto das relações laborais. A partir do caso concreto, é possível refletir sobre o papel institucional do Judiciário no enfrentamento das desigualdades de gênero — não apenas para reparar condutas discriminatórias, mas para prevenir a sua reprodução simbólica.

Normas garantidoras

CF/88

Essa reflexão encontra amparo direto na Constituição da República, cujo art. 5º, I, assegura igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres, ao passo que o art. 3º, IV, estabelece como objetivo fundamental da República “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

A leitura constitucional não admite interpretações neutras frente a violações fundadas em discriminações de gênero: o Judiciário é convocado a adotar um papel proativo na reparação e prevenção dessas práticas.

Resolução CNJ

A Resolução do CNJ reforça esse papel institucional. Em seu art. 1º, determina que “para a adoção de Perspectiva de Gênero nos julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário, ficam estabelecidas as diretrizes constantes do protocolo aprovado pelo Grupo de Trabalho”.

Protocolo

Dessa forma, promove-se uma política judiciária de enfrentamento às desigualdades estruturais, que deve ser incorporada em todos os níveis da atuação jurisdicional.

Além disso, o art. 2º da Resolução impõe o dever de formação continuada dos magistrados e magistradas, ao prever que os tribunais deverão promover “cursos de formação inicial e continuada que incluam, obrigatoriamente, os conteúdos relativos aos direitos humanos, gênero, raça e etnia”. Logo, reafirma-se a necessidade de constante capacitação para lidar com essas temáticas de forma qualificada e efetiva.

CEDAW

A conduta patronal, no caso concreto, também viola compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), incorporada ao ordenamento pelo Decreto nº 4.377/2002, estabelece, em seu art. 5º, que os Estados Partes devem adotar medidas para modificar padrões socioculturais baseados na inferioridade ou superioridade de qualquer dos sexos.

O mesmo princípio é reiterado na Convenção de Belém do Pará, que obriga o Estado a combater práticas que alicerçam a violência de gênero.

Código Civil

O reconhecimento da responsabilidade da empresa pela conduta do gerente também tem base legal. Conforme o art. 932, III, do Código Civil, o empregador responde por atos de seus prepostos no exercício de suas funções. No plano trabalhista, tal responsabilização também encontra suporte no princípio da alteridade, segundo o qual os riscos da atividade econômica — inclusive os relacionados à conduta dos representantes da empresa — recaem sobre o empregador.

Compromisso com a equidade

O assédio moral e sexista praticado nesse caso evidencia a presença de estruturas discriminatórias ainda normalizadas em muitos ambientes corporativos. A responsabilização jurídica não apenas repara o dano individual sofrido pela trabalhadora, como também atua pedagogicamente para prevenir e desestimular condutas semelhantes. Nesse sentido, a indenização fixada pelo TRT-9 adquire dimensão simbólica e normativa. Reafirma, portanto, os limites do poder diretivo do empregador frente aos direitos fundamentais da pessoa trabalhadora.

Por fim, o julgamento reafirma que a neutralidade formal não é suficiente para assegurar justiça material em contextos de desigualdade de gênero. A adoção de uma perspectiva sensível e comprometida com a equidade é exigência constitucional, legal e internacional. O Protocolo do CNJ não é um adendo voluntário, mas sim uma ferramenta obrigatória para que o Poder Judiciário atue, de fato, na promoção da igualdade de gênero como expressão da cidadania e da dignidade da pessoa humana.


[1] Disponível em <https://www.migalhas.com.br/quentes/431061/mulher-sera-indenizada-apos-gestor-sugerir-saia-curta-para-vender-mais>. Acesso em 29/05/2025


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