Tema 1269 do STJ: o interrogatório do adolescente agora é o último ato da instrução

Tema 1269 do STJ: o interrogatório do adolescente agora é o último ato da instrução

Introdução: a decisão que reescreveu o procedimento de ato infracional

Prof. Gustavo Cordeiro

Em 8 de outubro de 2025, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça proferiu uma das decisões mais importantes dos últimos anos para o direito da infância e juventude: o julgamento do Tema 1269 dos recursos repetitivos.

A decisão, relatada pelo Ministro Rogério Schietti Cruz, consolidou o entendimento de que o interrogatório do adolescente em procedimento de apuração de ato infracional deve acontecer ao final da instrução, após a produção de todas as provas, em aplicação subsidiária do art. 400 do Código de Processo Penal.

Parece simples? Não se engane. Por trás dessa tese há uma verdadeira guinada jurisprudencial que corrige décadas de práticas processuais equivocadas, reforça direitos fundamentais dos adolescentes e obriga magistrados, promotores e defensores a repensarem completamente a dinâmica das audiências no procedimento de ato infracional.

E o mais importante para você, concurseiro: esse tema é ouro para questões objetivas, dissertativas e provas orais. Vamos destrinchá-lo de forma estratégica.

O problema: quando duas audiências se confundiam

Durante anos, o procedimento de apuração de ato infracional previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente gerou uma confusão processual que dividia tribunais por todo o Brasil: em que momento se deve interrogar o adolescente?

O art. 184 do ECA prevê uma audiência de apresentação, realizada após o oferecimento da representação pelo Ministério Público. Nessa audiência, segundo o dispositivo legal, o juiz deve:

  • Analisar a necessidade de decretação ou manutenção da internação provisória
  • Verificar a possibilidade de conceder remissão (perdão judicial)
  • Ouvir o adolescente

Até aqui, tudo parece claro. O problema começava na prática forense.

Muitos juízos entendiam que essa “oitiva do adolescente” prevista no art. 184 já equivaleria ao interrogatório judicial formal — aquele ato processual em que o representado responde às imputações, exerce sua autodefesa e pode optar pelo silêncio estratégico.

Com essa interpretação, os magistrados aproveitavam a audiência de apresentação para interrogar formalmente o adolescente logo no início do processo, antes mesmo da produção de qualquer prova. Depois, na audiência em continuação, a instrução continuava, com o depoimento das testemunhas de acusação, depois as de defesa, eventuais perícias e, por fim, alegações finais e sentença.

instrução

O raciocínio era pragmático: o ECA tem rito próprio, não menciona expressamente o art. 400 do CPP, então por que não resolver tudo de uma vez e agilizar o processo?

O resultado? Adolescentes sendo interrogados na audiência de apresentação, no início do procedimento, antes de conhecerem as provas produzidas contra si. Antes de ouvirem o que as testemunhas disseram. Antes de verem o laudo pericial. Antes de compreenderem, efetivamente, a extensão das acusações que enfrentavam.

Era como pedir a alguém que se defendesse de um filme que ainda não assistiu.

Os casos concretos: REsp 2.088.626 e REsp 2.100.005

A controvérsia chegou ao STJ por meio de dois recursos especiais, ambos originários do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, interpostos pela Defensoria Pública daquele estado.

No REsp 2.088.626/RS, o adolescente D.E.C. foi representado pela prática de ato infracional análogo ao crime de roubo majorado. Na audiência de apresentação, o juiz realizou o interrogatório formal do adolescente. Posteriormente, ouviu-se as testemunhas de acusação e defesa, e o procedimento seguiu até a sentença de procedência. A Defensoria Pública questionou a ordem dos atos, alegando violação aos arts. 152 do ECA e 400 do CPP.

No REsp 2.100.005/RS, a situação foi idêntica: o adolescente A.K.L.W. foi interrogado na audiência de apresentação, antes da instrução probatória. A defesa sustentou que as instâncias ordinárias confundiram a audiência de apresentação (art. 184 do ECA) com o interrogatório judicial previsto no art. 400 do CPP, causando nulidade absoluta por violação ao contraditório e à ampla defesa.

Em ambos os casos, a Defensoria Pública argumentou que a inversão na ordem dos atos processuais impediu os adolescentes de exercerem plenamente sua autodefesa, pois foram ouvidos antes de conhecerem o conteúdo das provas produzidas contra si.

