Olá, pessoal!
Sou o professor Guilherme Rezende, Doutorando e Mestre em Direito Público, Professor de Processo Penal e de Legislação Institucional do MP e Promotor de Justiça no MPPR.
Trouxe abaixo um tema atual para debatermos e refletirmos: A “chacina de sorriso”: análise jurídica da tragédia que abalou o Brasil.
Há poucos dias, o Brasil foi abalado com uma notícia chocante: três mulheres teriam sido encontradas mortas e nuas. Elas seriam mãe e filhas e teriam 46, 19 , 13 e 10 anos de idade. O crime teria ocorrido no interior do estado de Mato Grosso.
Sem pretender qualquer referência demeritória aos envolvidos, ou realizar um pré-julgamento do caso, mas com o intuito único de avaliar a situação do ponto de vista jurídico, faremos algumas breves considerações.
Reiteramos absoluto respeito e consideração às vítimas sobreviventes, o marido/pai, amigos e familiares, além da memória das vítimas diretas.
O primeiro dado relevante a ser comentado é o próprio conceito de vítima. Temos por hábito confundi-la, equivocadamente, com o sujeito passivo do crime (no caso de homicídio e estupro), enquanto a sua abrangência é bem mais ampla.
Sem buscar referências no direito internacional, como por exemplo na Resolução 40/34, da ONU, mas atendo-nos à normativa interna, mais precisamente a Resolução 243, do CNMP, a vítima é “qualquer pessoa natural que tenha sofrido danos físicos, emocionais, em sua própria pessoa, ou em seus bens, causados diretamente pela prática de um crime, ato infracional, calamidade pública, desastres naturais ou graves violações de direitos humanos.”
A aludida norma diferencia a vítima direta de vítima indireta, nos seguintes termos:
I – vítima direta: aquela que sofreu lesão direta causada pela ação ou omissão do agente;
II – vítima indireta: pessoas que possuam relação de afeto ou parentesco com a vítima direta, até o terceiro grau, desde que convivam, estejam sob seus cuidados ou desta dependam, no caso de morte ou desaparecimento causado por crime, ato infracional ou calamidade pública;
Assim, não apenas as ofendidas são consideradas vítimas, senão também o marido/pai e familiares.
Sobre o fato em si, a imprensa noticia que o investigado foi preso horas após confessar ter cometido a chacina, tendo relatado aos policiais que esfaqueou as três vítimas, e, enquanto elas ainda agonizavam, as estuprou.
A reportagem informa a dinâmica do crime, esclarecendo que o rapaz tentou estuprar a primeira das vítimas, porém ela resistiu e acabou sendo degolada, e que a filha mais velha, ao ouvir o barulho, tentou auxiliar a mãe e também foi degolada. Ao perceber que “as coisas haviam saído do controle”, o investigado degolou a adolescente de 13 anos, e ainda matou a mais nova, de 10 anos, asfixiada. Ao cabo ele ainda teria mantido conjunção carnal com as quatro.
Consideremos esse cenário.
O rapaz teria tentado manter conjunção carnal, não consumado o seu intento inicial, em razão da resistência oferecida pela vítima, motivo pela qual desferiu nela um golpe no pescoço (degola). Em seguida, aproveitando-se do fato de que ela não oferecia mais resistência em razão dos ferimentos, ele consumou o coito. O fato se repetiu outras duas vezes contra as demais vítimas, observando a mesma dinâmica.
Como se percebe, a investida inicial se deu com o propósito de manter a relação sexual, seguindo, em razão da resistência da vítima, para o crime de homicídio.
Sem saber quais atos foram praticados nessa primeira agressão, se o investigado avançou dos atos preparatórios para os atos executórios, vamos considerar apenas o segundo momento: agressões com o resultado morte (a degola). O crime cometido foi o de homicídio qualificado, na forma consumada, pois o resultado morte, previsto no tipo penal, ocorreu, ainda que não imediatamente.
Podemos pensar em ao menos quatro qualificadoras: motivo fútil, já que insignificante, diante da desproporcionalidade do comportamento do agente; com o emprego de meio cruel, pois causou na ofendida sofrimento atroz e desnecessário (assumindo que a morte pela degola é lenta, até que o sangue se esvaia do organismo); mediante recurso que dificultou a defesa do ofendido, pois a vítima foi colhida de surpresa em sua residência; e, por fim, para assegurar a execução de outro crime, no caso o estupro.
A reportagem também narra que o rapaz teria mantido conjunção carnal com as vítimas após a degola, ou seja, quando elas já não tinham mais capacidade de oferecer resistência, em decorrência de sua debilidade, incorrendo, pois, na prática do crime previsto no artigo 217-A, §1ª, do CP:
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
§ 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
A figura específica do estupro de vulnerável é adequada, pois conforme dispõe a parte final do §1º, as vítimas, por qualquer outra causa, no caso a degola e seus efeitos (perda de sangue, redução da pressão arterial etc), não podiam oferecer resistência.
