De início, vamos tratar do seguinte julgado decidido pelo STJ:

Expropriação de bens
Veja que, a expropriação de bens utilizados na prática do crime de tráfico de drogas representa uma das mais severas sanções patrimoniais previstas no ordenamento jurídico brasileiro, encontrando respaldo constitucional no artigo 243, parágrafo único, da Constituição Federal:
Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 81, de 2014)
Entretanto, na visão do STJ, conquanto essa medida se justifique pela gravidade do delito e pela necessidade de desarticular estruturas criminosas, sua aplicação não pode se dar de forma automática e irrefletida, sob pena de violar direitos fundamentais de terceiros não envolvidos na prática delitiva.
Assim, essa tensão entre o combate ao narcotráfico e a proteção de garantias constitucionais foi objeto de cuidadosa análise pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do AgRg no REsp 2.188.777/PR, relatado pelo Ministro Reynaldo Soares da Fonseca.
Caso concreto
O caso concreto que motivou o julgamento envolveu a condenação criminal por tráfico de drogas e o consequente perdimento de propriedade rural pertencente aos pais idosos do réu e à sua ex-esposa.
Diante disso, a peculiaridade da situação residia no fato de que a propriedade, utilizada para exploração de pecuária leiteira há mais de cinquenta anos, havia sido empregada para finalidades ilícitas sem o conhecimento dos proprietários.
Isto é, os pais, já idosos e enfermos, haviam se afastado da administração direta da terra, que passou a ter a gestão dos filhos.
Logo, quando ajuizados os embargos de terceiros, a mãe já havia falecido e o pai contava com oitenta e um anos de idade. Ainda assim, as instâncias ordinárias mantiveram o perdimento integral da propriedade.
Inversão do ônus probatório
Para justificar a manutenção da expropriação, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região aplicou o entendimento firmado no Tema 399 da Repercussão Geral do Supremo Tribunal Federal, segundo o qual a responsabilidade dos coproprietários se justificaria pela presunção de culpa in eligendo ou in vigilando.
Nessa perspectiva, caberia aos terceiros proprietários demonstrar que não sabiam ou não tinham como saber que a propriedade estava sendo utilizada para a prática de tráfico de drogas.
Tratava-se, portanto, de inversão do ônus probatório em desfavor dos embargantes.
Todavia, conforme destacou o Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, essa transposição mecânica do precedente do Supremo Tribunal Federal padecia de vício fundamental.
Princípio da proporcionalidade
Com efeito, o Tema 399 foi construído para situações em que terras são utilizadas para o cultivo de plantas psicotrópicas, hipótese que representa manifesto desvirtuamento da função social da propriedade.
Diferentemente, no caso sob análise, a terra permanecia cumprindo sua função social mediante a exploração de pecuária leiteira, embora a propriedade fosse também utilizada, de forma não exclusiva, para finalidade ilícita.
Cuida-se, portanto, de situações não análogas, o que inviabiliza a mera transposição do precedente sem as necessárias reflexões e adaptações.
Outrossim, mesmo que se admitisse a aplicabilidade do Tema 399 da Repercussão Geral, impunha-se uma leitura em consonância com os demais princípios constitucionais, notadamente o princípio da proporcionalidade.
Assim, para o STJ, nesse sentido, o próprio Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 544.205/PI, manteve acórdão que decretou a perda apenas da área efetivamente plantada com substância psicotrópica, e não da totalidade do imóvel, considerando desproporcional a expropriação integral quando apenas parte da propriedade foi destinada ao plantio ilegal.
Ademais, o acórdão do Supremo registrou que, em virtude do princípio constitucional da personalidade da pena e da razoabilidade, não se pode responsabilizar ninguém por fato cometido por outra pessoa ou sem dolo ou culpa, de modo que a expropriação não pode recair sobre herdeiros inocentes que não contribuíram para a prática delitiva.
Nessa ordem de ideias, revela-se imperativo compreender que o combate ao narcotráfico, por mais relevante que seja e ainda que conte com mandado expresso de criminalização previsto no artigo 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, não pode se sobrepor a garantias fundamentais de terceiros não envolvidos com a conduta criminosa.
Logo, a perda da propriedade constitui uma das mais severas sanções civis, razão pela qual a interpretação das normas que a determinam deve ser realizada com parcimônia, sempre tendo em vista sua conexão com o direito à moradia e com a dignidade da pessoa humana.
Nesse diapasão, não se pode falar em expropriação baseada em presunção de culpa de terceiro quando se trata da hipótese do artigo 243, parágrafo único, da Constituição Federal, porquanto o objetivo da norma é punir o criminoso e não o terceiro de boa-fé.
Boa-fé
Assim, conforme jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça, a presunção de boa-fé constitui princípio geral de direito universalmente aceito, sendo milenar a parêmia segundo a qual a boa-fé se presume e a má-fé se prova.
No caso concreto analisado, a ausência de culpa dos terceiros proprietários mostrava-se evidente.
Inclusive, quanto aos pais do réu, tratava-se de pessoas idosas e enfermas que, após cuidarem da propriedade rural por mais de meio século, precisaram se afastar tanto do trabalho quanto da supervisão da terra em razão da idade avançada e das doenças.