Os recursos pleiteavam o reconhecimento da nulidade processual, com a realização de novo interrogatório, apresentação de novas alegações finais e prolação de nova sentença.

A tese fixada: Tema 1269 do STJ

Após reconhecer a multiplicidade de casos semelhantes e a relevância jurídica da matéria, a 3ª Seção do STJ, por unanimidade, afetou os recursos ao rito dos repetitivos em 18 de junho de 2024 e julgou o mérito em 8 de outubro de 2025.

A tese fixada no Tema 1269 estabeleceu os seguintes parâmetros:

1. Oferecida a representação pelo Ministério Público, o juiz deve designar audiência de apresentação (art. 184 do ECA), voltada exclusivamente à análise da internação provisória e da remissão, que pode ser concedida a qualquer tempo antes da sentença.

2. Nessa audiência inicial, é expressamente vedada a produção de provas, e eventual confissão do adolescente não poderá, por si só, fundamentar a procedência da representação.

3. Reconhecida a lacuna do ECA quanto à ordem dos atos instrutórios, aplica-se subsidiariamente o art. 400 do Código de Processo Penal, garantindo ao adolescente o interrogatório ao final da instrução, perante o juiz competente, após ter conhecimento pleno de todo o acervo probatório produzido.

4. O entendimento é válido apenas para instruções encerradas após 3 de março de 2016 (data do HC 127.900 do STF), e a nulidade deve ser arguida oportunamente, sob pena de preclusão.

5. Os efeitos da decisão são retroativos a partir de 3/3/2016, mas não suspendem processos pendentes, tendo em vista a natureza do julgamento e a celeridade esperada na uniformização.

Fundamentos da decisão: por que essa mudança era necessária

Interrogatório como meio de autodefesa

O Ministro Rogério Schietti Cruz foi enfático ao destacar que o interrogatório não é mera formalidade burocrática ou momento de confissão do acusado. Trata-se de instrumento essencial de autodefesa, cuja efetividade depende de o adolescente ter conhecimento prévio das provas já produzidas.

O interrogatório é o momento em que o acusado pode:

  • Negar a autoria ou a materialidade
  • Apresentar versão alternativa dos fatos
  • Apontar inconsistências nas provas produzidas
  • Exercer o direito ao silêncio de forma estratégica
  • Requerer a produção de novas provas em sua defesa

Nenhuma dessas funções pode ser exercida adequadamente se o adolescente é interrogado antes de conhecer o que as testemunhas disseram, o que o laudo pericial apontou ou qual a extensão exata das acusações.

Isonomia: adolescente não pode ter menos garantias que adulto

Um dos fundamentos mais contundentes da decisão foi o princípio da isonomia processual.

Se um réu adulto tem direito ao interrogatório ao final da instrução (art. 400 do CPP, alterado pela Lei 11.719/2008), seria flagrantemente inconstitucional negar o mesmo direito ao adolescente representado por ato infracional.

O argumento de que “o ECA tem rito próprio” não justifica a supressão de garantias fundamentais. Pelo contrário: o princípio da proteção integral da criança e do adolescente (art. 227 da CF) exige que o sistema ofereça mais proteções, nunca menos.

Como afirmou o relator, "os adolescentes não podem ser tratados como meros objetos da atividade sancionadora estatal e nem serem tratados de forma pior do que os adultos."

Contraditório e ampla defesa (Art. 5º, LV, CF)

A Constituição Federal não faz distinção: todos os acusados, em qualquer processo judicial ou administrativo, têm direito ao contraditório e à ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

O contraditório pressupõe o direito de conhecer previamente as provas que embasam a acusação e de sobre elas se manifestar. Antecipar o interrogatório viola frontalmente essa garantia, pois impede que o adolescente exerça autodefesa de forma plena, consciente e informada.

Reconhecimento da lacuna do ECA e aplicação subsidiária do CPP

O ponto técnico-jurídico central da decisão foi o reconhecimento expresso da lacuna do ECA quanto à ordem dos atos instrutórios no procedimento de apuração de ato infracional.

O art. 152 do ECA estabelece que “aos procedimentos regulados nesta Lei aplicam-se subsidiariamente as normas gerais previstas na legislação processual pertinente.”

Como o ECA silencia sobre a sequência dos atos na audiência de instrução e julgamento, não há conflito algum em aplicar subsidiariamente o art. 400 do CPP. Pelo contrário: há complementação necessária para assegurar um processo penal justo e equilibrado.

