Sou o professor Flávio Milhomem, mestre em Ciências Jurídico-Criminais, promotor de Justiça do MPDFT, e professor de cursos preparatórios para carreiras jurídicas e pós-graduação.
Trouxe abaixo uma análise para reflexão sobre o tema: Ampliação da Punibilidade – Ofensas homofóbicas podem ser consideradas crime de Injúria Racial, decide STF.
No dia 21 de agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) alcançou maioria de votos em uma decisão que poderá redefinir a abordagem legal em relação a ofensas homofóbicas. O tribunal se posicionou favorável ao reconhecimento de que tais ofensas podem ser classificadas como crime de injúria racial. A votação atual registra 7 votos a favor e 1 contra a expansão das penalidades para essa conduta.
O marco inicial desse movimento ocorreu em 2019, quando o STF estabeleceu que a discriminação e o preconceito relacionados à orientação sexual – em outras palavras, a homofobia – deveriam ser tratados como crime de racismo social (ADO 26/19); estabelecendo a seguinte tese:
I – Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08/01/1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, “in fine”);
II – A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero;
III – O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito.
Uma nova atualização legislativa, a Lei n° 14.532/23, trouxe modificações à Lei n° 7.716/89, conhecida como Lei do Crime Racial, bem como ao Código Penal, estabelecendo a tipificação da injúria racial como uma forma de crime de racismo.
O Artigo 2º-A da Lei, agora em vigor, define o crime como: “Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional.” As penalidades associadas incluem reclusão, variando de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, além de multa.
O caso em análise pelo STF refere-se a um recurso apresentado pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT). A associação busca ampliar a interpretação dada pela Corte em 2019, a qual já havia considerado a homofobia como uma manifestação de racismo.
De acordo com a ABGLT, diversos juízes pelo país têm reconhecido a homofobia como crime de racismo somente nos casos em que há ofensas dirigidas à comunidade LGBTQIA+. No entanto, tais decisões não têm se aplicado à injúria racial, a qual envolve atos que atentam contra a honra de um indivíduo.
A maioria dos ministros aderiu à interpretação do relator do caso, o ministro Edson Fachin. Fachin argumentou que as ofensas homofóbicas podem ser enquadradas tanto como racismo quanto como injúria racial. Para ele, a injúria racial é uma vertente do crime de racismo, e, portanto, a decisão do STF não deve ser limitada.
O relator, em seu voto, valeu-se da doutrina do Professor Adilson José Moreira, no seu Tratado de Direito Antidiscriminatório (São Paulo: Contracorrente, 2020):
“O tipo de discriminação que estamos analisando pode ser classificado como mais uma manifestação de processos de exclusão social que têm o objetivo de promover a subordinação de um grupo em relação a outro, o que contraria os princípios norteadores do sistema democrático.
De qualquer forma, devemos estar atentos ao fato de que a homofobia não opera de forma isolada . Ao contrário, atua de forma paralela para reforçar ainda mais o processo de exclusão social que afeta outros grupos de indivíduos. Esse sistema de opressão pode ser um meio de propagação do sexismo na medida em que é também uma forma de delimitação dos lugares sociais de homens e das mulheres. Ao utilizar a homofobia como forma de controle dos limites da heterossexualidade, o sistema patriarcal enforca papeis sexuais atribuídos a homens e mulheres.
Da mesma forma que a defesa de hierarquias raciais foi utilizada para justificar a proibição dos casamentos entre pessoas de raças distintas, as hierarquias entre heterossexuais e homossexuais ainda é utilizada para legitimar práticas discriminatórias contra os últimos em diferentes instâncias da vida social. Dessa forma, a luta contra a homofobia tem grande relevância social porque também guarda ressonância culturais com o racismo, uma vez que relações entre pessoas de raças distintas ainda enfrentam imensa resistência social.”
Fachin ressaltou: “Entendo que a interpretação hermenêutica que restringe sua aplicação aos casos de racismo e mantém desamparadas de proteção as ofensas racistas perpetradas contra indivíduos da comunidade LGBTQIA+, contraria não apenas o acórdão embargado, mas toda a sistemática constitucional”; e para quem critica a atuação do Supremo Tribunal Federal, sob a alegação de violação da competência legislativa do Congresso Nacional, esclareceu:
“A omissão legislativa em tipificar a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero ofende um sentido mínimo de justiça ao sinalizar que o sofrimento e a violência dirigida a pessoa gay, lésbica, bissexual, transgênera ou intersexo é tolerada, como se uma pessoa não fosse digna de viver em igualdade. A Constituição não autoriza tolerar o sofrimento que a discriminação impõe”.
Ao se valer do Direito Penal para a proteção dos direitos da população LGBTQIA+, o ministro relator afasta uma inconstitucionalidade por insuficiência de proteção (Untermassverbot). Como defende o Professor da Universidade de São Paulo André de Carvalho Ramos, em um Estado Democrático de Direito, o Poder Público não pode se omitir na promoção dos direitos humanos, devendo protegê-los inclusive com o instrumento penal; e caso abra mão da tutela penal, o Estado incorre na proteção deficiente dos direitos fundamentais, violando a Constituição e os tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil.” (Curso de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2014).
O voto do ministro Fachin foi acompanhado pelos ministros Dias Toffoli, Nunes Marques, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Alexandre de Moraes e Luiz Fux. O ministro André Mendonça se declarou impedido de participar do julgamento.
Nesse contexto, fica estabelecido que injuriar alguém, atingindo sua dignidade ou decoro em virtude de sua orientação ou identidade sexual, configura um ato passível de ser classificado como crime de racismo; e, portanto, imprescritível.
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