Não nos parece que seja o caso de enquadramento típico na figura do estupro seguido de morte a que se refere o §4º, do artigo 217, do CP, pois é possível identificar claramente a existência de desígnios autônomos, e mais, de ações voltadas especificamente a cada uma das condutas, por parte do investigado, configurando-se, a nosso juízo, duas infrações, em concurso material em relação a cada uma das vítimas.
Uma curiosidade: caso as relações sexuais tenham sido mantidas com as vítimas após a sua morte, não haveria estupro, mas o crime de vilipendio de cadáver, previsto no artigo 212, do CP:
Art. 212 – Vilipendiar cadáver ou suas cinzas:
Pena – detenção, de um a três anos, e multa.
Tanto o homicídio quanto o estupro são crimes hediondos, com todas as consequências daí advindas, em especial no que diz respeito ao cumprimento de eventual pena aplicada e a progressão de regime, que deve observar percentuais diversos dos demais crimes.
As infrações serão julgadas pelo Tribunal do Júri do local onde se consumou a infração, pois a existência de crime doloso contra a vida (o homicídio qualificado), atrai a competência para julgamento das infrações conexas, conforme artigo 78, I, do CPP.
Em caso de procedência da pretensão punitiva, caberá ao juiz presidente realizar a dosimetria da pena, de acordo com o critério trifásico, podendo valorar negativamente algumas circunstâncias judiciais, como culpabilidade, circunstâncias e consequências do crime, dentre outras, nos moldes do artigo 59, do CP.
Importante gizar que a sentença deverá fixar o valor mínimo de indenização à vítima (artigo 387, IV, do CPP), inclusive por danos morais, desde que tenha havido pedido expresso do Ministério Público na denúncia, conforme já decidiu o STJ:
AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL PENAL. VIOLAÇÃO DO ART. 387, IV, DO CPP. DANOS MORAIS. INDENIZAÇÃO. PLEITO DE EXCLUSÃO. PEDIDO EXPRESSO NA DENÚNCIA. DESNECESSIDADE DE INSTRUÇÃO PROBATÓRIA ESPECÍFICA. PRECEDENTES.
1. O Superior Tribunal de Justiça, ao examinar esse aspecto da questão, tem enfatizado, em sucessivas decisões, que a aferição do dano moral, na maior parte das situações, não ensejará nenhum alargamento da instrução criminal, porquanto tal modalidade de dano, de modo geral, dispensa a produção de prova específica acerca da sua existência, encontrando-se in re ipsa. Isto é, não há necessidade de produção de prova específica para apuração do grau de sofrimento, de dor e de constrangimento suportados pelo ofendido; o que se deve provar é uma situação de fato de que seja possível extrair, a partir de um juízo baseado na experiência comum, a ofensa à esfera anímica do indivíduo (AgRg no REsp n. 1.626.962/MS, Ministro Sebastião Reis Junior, Sexta Turma, DJe 16/12/2016).
2. Basta que haja pedido expresso na denúncia, do querelante ou do Ministério Público, para que seja possível a análise de tal requerimento.
3. A aferição do dano moral, em regra, não causará nenhum desvirtuamento ou retardamento da atividade instrutória a ser realizada na esfera criminal, a qual deverá recair, como ordinariamente ocorre, sobre o fato delituoso narrado na peça acusatória; desse fato ilícito – se comprovado – é que o Juiz extrairá, com esteio nas regras da experiência comum, a existência do dano à esfera íntima do indivíduo.
4. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é firme no sentido de que a fixação de valor mínimo para reparação dos danos morais causados pela infração exige apenas pedido expresso na inicial, sendo desnecessárias a indicação de valor e a instrução probatória específica. No caso dos autos, como houve o pedido de indenização por danos morais na denúncia, não há falar em violação ao princípio do devido processo legal e do contraditório, pois a Defesa pôde se contrapor desde o início da ação penal” (AgRg no REsp n. 1.940.163/TO, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 22/2/2022, DJe de 3/3/2022) – (AgRg no REsp n. 2.011.530/MG, Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, DJe 4/10/2022 – grifo nosso).
5. Agravo regimental improvido.
(AgRg no REsp n. 2.037.975/MS, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 11/9/2023, DJe de 14/9/2023.)
Por fim, em plenário, se a pena final for fixada em patamar igual ou superior a 15 anos, caberá a execução imediata da pena privativa de liberdade, nos termos do artigo 492, I, e, do CPP, sendo que eventual recurso de apelação não terá efeito suspensivo.