O STF decidiu que o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) pode ser aplicado retroativamente para crimes cometidos antes da Lei 13.964/19. A falta de confissão do réu não impede a oferta do acordo, e o MP deve sempre justificar sua decisão de não oferecê-lo. Essa decisão amplia o uso do ANPP em processos em andamento.
Guilherme Carneiro de Rezende
Origem e Evolução do Acordo de Não Persecução Penal
No ano de 2024, o STF finalmente decidiu algo que muito se discutia a respeito do acordo de não persecução penal: a sua aplicabilidade aos fatos ocorridos antes da lei que o criou, a Lei 13.964/19.
O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) constitui negócio jurídico celebrado entre o Ministério Público e o investigado, devidamente acompanhado por advogado, como forma de evitar a persecução, mediante o cumprimento de determinadas condições.
Aludido acordo se somou à transação penal, a suspensão condicional do processo e a delação premiada, ampliando o espaço de consenso no âmbito do processo penal, desta feita para crimes cometidos sem violência ou grave ameaça, e com pena mínima superior a 4 anos.
Ele tem previsão no artigo 28-A, do CPP, e, como já afirmado, foi introduzido em nosso ordenamento no ano de 2019, pelo Pacote Anticrime (Lei 13.964/19), com vigência a partir do ano de 2020.
Em verdade, é preciso retornar no tempo. A primeira previsão normativa que contemplava o acordo foi a Resolução 181, do Conselho Nacional do Ministério Público, editada no ano de 2017.
Desde então já tínhamos a previsão do acordo, muito embora houvesse um celeuma em torno de sua constitucionalidade, pois regulamentado por ato do CNMP, quando, em verdade, deveria ser disciplinado por lei. Isso fazia com que alguns operadores do direito exercessem o controle difuso (de constitucionalidade) e, incidentalmente, deixassem de aplicá-lo por considerá-lo inconstitucional. Esse problema já não existe mais.
Aplicabilidade Temporal e os Efeitos da Retroatividade
O artigo 28-A, §13 diz que, uma vez cumprido o acordo, o juiz competente decretará a extinção de punibilidade. Criou-se, assim, uma nova causa extintiva da punibilidade e essa é uma informação importante para a nossa discussão.
Vamos lá!
O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) vem regulamentado no CPP e indiscutivelmente disciplina questões processuais e procedimentais. Nesse aspecto é uma norma de direito processual, razão pela qual, ao pensarmos em sua aplicabilidade no tempo, devemos seguir a regra contida no artigo 2º, do CPP: A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior. Certo?
A resposta não é tão simples quanto parece.
Quando afirmamos que o ANPP criou uma nova causa extintiva da punibilidade não podemos esquecer que ela passou a interferir no jus puniendi estatal. Em outras palavras, estabeleceu uma hipótese em que o Estado fica impossibilitado de punir. E aqui está o ponto.
Se a norma, embora prevista no CPP disciplina aspectos do jus puniendi ela tem conteúdo material. Para a lei penal, temos outra lógica, quanto à sua aplicabilidade no tempo, conforme artigo 2º, parágrafo único, do CP: A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado. A lei mais gravosa aplica-se daqui em diante, ao passo que a lei mais benéfica aplica-se retroativamente.
Ok. Vamos então cindir a norma, aplicando a parte processual “daqui para frente” e a parte penal retroativamente?
A jurisprudência não admite essa solução, conforme se extrai da Súmula 501, do STJ:
É cabível a aplicação retroativa da Lei 11.343/06, desde que o resultado da incidência das suas disposições, na íntegra, seja mais favorável ao réu do que o advindo da aplicação da Lei 6.368/76, sendo vedada a combinação de leis.
Devemos nos guiar pelo aspecto material da lei. Se a “parte penal” é mais benéfica, a lei inteira retroage. Do contrário, não.
Sendo o Acordo de Não Persecução Penal uma norma mais benéfica, que cria uma nova causa extintiva da punibilidade ela deve ser aplicada retroativamente. Esse foi o entendimento adotado pelo STJ, porém a sua aplicação estava condicionada a um fator:
- que o juiz não tivesse ainda recebido a denúncia.
Principais Teses Fixadas pelo STF no Julgamento de 2024
No dia 18 de setembro de 2024, no julgamento do HC 185.913, tudo mudou. O STF fixou as seguintes teses a respeito do acordo:
- Compete ao membro do Ministério Público oficiante, motivadamente o no exercício do seu poder dever, avaliar o preenchimento dos requisitos para negociação e celebração do ANPP, sem prejuízo do regular exercício dos controles jurisdicional e interno.
Até aqui nada de novo. Cabe ao Ministério Público, que é o dominus litis, decidir sobre o oferecimento do ANPP e não se trata de uma tarefa discricionária. Diz-se que o que existe, em verdade, é uma discricionariedade regrada (poder-dever). Preenchidos os requisitos legais, cabe ao MP ofertá-lo, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime.
Notem que o não oferecimento do benefício demanda uma manifestação “motivada” do MP, não bastando, portanto, a mera negativa.
Essa alternativa não exclui eventuais controles sobre a vontade do membro do MP, como por exemplo, no caso provocação da instância revisional, nos termos do artigo 28-A, §14, do CPP. De qualquer forma, a decisão final será sempre do Ministério Público.
2. É cabível a celebração do ANPP em casos de processo em andamento quando da entrada em vigência da Lei 13.964/2019, mesmo se ausente confissão do réu até aquele momento, desde que o pedido tenha sido feito antes do trânsito em julgado.
O STF admitiu a retroatividade do ANPP para alcançar fatos ocorridos antes da vigência do Pacote Anticrime, independentemente do marco do recebimento da denúncia, conforme tese antes prevalescente.
O referencial agora passa a ser o trânsito em julgado da decisão. Desta forma, mesmo que o processo já tenha sido sentenciado, mas pendente a apreciação de recurso, pode ser oferecido o acordo.
Pode ocorrer de o réu não ter confessado a prática do crime ao longo do processo. Esse fato não impede o oferecimento do acordo, pois ao ser interrogado, o acusado não tinha sido informado dos benefícios porventura advindos de sua confissão, no caso o ANPP. Havia, àquela altura, uma assimetria informacional.
3. Nos processos penais em andamento na data da proclamação do resultado deste julgamento, nos quais em tese seja cabível a negociação de ANPP, se este ainda não foi oferecido ou não houve motivação para o seu não oferecimento, o Ministério Público, agindo de ofício, a pedido da defesa ou mediante provocação do magistrado da causa deverá, na primeira oportunidade em que falar nos autos, após a publicação da ata deste julgamento, manifestar-se motivadamente acerca do cabimento ao não do acordo.
4. Nas investigações ou ações penais iniciadas a partir da proclamação do resultado deste julgamento, a proposição de ANPP pelo Ministério Público, ou a motivação para o seu não oferecimento, devem ser apresentadas antes do recebimento da denúncia, ressalvada a possibilidade de propositura pelo órgão ministerial no curso da ação penal, se for o caso.
As teses 3 e 4 disciplinam questões procedimentais, valendo o destaque de que o oferecimento (ou não) do acordo deve ser avaliado preferencialmente antes do recebimento da denúncia, e, para os feitos em curso, caberá ao MP manifestar-se na primeira vez que os autos do processo vierem com vista.
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