Acidente na Faria Lima: elementos configuradores de dolo eventual no caso Gato Preto

Acidente na Faria Lima: elementos configuradores de dolo eventual no caso Gato Preto

Quando a imprudência no trânsito transcende os limites da culpa

Na manhã do dia 20 de agosto de 2025, um grave acidente de trânsito na Avenida Brigadeiro Faria Lima chamou atenção não apenas pela destruição do Porsche conversível avaliado em R$ 1,5 milhão, mas principalmente pelos aspectos jurídico-penais que envolvem a conduta do influenciador Samuel Sant’anna, conhecido como Gato Preto.

Veja aqui o vídeo:

Gato Preto será investigado por lesão corporal culposa e por fugir de acidente de trânsito com vítima

Embora a autoridade policial tenha enquadrado inicialmente os fatos como lesão corporal culposa, conforme previsto no artigo 303 do Código de Trânsito Brasileiro, uma análise mais detida dos elementos probatórios sugere a possibilidade de tipificação mais gravosa.

Com efeito, os registros das câmeras de segurança demonstram que o condutor avançou deliberadamente o semáforo vermelho em alta velocidade, vindo a colidir violentamente contra um Hyundai HB20 que trafegava regularmente pela Rua Elvira Ferraz.

Ademais, o impacto resultou em fratura no maxilar do filho do motorista atingido, evidenciando que apenas circunstâncias fortuitas impediram resultado mais grave.

Consoante a melhor doutrina penal, a distinção entre culpa consciente e dolo eventual constitui uma das questões mais intrincadas do direito criminal brasileiro.

Conforme magistério de Rogério Greco, “no dolo eventual, o agente não quer diretamente o resultado, mas assume o risco de produzi-lo, sendo-lhe indiferente que venha ou não a ocorrer”.

Neste diapasão, o artigo 18, inciso I, do Código Penal estabelece que o crime é doloso “quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”.

Destarte, não se faz necessária a vontade direta do resultado morte, bastando que o agente tenha previsto a possibilidade de sua ocorrência e, ainda assim, prosseguido na conduta arriscada com total indiferença.

No caso em tela, diversos elementos objetivos apontam para a configuração do dolo eventual.

Primeiramente, conforme relatado pela vítima Edilson Maiorano em seu depoimento, Gato Preto “estava visivelmente alterado, com sinais de embriaguez, bastante agressivo”. Ora, a embriaguez ao volante, tipificada no artigo 306 do CTB, quando conjugada com outros fatores agravantes, pode evidenciar a assunção consciente do risco.

Veja, inclusive as fotos das redes sociais antes do evento:

Caso Gato Preto

Ademais, as imagens captadas pelas câmeras de monitoramento revelam que o influenciador conduzia o veículo em velocidade manifestamente excessiva para o local – via urbana com limite entre 40 a 50 km/h.

Não obstante, prosseguiu em sua marcha mesmo diante do semáforo vermelho, demonstrando total desprezo pelas normas de segurança viária e, consequentemente, pela incolumidade física de terceiros.

Precedentes jurisprudenciais

Vale salientar que, a jurisprudência pátria tem se posicionado de forma cada vez mais rigorosa em relação aos crimes de trânsito praticados com grave violação ao dever de cuidado.

Inclusive, a jurisprudência tem associado o consumo de álcool e a direção ao caso de dolo eventual:

HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO. DOLO EVENTUAL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. PRISÃO PREVENTIVA. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. CONDIÇÕES PESSOAIS FAVORÁVEIS. IRRELEVANTES. APLICAÇÃO DE MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS DA PRISÃO. IMPOSSIBILIDADE. PRISÃO DOMICILIAR. IMPRESCINDIBILIDADE NÃO DEMONSTRADA. ORDEM DENEGADA. I. Presentes os requisitos ensejadores da decretação da prisão preventiva, em decisão fundamentada, ainda, sendo o delito, em tese, de gravidade e repercussão, ou seja, morte no trânsito e ingestão de bebida alcoólica, tenho por injustificada a aplicação de medida cautelar inversa da prisão, já que, ausentes os requisitos que a autorizariam. II. Condições pessoais favoráveis, por si sós, não garantem direito de responder ao processo em liberdade, quando presentes os requisitos que autorizam a segregação cautelar. III. Restando ausentes os requisitos previstos no artigo 318 do Código de Processo Penal, não há que se falar em substituição da prisão preventiva pela domiciliar. Com o parecer, ordem denegada. (TJMS; HCCr 1407655-57.2025.8.12.0000; Campo Grande; Segunda Câmara Criminal; Rel. Des. Waldir Marques; DJMS 16/06/2025; Pág. 160)

Em outro caso: “no processo em análise, não há prova inconteste de que o recorrente tenha agido somente a título de culpa, pois há, nos autos, elementos de provas que indicam que o mesmo havia consumido bebida alcoólica, e, ainda assim, assumiu o risco de dirigir”.