Nesse contexto, aplicava-se com precisão a observação do Ministro Gilmar Mendes no Tema 399, no sentido de que a função social da propriedade aponta para um dever do proprietário de zelar pelo uso lícito de seu terreno, ainda que não esteja na posse direta, mas esse dever não é ilimitado, somente sendo possível exigir do proprietário que evite o ilícito quando tal providência estava razoavelmente ao seu alcance.
Intranscendência da pena
Relativamente à meação da ex-esposa do réu, tratava-se igualmente de bem imóvel de terceira de boa-fé, de quem não se podia esperar comportamento impeditivo de prática delitiva.
Inclusive, dentro da unidade familiar, o Direito não impõe à mulher o dever de evitar a companhia de seu esposo, ainda que este se dedique a atividades criminosas.
Por consequência, não se pode exigir que ela o impeça de praticar crimes ou que o denuncie às autoridades policiais, conforme se depreende do artigo 348, parágrafo 2º, do Código Penal, que prevê isenção de pena para ascendentes, descendentes e cônjuges nos casos de favorecimento pessoal.
Destarte, o perdimento integral da propriedade rural produtiva atingiria meeira e herdeiros inocentes, violando frontalmente o princípio da intranscendência da pena, previsto no artigo 5º, inciso XLV, da Constituição Federal.
Ademais, o debate envolvia inúmeros outros valores constitucionais relevantes, tais como a proteção do idoso, da saúde e da família, que não poderiam ser desconsiderados pelo intérprete.
Diante desse quadro, o Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, deu provimento ao agravo regimental para determinar que o perdimento estabelecido na sentença criminal fosse limitado à meação do bem pertencente ao réu, preservando-se os direitos dos terceiros de boa-fé.
Lado outro, essa solução revela a sensibilidade da Corte em harmonizar a interpretação dos artigos 60 e 63 da Lei 11.343/2006 com os pilares do regime democrático de direito e com compreensões mais adequadas ao direito penal moderno.
Conclusão
Em suma, o julgamento do AgRg no REsp 2.188.777/PR representa importante contribuição para a delimitação dos contornos do perdimento de bens no tráfico de drogas, estabelecendo que a aplicação dessa severa sanção patrimonial deve se compatibilizar com a boa-fé de terceiros, o princípio da intranscendência da pena e outros valores constitucionais relevantes.
Além disso, vale citar os entendimentos do STF sobre o tema:
A expropriação prevista no art. 243 da Constituição Federal pode ser afastada, desde que o proprietário comprove que não incorreu em culpa, ainda que in vigilando ou in eligendo. STF. Plenário. RE 635336/PE, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 14/12/2016 (repercussão geral) (Info 851).
“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CÍVEL ORIGINÁRIA. DEMANDA DA UNIÃO OBJETIVANDO A EXPROPRIAÇÃO DE PROPRIEDADE RURAL ONDE LOCALIZADA CULTURA ILEGAL DE PLANTA PSICOTRÓPICA. ART. 243 DA CF /88. IMÓVEL PÚBLICO. PROPRIEDADE DO ESTADO DE PERNAMBUCO. EXPROPRIAÇÃO COM CARÁTER DE CONFISCO. DESCABIMENTO EM FACE DE BEM PÚBLICO. AÇÃO QUE SE JULGA IMPROCEDENTE. 1. Dado o caráter sancionatório da medida, pressupõe-se a prática de delito ou sua aquiescência pelo titular do imóvel, o que se mostra inviável se este é pessoa jurídica de direito público. 2. Não se justifica, para fins da expropriação, com caráter de confisco, de que trata o art. 243 da Constituição Federal, a invocação da primazia da União sobre os Estados. 3. Em se tratando de bem já público, sua expropriação para mera alteração de titularidade nada contribui para o alcance da finalidade do instituto. 4. Ação julgada improcedente. ” (ACO 967, Relatora Min. Rosa Weber, Tribunal Pleno, julgado em 27.4.2020, DJe 15.05.2020)
Isto porque, o combate ao narcotráfico, conquanto seja objetivo legítimo e prioritário do Estado, não pode se dar mediante o sacrifício injustificado de direitos fundamentais de pessoas inocentes, sob pena de comprometer a própria legitimidade da atuação estatal.
Em suma:
A perda da propriedade rural em favor da União pela prática do crime de tráfico ilícito de entorpecentes deve se compatibilizar com a boa-fé de terceiros, o princípio da intranscendência da pena e outros valores constitucionais relevantes.
AgRg no REsp 2.188.777-PR, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, por unanimidade, julgado em 7/10/2025, DJEN 14/10/2025.
Como o tema já caiu em provas
Prova: Instituto Consulplan - 2024 - Câmara de Belo Horizonte - MG - Coordenador do Processo Legislativo A União propôs uma demanda em face de determinado Estado e dos possuidores e ocupantes de determinada área de terra, com base no Art. 243 da CF/1988 (Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do país onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no Art. 5º.) para expropriação deste terreno de, aproximadamente, 700 hectares, onde for encontrado cultivo de Cannabis sativa, popularmente conhecida como maconha. Essa demanda deve ser: Alternativas A) Desacolhida, não se mostra cabível o confisco de um bem de ente federativo, por outro ente da federação. B) Desacolhida, por se tratar de área pública não cabe a desapropriação do bem por outra entidade da federação. C) Acolhida, ante o princípio da primazia expropriatória da União sobre as demais entidades públicas que compõem a Federação. D) Acolhida, uma vez que há primazia do interesse da União, constitucionalmente firmado em face do Estado e dos particulares. Gab.: A.
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