Sou a professora Paloma Berttotti, registradora substituta e professora do Estratégia Carreira Jurídica.
Trouxe abaixo uma análise para reflexão sobre o tema: Projeto determina que registro de casamento no cartório tenha sexo de nascença do cônjuge.
Desde a Constituição Federal de 1988, o casamento deixou de ser o protagonista e passaram a também ser reconhecidas como entidades familiares a união estável e a comunidade formada por qualquer um dos pais e seus descendentes. De fato, ainda muito realizado, o casamento é buscado pelas partes por diversos motivos, sendo que os principais deles estão ligados a situações patrimoniais, religiosas, familiares e pessoais, principalmente àqueles ainda muito ligados à tradição matrimonial.
Apesar disso pode-se afirmar que o casamento é um “sonho sonhado por todos” (ou pela maioria). Em seu artigo, a autora Maria Berenice Dias reitera que “apesar de o direito à felicidade ser um direito individual, sempre esteve muito ligado à indispensabilidade de se ter um par.”[1] Não significa dizer que que a felicidade de alguém está condicionada ao encontro do outro, muito pelo contrário, mas sempre se teve presente a ideia de que cada um tem sua “cara metade”.
Deixando a pompa e circunstância de lado, o casamento, por si, traz a segurança jurídica esperada, pois independe de qualquer outro meio de prova. Tendo o ato ocorrido com higidez e dentro de todas as formalidades necessárias, não há motivos para duvidar do ato celebrado perante uma autoridade competente. O matrimônio é negócio jurídico, pessoal e solene.
Sabe-se contudo, que o casamento é a forma mais explícita, aparente e notória de entidade familiar, visto que sua publicidade inicial se dá com o processo de habilitação, momento em que levados os documentos previstos no Código Civil e são publicados os editais eletrônicos. Na sequência, a segunda forma de publicidade registral do ato se dá pela celebração e, por fim, com a efetivação do registro.
Determina o artigo 1.523 do Código Civil que “o casamento celebrado no Brasil prova-se pela certidão do registro”. Na teoria tudo seria perfeito se não houvessem circunstâncias que pudessem ocasionar a invalidade do casamento e que ultrapassam o fato do ato ter ocorrido de forma sadia, registralmente falando.
Assim, nos termos do Código Civil:
Art. 1.548. É nulo o casamento contraído:
I – (Revogado) ;
II – por infringência de impedimento. […]
Art. 1.550. É anulável o casamento:
I – de quem não completou a idade mínima para casar;
II – do menor em idade núbil, quando não autorizado por seu representante legal;
III – por vício da vontade, nos termos dos arts. 1.556 a 1.558;
IV – do incapaz de consentir ou manifestar, de modo inequívoco, o consentimento;
V – realizado pelo mandatário, sem que ele ou o outro contraente soubesse da revogação do mandato, e não sobrevindo coabitação entre os cônjuges;
VI – por incompetência da autoridade celebrante.
Além das hipóteses apontadas pelo artigo 1.550, o artigo 1.556 ainda determina que é passível de anulação o casamento contraído por vício da vontade, se houve por parte de um dos nubentes, ao consentir, erro essencial quanto à pessoa do outro. Mas o que é considerado erro essencial? O próprio Código Civil, esclarece:
Art. 1.557. Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge:
I – o que diz respeito à sua identidade, sua honra e boa fama, sendo esse erro tal que o seu conhecimento ulterior torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado;
II – a ignorância de crime, anterior ao casamento, que, por sua natureza, torne insuportável a vida conjugal;
III – a ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico irremediável que não caracterize deficiência ou de moléstia grave e transmissível, por contágio ou por herança, capaz de pôr em risco a saúde do outro cônjuge ou de sua descendência;
O que se pode constatar é que o erro essencial é aquele de tal importância que, sem ele, o ato do casamento não ocorreria. Para que ocorra o erro essencial, hodiernamente, deve-se levar em consideração aspectos mais subjetivos, como, por exemplo, o que diz respeito à identidade, honra e boa fama. Trata-se de uma questão muito sensível para quem o vivencia e para quem o julga, uma vez que depende de critério individual do que pode, por exemplo, afrontar a boa fama de alguém.
Do exposto, cabe a seguinte reflexão: poderia ser considerado erro essencial sobre a pessoa do outro a não informação do sexo de nascença por parte de um dos nubentes? É considerado ofensa à honra e boa fama de alguém o fato do seu(sua) companheiro(a) ter nascido com sexo diferente do qual se apresentou?
Ponto extremamente delicado, mas levado como projeto de lei nº 1596/2023 que propõe alteração do artigo 70 da Lei 6.015/1973, sobretudo o item 1º. Atualmente a redação do item dispõe que:
Art. 70 Do matrimônio, logo depois de celebrado, será lavrado assento, assinado pelo presidente do ato, os cônjuges, as testemunhas e o oficial, sendo exarados:
1º) os nomes, prenomes, nacionalidade, naturalidade, data de nascimento, profissão, domicílio e residência atual dos cônjuges; […]
A proposta protocolada em 02 de abril de 2023, tem como intuito acrescentar no item 1º do artigo 70 a informação do “sexo de nascença” dos contraentes no assento do casamento. A fundamentação para o pedido está pautada no princípio da transparência e confiança que o casal deve ter um com o outro. Ainda acrescentam que “o projeto de lei em questão visa afastar a possibilidade de um cônjuge negar ao outro uma informação primordial, o direito a saber do passado com quem se casa é sagrado.”. Trata ainda que a informação é imprescindível para o outro manter resguardado sua honra e boa fama.
