“Afinal, todos os motoristas da Uber deverão ser contratados pela CLT?”

“Afinal, todos os motoristas da Uber deverão ser contratados pela CLT?”

Sou o professor Felipe Fernandes, Advogado-público, Mestre e Doutor em Direito e professor no Estratégia Carreira Jurídica.

Trouxe abaixo apontamentos sobre o tema: Uber x CLT. Confira!

1. O caso

Na última semana, foi amplamente noticiada decisão no bojo da qual o Juízo da 4ª Vara do Trabalho de São Paulo, acatando pedido do Ministério Público do Trabalho, condenou a Uber a cumprir obrigação de fazer consistente no registro na carteira de trabalho, na condição de empregados, de todos os seus motoristas ativos, bem como daqueles que vierem a ser contratados a partir daquela decisão, sob pena de multa diária de dez mil reais para cada trabalhador não registrado. Ainda, a plataforma foi condenada a pagar o valor de um bilhão de reais a título de danos morais coletivos[1].

Conforme podemos observar, trata-se de decisão de primeira instância, ainda não transitada em julgado, passível de recurso (e reforma) pelos Tribunais. Diante disso, é importante ter uma ideia do contexto para que, assim, possamos vislumbrar quais devem ser os próximos passos na jurisprudência pátria.

2. A problemática envolvida

Conforme se extrai dos artigos 2º e 3º da Consolidação das Leis do Trabalho, aquela pessoa física que trabalha com pessoalidade, onerosidade, subordinação e habitualidade é considerada empregado, ainda que não haja um acordo escrito e expresso naquele sentido, uma vez que é admitido o contrato de trabalho tácito. Ou seja, presentes os elementos fático-jurídicos da relação de emprego, considera-se aquele trabalhador empregado, reconhecendo-se a ele todos os direitos previstos na legislação trabalhista. Em relação ao fenômeno da chamada uberização, é possível identificar os elementos acima apontados, tais como a pessoa física, pessoalidade, habitualidade e onerosidade, restando a maior polêmica em relação à subordinação. Vejamos como doutrina e jurisprudência abordam o fenômeno.

As Turmas do Tribunal Superior do Trabalho, tratando de casos de motoristas de aplicativos, já proferiram julgados divergentes sobre o tema (a título de exemplo, podemos mencionar julgados da 4ª e 5ª Turmas afastando o vínculo empregatício). Ilustrativamente, mencionamos excerto da 4ª Turma do TST, no qual restou decidido que o enquadramento da relação em questão “deve se dar com aquela prevista no ordenamento jurídico com maior afinidade, como é o caso da definida pela Lei nº 11.442/2007, do transportador autônomo, assim configurado aquele que é proprietário do veículo e tem relação de natureza comercial[2]” Dessa maneira, decidiu-se, basicamente, que inexistiria subordinação por parte do motorista (afastando-se o vínculo empregatício), haja vista que ele pode “dispor livremente quando e se disponibilizará seu serviço de transporte para os usuários-clientes, sem qualquer exigência de trabalho mínimo, de número mínimo de viagens por período, de faturamento mínimo , sem qualquer fiscalização ou punição por esta decisão do motorista[3]”. 

Doutra ponta, são dignos de registro julgados da 3ª e 8ª Turmas da Corte Laboral, nos quais essas reconhecem a existência de vínculo empregatício entre o usuário-motorista e a plataforma. Neste sentido, além de presentes os demais requisitos da relação empregatícia, considerou a 3ª Turma do TST que estaria configurada a subordinação algorítmica, que “consiste naquela efetivada por intermédio de aferições, acompanhamentos, comandos, diretrizes e avaliações concretizadas pelo computador empresarial, no denominado algoritmo digital típico de tais empresas da Tecnologia 4.0”. Registrou o Colegiado que a prestação de serviços ocorria diariamente, com sujeição do motorista às ordens da plataforma por meio remoto e telemático, havia risco de sanção disciplinar (exclusão do aplicativo) em face da falta de assiduidade e das notas atribuídas pelos clientes/passageiros, além de inexistir liberdade ou autonomia do usuário-motorista para definir os preços dos serviços prestados nem a escolha dos passageiros, não se verificando, dessarte, o mínimo de domínio do trabalhador sobre a organização da atividade empresarial, que era centralizada  no algoritmo da empresa.