Veja outro precedente:

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. DECISÃO DE PRONÚNCIA PELO CRIME DO ART. 121, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL. PEDIDO DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA O ART. 302 DO CTB. IMPOSSIBILIDADE. INDÍCIOS MÍNIMOS DA OCORRÊNCIA DE DOLO EVENTUAL. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. I. Caso em exame1. Recurso em sentido estrito interposto por Francisco Alexandre Ribeiro maia contra decisão exarada pela 1ª vara da Comarca de senador pompeu que o pronunciou pelo crime do art. 121, caput, do Código Penal. II. Questões a debater2. A questão a debater é saber se é caso de desclassificação da conduta para o delito descrito no art. 302, caput, do código de trânsito. III. razões de decidir3. O contexto probatório apresenta sustentação em relação à versão apresentada na peça acusatória, para esta quadra processual, sobretudo pelas seguintes razões: (I) o depoimento da testemunha Carlos Alberto oliveira costa afirmando que o acusado, no dia dos fatos, estava batendo nas calçadas, sem conseguir estacionar, (II) o depoimento da testemunha liege Maria cavalcante que afirma ter o acusado colidido no seu carro previamente aos fatos e (III) a magnitude do dano causado no veículo causador do acidente. 4. Assim, no processo em análise, não há prova inconteste de que o recorrente tenha agido somente a título de culpa, pois há, nos autos, elementos de provas que indicam que o mesmo havia consumido bebida alcoólica, e, ainda assim, assumiu o risco de dirigir. 5. Nesse sentido, ainda que existam outros elementos nos autos que possam respaldar a tese defensiva ou mesmo ensejar certa dúvida quanto à existência ou não do dolo eventual, como a ausência de laudo de alcoolemia, não há como acolher, nesse momento, o pleito recursal. 6. Por tais razões, cabe aos jurados o exame das versões da acusação e da defesa, não restando caracterizada hipótese de desclassificação, vez que não é possível o reconhecimento, desde logo, do elemento culpa em favor do acusado, especialmente porque tal pretensão acerca do mérito se reserva, em verdade, ao júri popular. lV. Dispositivo7. Recurso conhecido e desprovido. (TJCE; RSE 0200779-47.2022.8.06.0166; Senador Pompeu; Terceira Câmara Criminal; Relª Desª Andréa Mendes Bezerra Delfino; Julg. 06/05/2025; DJCE 07/05/2025)

De maneira mais evidente, o STJ já disse: “No caso sob apreciação, as instâncias ordinárias, ao constatarem a existência de indícios suficientes do dolo eventual do denunciado, levaram em consideração as provas pericial e oral, que apontaram para a alta velocidade empregada na direção do veículo e a prévia ingestão de bebida alcóolica pelo réu. Destacaram, ainda, os depoimentos das testemunhas no sentido de que reclamaram do perigo que estavam correndo no interior do automóvel e pediram ao recorrente que reduzisse a velocidade, mas, segundo afirmaram, o acusado persistiu em seu comportamento, culminando no acidente que causou a morte das vítimas”.

Veja o precedente:

79471456 - AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO. DECISÃO DE PRONÚNCIA. PEDIDO DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. EXISTÊNCIA DE VERSÃO MINIMAMENTE PLAUSÍVEL ACERCA DO DOLO EVENTUAL DO RÉU AMPARADA EM PROVA JUDICIALIZADA. NECESSIDADE DE SUBMISSÃO AO TRIBUNAL DO JÚRI. PRETENSÃO DE REVISÃO DA CONCLUSÃO ADOTADA PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. INVIABILIDADE. SÚMULA N. 7/STJ. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. Havendo elementos indiciários que subsidiem, com razoabilidade, as versões conflitantes acerca dos fatos imputados, a divergência deve ser solvida pelo Conselho de Sentença, evitando-se a indevida invasão da sua competência constitucional. 2. No caso sob apreciação, as instâncias ordinárias, ao constatarem a existência de indícios suficientes do dolo eventual do denunciado, levaram em consideração as provas pericial e oral, que apontaram para a alta velocidade empregada na direção do veículo e a prévia ingestão de bebida alcóolica pelo réu. Destacaram, ainda, os depoimentos das testemunhas no sentido de que reclamaram do perigo que estavam correndo no interior do automóvel e pediram ao recorrente que reduzisse a velocidade, mas, segundo afirmaram, o acusado persistiu em seu comportamento, culminando no acidente que causou a morte das vítimas. 3. A verificação do acerto ou desacerto do entendimento fixado pelas instâncias ordinárias, com a finalidade de se desclassificar a conduta para a modalidade culposa prevista no art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro e, portanto, despronunciar o réu, ultrapassa os limites cognitivos do Recurso Especial, ante a necessidade de revisão do contexto fático-probatório, o que é vedado pelo óbice da Súmula n. 7 do Superior Tribunal de Justiça. 4. Agravo regimental desprovido. (STJ; AgRg-AREsp 2.717.985; Proc. 2024/0300141-2; MG; Sexta Turma; Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro; Julg. 03/12/2024; DJE 09/12/2024)

Ademais, cumpre destacar que a recusa do investigado em submeter-se ao teste do bafômetro, embora constituindo direito constitucionalmente assegurado, não obsta a comprovação do estado de embriaguez por outros meios de prova.

Conclusão

Nesse particular, o depoimento das testemunhas presenciais, aliado às imagens das câmeras corporais da Polícia Militar – que flagraram o investigado em estado de total descontrole quando da execução da prisão em flagrante – constituem prova robusta do estado de alteração psicomotora.

Enquanto a lesão corporal culposa prevê pena máxima de três anos de detenção (artigo 303 do CTB), permitindo regime aberto desde o início do cumprimento, o homicídio tentado comporta sanção de seis a vinte anos de reclusão (artigos 121 c/c 14, II, do CP), exigindo cumprimento inicial em regime fechado.


Quer saber quais serão os próximos concursos?

Confira nossos artigos para Carreiras Jurídicas!
0 Shares:
Você pode gostar também