Separação entre audiência de apresentação e audiência de instrução

A decisão deixou cristalino que a audiência de apresentação (art. 184 do ECA) e a audiência de instrução e julgamento (art. 400 do CPP) são atos processuais distintos, com finalidades diferentes.

Audiência de apresentação (art. 184, ECA)Audiência de instrução e julgamento (art. 400, CPP)
Realizada logo após o oferecimento da representaçãoRealizada após citação, resposta escrita e audiência de apresentação
Finalidade: analisar internação provisória e remissãoFinalidade: produção de provas (testemunhas, perícia, interrogatório)
Vedada a produção de provasLocal próprio para toda a instrução probatória
Eventual confissão não pode fundamentar sozinha a procedênciaConfissão tem valor probatório pleno, desde que corroborada
Juiz ouve o adolescente informalmente sobre sua situação pessoalInterrogatório formal, com todas as garantias processuais

A confusão entre esses dois momentos processuais foi o que gerou décadas de decisões equivocadas.

O marco temporal: 3 de março de 2016

A modulação de efeitos foi estratégica. O STJ vinculou o novo entendimento à data em que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 127.900, assentou que o art. 400 do CPP também se aplica aos ritos especiais (como o do Tribunal do Júri, originalmente).

A partir de 3 de março de 2016, a realização antecipada do interrogatório em procedimento de ato infracional gera nulidade absoluta, desde que o vício seja arguido tempestivamente, sob pena de preclusão.

Importante: O novo entendimento não afeta processos com instrução encerrada antes dessa data. Mas tudo que veio depois está sob o novo regime.

Conectando com concursos públicos: como isso cai na prova

(Banca Fictícia – Estilo CESPE/VUNESP – Ministério Público Estadual)

João, com 16 anos, foi representado pela prática de ato infracional análogo ao crime de roubo majorado. Na audiência de apresentação, realizada em 15 de setembro de 2024, o juiz, além de analisar a internação provisória e a possibilidade de remissão, realizou o interrogatório formal do adolescente, que confessou a autoria dos fatos. Posteriormente, foram ouvidas três testemunhas de acusação e duas de defesa. Ao final, foi proferida sentença de procedência, aplicando-se medida socioeducativa de internação. A Defensoria Pública, em recurso de apelação, arguiu nulidade absoluta com base no Tema 1269 do STJ. Com base no entendimento consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça, assinale a alternativa correta:

a) O procedimento está correto, pois o ECA possui rito próprio e não exige a aplicação subsidiária do art. 400 do CPP quanto à ordem dos atos, bastando a audiência de apresentação prevista no art. 184.

b) Há nulidade absoluta, pois o interrogatório deveria ter sido realizado ao final da instrução, após a produção de todas as provas, em respeito ao contraditório e à ampla defesa, conforme aplicação subsidiária do art. 400 do CPP.

c) Não há nulidade, pois o adolescente confessou espontaneamente, o que valida o ato, independentemente do momento em que foi realizado, desde que corroborada por outras provas.

d) A confissão realizada na audiência de apresentação pode, por si só, fundamentar a procedência da representação, desde que o adolescente tenha sido assistido por defensor técnico.

e) A nulidade só seria reconhecida se a instrução tivesse sido encerrada antes de 3 de março de 2016, data da modulação de efeitos fixada pelo STJ no julgamento do Tema 1269.

Gabarito: Alternativa B

Por quê?

Alternativa B (CORRETA): O Tema 1269 do STJ, julgado em 8 de outubro de 2025, fixou expressamente que, reconhecida a lacuna do ECA quanto à ordem dos atos instrutórios, aplica-se subsidiariamente o art. 400 do CPP, garantindo ao adolescente o interrogatório ao final da instrução, após ter ciência de todo o acervo probatório. Realizar o interrogatório na audiência de apresentação (que se destina apenas à análise de internação provisória e remissão) viola o contraditório e a ampla defesa, gerando nulidade absoluta — desde que arguida oportunamente, como ocorreu no caso.

Alternativa A (INCORRETA): Embora o ECA tenha rito próprio, o STJ reconheceu expressamente que há lacuna normativa quanto à ordem dos atos instrutórios, o que justifica e exige a aplicação subsidiária do art. 400 do CPP (art. 152 do ECA). A audiência de apresentação não substitui o interrogatório ao final da instrução.