A propósito, sobre a forma de controle exercível por meio de algoritmos, ensina Raianne Liberal Coutinho[4] que esse tipo de tutela difusa não é realizado por uma pessoa, mas por um aplicativo. Neste sentido, pontua a autora que, por meio do sistema de Global Positioning System, o GPS, pode ser exercida total vigilância sobre o prestador de serviços: com o auxílio desse mecanismo, a plataforma pode controlar o seu tempo (tempo despendido em cada viagem, por exemplo), pode constatar lugares em que há pouca oferta de corridas e oferecer incentivos aos motoristas para que se dirijam a eles, além de verificar reunião de trabalhadores, com o fito de evitar organizações coletivas, bem como a retenção de dados de motoristas e usuários.

Dada a divergência entre as Turmas, a problemática foi submetida à SDI-I do TST[5], em casos a partir dos quais poderá ser extraída uma posição mais uniforme da Corte Laboral acerca do tema. Esses, todavia, ainda se encontram pendentes de julgamento, tendo sido retirados de pauta, em razão de pedido de vistas de um dos Ministros.

Mas o STF? O que pensa disso? Consideramos que a posição da Suprema Corte sobre o tema é das mais relevantes, uma vez que, muito provavelmente, ela é quem dará a última palavra sobre o assunto[6].

Não obstante ainda não haja uma decisão proferida em repercussão geral sobre o assunto, é possível mencionar, no âmbito do STF, decisão de lavra do Ministro Alexandre de Moraes, por meio da qual foi cassada decisão da Justiça do Trabalho que reconhecia o vínculo empregatício entre motorista de aplicativo e a empresa Cabify[7]. No caso, o Ministro considerou desrespeitadas as decisões exaradas pelo STF em diversos precedentes, tais como a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 48, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 324, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5835 e os Recursos Extraordinários (REs) 958252 e 688223, nas quais fora reconhecida a permissão constitucional de formas alternativas da relação de emprego. Ao fim, após ponderar que a relação estabelecida entre o motorista de aplicativo e a plataforma reclamante mais se assemelha com a situação prevista na Lei 11.442/2007, do transportador autônomo, determinou a remessa dos autos à Justiça Comum.

3. Os próximos passos

Conforme acima exposto, vemos que o tema da uberização e o vínculo empregatício não é nada simples, comportando profundas divergências de ponta a ponta. E ainda, a decisão proferida pela 4ª Vara do Trabalho de São Paulo não põe uma pá de cal sobre o tema. Pelo contrário: trata-se de mais uma decisão que vem a contribuir para esse acirrado debate.

De nossa parte, entendemos que a análise do fenômeno dependerá da situação fática: caso reste comprovado que a plataforma emitia ordens ao usuário-motorista (ainda que por meio de algoritmos digitais), exercia fiscalização, com a prerrogativa de aplicar sanções e organizava a atividade, poderá restar configurada a subordinação algorítmica e, assim, a relação de emprego. Caso não, restará mantida a situação atual.

No entanto, é certo que os próximos passos caminham para uma análise do Supremo Tribunal Federal, o qual deverá trazer, em breve, uma solução definitiva para o tema. Não há como prever o teor da decisão que virá. No entanto, a partir das decisões recentemente proferidas pela Corte (tal como mencionado na Reclamação a ela submetida), é possível que seja mantida a situação atual. Por aqui, seguimos acompanhando os efeitos da revolução tecnológica das relações de trabalho e as consequências disso no fenômeno jurídico.


[1] Ação Civil Pública nº 1001379-33.2021.5.02.0004.

[2] Agravo de Instrumento no Recurso de Revista nº 105758820195030003.

[3] Agravo de Instrumento no Recurso de Revista nº 105758820195030003.

[4] COUTINHO, Raianne Liberal. Subordinação algorítmica: há autonomia na uberização do trabalho?. São Paulo: Dialética, 2021, p. 144.

[5] E-RR-1000123-89.2017.5.02.0038 e E-RR-100353-02.2017.5.01.0066.

[6] A propósito, registramos que, no âmbito do TST, já fora admitido recurso extraordinário no bojo do qual se debate o vínculo em questão, mas o tema ainda não fora julgado pelo Pretório Excelso.

[7] Reclamação nº 59795.

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