* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Decisão do STF
O Supremo Tribunal Federal (STF) declarou, por maioria, a constitucionalidade de uma lei do Estado de São Paulo que prevê a possibilidade de cancelamento do cadastro de ICMS de empresas que comercializem produtos oriundos de trabalho escravo ou em condições análogas à escravidão. A decisão foi proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5465.
O placar ficou em 10 x 1 pela constitucionalidade da norma estadual, com o fundamento de que as sanções da lei paulista, por serem administrativas, e não criminais, são válidas.
O relator foi o Ministro Nunes Marques, e o único voto contrário foi o do ministro Dias Toffoli, que reconhecia a inconstitucionalidade da norma, entendendo que o Estado de São Paulo invadiu competência da União ao estabelecer normas de fiscalização e punição para empresas envolvidas com trabalho escravo.
ADI x lei paulista
A ADI foi ajuizada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), questionando a validade dos artigos 1º, 2º, 3º e 4º da Lei nº 14.946/2013 do Estado de São Paulo.
A norma prevê que empresas que vendem produtos fabricados com trabalho escravo ou semelhante à escravidão podem perder o registro estadual de imposto (ICMS). Além disso, cria uma lista pública das empresas punidas por conta da comercialização desses produtos e proíbe sócios dessas empresas de atuar no mesmo ramo por 10 anos.

O código penal traz, em seu artigo 149, o crime de “redução a condição análoga à de escravo”, tendo como fato típico o ato de reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.
Ademais, a pena-base prevista para esse crime é de reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
SANÇÕES PREVISTAS PELA LEI PAULISTA | |
Perda do registro estadual de ICMS | Cria uma lista pública das empresas punidas e proíbe os sócios dessas empresas de atuarem no mesmo ramo por 10 anos |
Fundamentos da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC)
- A lei estadual impõe o cancelamento do cadastro de ICMS das empresas sem um processo administrativo com garantia de ampla defesa (devido processo legal), o que violaria a Constituição.
- Violação a separação dos Poderes.
- Invasão de competência, já que que apenas a União pode criar uma lei sobre direito do trabalho, de modo que o Estado de São Paulo não tinha competência para aprovar lei sobre trabalho escravo.
- Proibir os sócios de atuarem no mesmo setor por 10 anos seria desproporcional.
Fundamentos adotados pelo Supremo Tribunal Federal para validar a lei paulista
1º) O Brasil tem o compromisso de combater o trabalho escravo ou semelhante à escravidão. A Constituição garante a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e proíbe qualquer tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III). No plano internacional, esse dever está previsto nas Convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT) nº 29 e 105, que reforçam a obrigação do país - inclusive dos governos estaduais e municipais - de tomar medidas para acabar com essa prática.
2º) A possibilidade de cancelamento de cadastro de ICMS é uma medida administrativa legítima, dentro do poder dos Estados para fiscalizar tributos (arts. 24, I, e 155 da CF/1988 e art. 78 do Código Tribunal Nacional). A lei paulista (Lei Estadual nº 14.946/2013) não invade a competência da União, pois não dá a órgãos estaduais o poder de fiscalizar o ambiente de trabalho (isso é papel da União e, mais especificamente, do Ministério do Trabalho). Em verdade, a norma só permite que, após confirmada a prática de trabalho escravo pelo órgão competente da União, o Estado de São Paulo avalie e aplique punições a empresas que comercializam produtos fabricados com trabalho escravo.
3º) É permitido divulgar publicamente a lista das empresas punidas. O STF já julgou um caso semelhante (ADPF 509, rel. Min. Marco Aurélio, j. em 15.09.2020) e reconheceu que a criação de uma “lista suja” não é uma nova sanção, mas apenas a divulgação de decisões definitivas, de modo a reforçar a publicidade.
4º) Para aplicar as punições previstas na lei (cancelamento da inscrição estadual e proibições aos sócios), é necessário provar, em um processo administrativo, com direito de se defender (contraditório e ampla defesa), que a empresa ou seus sócios sabiam ou tinham motivos para desconfiar que estavam comercializando produtos fabricados com trabalho escravo. Não basta apenas presumir a culpa.
5º) A lei estadual pode proibir a atuação dos sócios no mesmo ramo de atividade, pois há autorização na Constituição para que os Estados e Municípios criem normas para combater as causas da pobreza e da marginalização (art. 23, X, CF/1988). Para aplicação dessa restrição, contudo, é necessário abrir um processo individual para provar que o sócio sabia ou tinha condições de saber da origem ilícita dos produtos. A punição pode ser aplicada por até 10 anos, e esse prazo deve variar conforme os elementos do caso, permitindo que a penalidade seja ajustada à gravidade da conduta.
Conclusão
Ao final do julgamento, o STF considerou válidos os arts. 1º, 2º e 4º da lei estadual, desde que interpretados à luz das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa.
Também restou decidido que a responsabilização do comerciante exige comprovação de que ele sabia, ou tinha como suspeitar, da origem ilícita dos produtos adquiridos. Tal comprovação deverá ocorrer em processo administrativo adequado, com a observância plena dos direitos de defesa.
Esse raciocínio, do mesmo modo, se aplica ao art. 4º da lei, que trata da penalização de sócios. A sanção, segundo o STF, só poderá ser aplicada se comprovada a contribuição ativa ou passiva do sócio para a aquisição das mercadorias produzidas sob condições ilícitas, e também com base no conhecimento prévio sobre a situação.
Quanto ao prazo máximo de punição, o Supremo decidiu que o prazo de cassação da inscrição estadual deve ter, como limite máximo, 10 anos.
Por fim, a Suprema Corte firmou o entendimento de que apenas os órgãos Federais competentes podem reconhecer a existência de trabalho análogo à escravidão. Reforça, assim, a competência privativa da União para inspecionar relações de trabalho.
Ótimo tema para provas de direito do trabalho e direito constitucional. Portanto, muita atenção!
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