Alternativa C (INCORRETA): A confissão espontânea não valida um ato processual nulo. O vício na ordem dos atos viola garantias constitucionais fundamentais (contraditório e ampla defesa) e não pode ser sanado pela confissão ou por outros elementos probatórios. A nulidade é de natureza absoluta.

Alternativa D (INCORRETA): A tese do Tema 1269 é expressa ao afirmar que eventual confissão obtida na audiência de apresentação não pode, por si só, fundamentar a procedência da representação, justamente porque essa audiência é vedada à produção de provas. A presença de defensor técnico não altera essa vedação.

Alternativa E (INCORRETA): A modulação funciona ao contrário: a nulidade é reconhecida a partir de 3/3/2016 (data do HC 127.900 do STF). O novo entendimento não afeta processos com instrução encerrada antes dessa data. Como a instrução no caso foi encerrada em 2024, aplica-se plenamente o Tema 1269.

Consequências práticas da decisão

A fixação da tese no Tema 1269 gera efeitos imediatos e profundos na atuação de todos os operadores do direito que trabalham com infância e juventude:

  • Deve-se realizar duas audiências distintas: apresentação (art. 184, ECA – que não foi extinta pelo STJ) e instrução (art. 400, CPP);
  • Na audiência de apresentação, o juiz apenas avalia a possibilidade de internação provisória e de remissão, sem produção de prova;
  • Na audiência de instrução: ordem obrigatória — testemunhas de acusação, testemunhas de defesa, esclarecimentos periciais e, por último, interrogatório do adolescente

Resumo estratégico para memorização

O que você PRECISA gravar:

Tese do Tema 1269: Interrogatório do adolescente deve ser o último ato da instrução, após conhecimento de todas as provas, por aplicação subsidiária do art. 400 do CPP.

Fundamento: Lacuna do ECA + proteção ao contraditório, ampla defesa, isonomia e proteção integral (adolescente não pode ter menos garantias que adulto).

Duas audiências distintas:

  • Audiência de apresentação (art. 184, ECA): só internação e remissão, sem produção de prova
  • Audiência de instrução (art. 400, CPP): ordem obrigatória — testemunhas → perícia → interrogatório ao final

Confissão na audiência de apresentação: NÃO pode, por si só, fundamentar a procedência da representação.

Marco temporal: Efeitos a partir de 3/3/2016 (data do HC 127.900 do STF).

Nulidade: Absoluta, mas sujeita a preclusão se não arguida oportunamente.

Casos paradigmas: REsp 2.088.626/RS e REsp 2.100.005/RS (ambos julgados em 8/10/2025, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz).

Suspensão de processos: NÃO houve suspensão de processos pendentes (art. 1.036, § 1º, CPC), pois o julgamento da questão ocorreu com brevidade.

Conclusão: proteção integral também é processo justo

O julgamento do Tema 1269 do STJ, ocorrido em 8 de outubro de 2025, representa um marco civilizatório para o sistema de justiça juvenil brasileiro. Não se trata apenas de um ajuste técnico-processual, mas do reconhecimento de que a proteção integral da criança e do adolescente, constitucionalmente assegurada, também se materializa no processo.

Adolescentes em conflito com a lei não são objetos de intervenção estatal arbitrária. São sujeitos de direitos, titulares das mesmas garantias fundamentais que protegem qualquer cidadão submetido ao poder punitivo do Estado — ou, considerando sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, titulares de ainda mais garantias.

O interrogatório ao final da instrução não é uma formalidade vazia. É a concretização do direito de defesa, do contraditório, da ampla defesa e da dignidade da pessoa humana. É a garantia de que ninguém será condenado sem ter tido a oportunidade de conhecer, compreender e contestar efetivamente as provas produzidas contra si.

Para você, concurseiro, esse tema representa uma oportunidade valiosa: demonstrar compreensão sistemática do ordenamento, articulação entre ECA, CPP e Constituição Federal, capacidade de diferenciar institutos processuais e, acima de tudo, sensibilidade para os direitos fundamentais — especialmente quando se trata de pessoas em situação de vulnerabilidade.

Estude o Tema 1269 com atenção. Entenda a lógica por trás da tese, não apenas a decoreba. Assim, mesmo que a banca mude o caso concreto ou inverta as alternativas, você terá o raciocínio jurídico correto para acertar a questão.


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