Sob a ótica registral, vislumbro duas situações a serem levantadas. A primeira delas diz respeito ao que determina o Provimento 73/2018-CNJ que possibilitou a averbação da alteração do prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento de pessoa transgênero, independentemente, inclusive, de cirurgia de redesignação sexual. O Provimento defende o direito constitucional à dignidade (art. 1º, III, da CF/88), à intimidade, à vida privada, à honra, à imagem (art. 5º, X, da CF/88), à igualdade (art. 5º, caput, da CF/88), à identidade ou expressão de gênero sem discriminações das pessoas transgêneros. Vale destacar que antes do Provimento que possibilitou a alteração de forma extrajudicial, a modificação nos assentamentos públicos só ocorria mediante determinação judicial e também preservado o direito ao sigilo.
Na sequência, o artigo 5º do mesmo Provimento determina que a alteração tem natureza sigilosa, motivo pelo qual a informação a respeito da alteração não poderá constar das certidões dos assentos, salvo por solicitação da própria pessoa ou por determinação judicial. Desse modo, o Provimento protege o direito à privacidade da pessoa que promoveu a alteração! Ou seja, sua intimidade é protegida pela Lei, motivo pelo qual sua publicidade deve ser restrita. Novamente indaga-se: cabe a Lei trazer à tona fato tão íntimo da pessoa no seu registro de casamento?
Do questionamento, passamos a segunda análise. Como base em qual documento o Registrador fará consignar na certidão de casamento o sexo de nascença da parte? Apenas a declaração bastaria?
O artigo 1.525 do Código Civil prevê sobre os requisitos ao processo de habilitação de casamento, ou seja, procedimento prévio ao registro previsto no artigo 70 da Lei dos Registros Públicos. Dentre o solicitado está a certidão de nascimento ou documento equivalente. É de praxe registral que as certidões necessárias ao processo de habilitação sejam de breve relato, ou seja, certidões apenas com os elementos essenciais conforme os padrões de certidões contidos no Provimento 63/2017-CNJ.
Considerando o exposto, em sendo necessário conter na certidão de nascimento o sexo de nascença OU ter a obrigatoriedade da apresentação de certidão de inteiro teor (onde constará todo a íntegra do registro) não seria “percebido” pelo outro no momento da habilitação a dita falta de transparência abordada pelo PL? Desse modo e, em sendo real e pessoal motivo para não prosseguir com o casamento, o ato nem seria levado a registro, motivo pelo qual não haveria a necessidade em promover a alteração do artigo 70, item 1º da Lei 6.015/1973.
O projeto de lei versa, sob meu ponto de vista, duas situações importantíssimas. De pronto, creio não ser o correto alterar o artigo 70 da Lei 6.015/1973, haja vista o equivocado entendimento registral. O que se busca com o PL não “solucionaria” o que se pretende alcançar. Acrescento que existem maneiras prévias ao registro do casamento de verificar o que se busca no projeto de lei, não sendo necessário chegar aos tribunais processos de anulabilidades, uma vez ele ter sido evitado antes do ato registral efetivamente.
Por outro lado, há de se levar em conta a questão pessoal das duas partes. Para aquela em que foi omitida a informação, seria motivo de considerar ofensa a sua honra e boa fama o fato do seu (sua) companheiro(a) ter realizado cirurgia de redesignação e nada lhe ter comentado? Trata-se de uma situação muito subjetiva e que demandaria análise do caso prático, se analisando, principalmente, o meio de convivência daquele que se sente ofendido e se afetaria sua boa imagem perante a comunidade que frequenta. Por sua vez, àquele que tem seu direito a intimidade violado, como fica? O projeto de lei não seria um retrocesso ao Provimento 73/2018-CNJ? Não seria ofensa, inclusive, àquele que teve sua intimidade violada em se fazer mencionar o sexo de nascença no assento do casamento?
Por derradeiro, fato é que o projeto de lei deve ser analisado com atenção pois ele extrapola mera questão de alterar a norma registral! Trata-se de situação pessoal e que deve ser analisado com base no caso concreto. A questão do erro essencial a pessoa do outro envolve não só o fato do casal ser transparente um com o outro, mas até que ponto, o outro, está sendo forçado a publicizar fato tão íntimo em sua certidão de casamento.
REFERÊNCIAS:
BRASIL. Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, [1973]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6015compilada.htm. Acesso em: 13.ago.2023.
BRASIL. Lei n.10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Presidência da República, [2002]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 13.ago.2023.
DIAS, Maria Berenice. A felicidade como direito fundamental. IBDFAM, 2023. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/1996/A+felicidade+como+direito+fundamental. Acesso em: 08.ago.2023.
[1] https://ibdfam.org.br/artigos/1996/A+felicidade+como+direito+fundamental
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