Explicação do caso
O Brasil presenciou, no dia 23 de abril de 2025, uma cena um tanto quanto inusitada na história recente do processo penal: um ex-presidente da República sendo intimado judicialmente em pleno leito de UTI.

Jair Bolsonaro, internado no hospital DF Star, em Brasília, desde o dia 12 daquele mês, recebeu pessoalmente uma oficiala de Justiça que lhe entregou a intimação da ação penal em que é réu no Supremo Tribunal Federal (STF), acusado de envolvimento em tentativa de golpe de Estado.
O elemento que desencadeou a autorização judicial foi uma live feita por Bolsonaro diretamente do hospital, transmitida para milhares de seguidores pelas redes sociais. O ministro Alexandre de Moraes, relator da ação no STF, entendeu que a exibição pública indicava lucidez e plena capacidade de receber o ato processual. “A realização da live demonstrou a possibilidade de ser citado e intimado”, consta da decisão. O registro oficial marca a ciência do ex-presidente às 12h47.1
A defesa reagiu com veemência. Em nota, os advogados questionaram a urgência do procedimento, considerando-o “invasivo” e alegando que Bolsonaro “jamais se esquivou de qualquer chamado ao longo da investigação”.
Outros réus do chamado “núcleo 1” já haviam sido intimados anteriormente. No entanto, o STF havia optado por aguardar melhores condições clínicas do ex-presidente. Ele passou por uma cirurgia de reconstrução abdominal e liberação de aderências intestinais no dia 13 — procedimento que durou cerca de 12 horas.
Aspectos jurídicos relevantes
Citação e intimação
O caso coloca sob os holofotes dois institutos fundamentais do processo penal: citação e intimação, que, embora muitas vezes confundidos, têm naturezas e finalidades distintas.
A citação, conforme o art. 351 do Código de Processo Penal (CPP), é o ato inaugural do processo penal: por meio dela, o réu é formalmente comunicado de que está sendo processado e é convocado a se defender.
Já a intimação, prevista no art. 370 do CPP, é o mecanismo utilizado para comunicar decisões, atos e diligências processuais ao longo do processo. Enquanto a citação ocorre uma única vez, a intimação pode se repetir diversas vezes, servindo para garantir que o réu acompanhe o andamento processual.
Aplicação subsidiária
Importante destacar que o Código de Processo Civil (CPC) há de ser aplicado subsidiariamente ao processo penal, como autoriza o art. 3º do CPP em conjunto com o art. 15 do CPC.
Com base nisso, normas como as previstas nos artigos 243 e 244 do CPC — que disciplinam citação em locais diversos e impedimentos em casos de estado grave de saúde — são plenamente aplicáveis ao caso.
Segundo o art. 244, IV, do CPC, não se deve realizar citação — e, por analogia, intimação — de pessoa que esteja em estado grave de saúde, exceto para evitar o perecimento do direito.
Trata-se de norma que visa proteger a dignidade do indivíduo em situação de vulnerabilidade clínica, reconhecendo que a plena ciência de um ato processual requer capacidade de compreensão e reação.
É aqui que reside o ponto sensível da decisão do STF: embora Bolsonaro estivesse em uma UTI e tivesse se submetido a uma cirurgia de grande porte poucos dias antes, o ministro Alexandre de Moraes considerou que a realização voluntária de uma live, transmitida publicamente, seria prova suficiente de que ele estava lúcido e apto a receber a intimação. Ou seja, o próprio comportamento do réu afastou a presunção de gravidade clínica que o protegia.
A regra que veda citação/intimação de doente em estado grave não é absoluta, e pode ser relativizada quando houver evidência de que o quadro clínico não compromete a consciência do ato.
Assim, embora o hospital ainda não tivesse autorizado visitas e não houvesse previsão de alta, o ato voluntário de comunicação pública via internet se transformou, paradoxalmente, em argumento processual contra o próprio réu.
Consequências
A intimação de Bolsonaro em um leito hospitalar levanta debates profundos sobre os limites da atuação judicial em face da dignidade da pessoa. O caso tornou-se emblemático por expor a interseção entre tecnologia e exposição pública — elementos cada vez mais presentes em litígios de forte conotação política.
Sob a perspectiva jurídica, a decisão de Alexandre de Moraes reforça a tese de que o comportamento processual do réu pode interferir na forma e no momento dos atos judiciais. Bolsonaro, ao se comunicar publicamente por meio de uma live, criou uma situação fática que afastou a presunção de incapacidade que sua internação sugeria.
Socialmente, esse episódio da intimação de Bolsonaro reacendeu discussões sobre garantias individuais, seletividade da Justiça e o papel da mídia digital na construção (ou desconstrução) da imagem de figuras públicas. Há quem veja na medida um exemplo de imparcialidade e rigor técnico; outros apontam para um possível exagero na atuação judicial, que poderia desconsiderar aspectos clínicos ainda relevantes.
- FALCÃO, Márcio. Por que Bolsonaro foi intimado após fazer live em quarto de UTI? G1 Política. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/04/24/por-que-bolsonaro-foi-intimado-apos-fazer-live-em-quarto-de-uti.ghtml#1>. ↩︎
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