Prof. Gustavo Cordeiro
Introdução: um gigante que democratizou a Constituição
No dia 6 de outubro de 2025, aos 91 anos, faleceu Peter Häberle, o jurista alemão que revolucionou a forma como entendemos a interpretação constitucional. Häberle não foi apenas mais um teórico do Direito Constitucional — ele foi o responsável por tirar a Constituição das mãos exclusivas dos juízes e devolvê-la ao povo.
Para quem estuda para concursos jurídicos de alto nível, compreender o pensamento de Häberle é essencial. Sua teoria da sociedade aberta dos intérpretes da Constituição influenciou profundamente o constitucionalismo brasileiro, fundamentando institutos como o amicus curiae, as audiências públicas no STF e a participação democrática nos processos de controle de constitucionalidade.
Este artigo tem um objetivo claro: apresentar, de forma didática e estratégica, o legado de Peter Häberle e demonstrar como suas ideias aparecem — e continuarão aparecendo — nas provas de Magistratura, Ministério Público, Defensoria Pública e Advocacia Pública.
Quem foi Peter Häberle e por que ele importa para concursos públicos?

Peter Häberle nasceu em 1934, na Alemanha, e consolidou-se como um dos maiores constitucionalistas do século XX. Sua obra mais conhecida, “Hermenêutica Constitucional: A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição“, traduzida para o português em 1997 por Gilmar Ferreira Mendes, tornou-se referência obrigatória no Brasil.
A tese central de Häberle é simples, mas revolucionária: a Constituição não pertence apenas aos juízes. Todos aqueles que vivenciam a norma constitucional — cidadãos, partidos políticos, associações, ONGs, universidades, imprensa — são intérpretes legítimos da Constituição. Essa ideia rompe com a concepção tradicional de que apenas os órgãos oficiais (Poder Judiciário, Legislativo e Executivo) poderiam interpretar o texto constitucional.
A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: o que significa na prática?
Häberle parte de uma premissa democrática: quem vive a norma, interpreta a norma. Isso significa que a interpretação constitucional não é monopólio dos tribunais. Ela é um processo plural, aberto, dialógico e dinâmico, no qual múltiplas vozes sociais devem ser ouvidas.
Veja como isso funciona:
Interpretação formal vs. interpretação material
- Interpretação formal: realizada por órgãos estatais com competência jurídica (juízes, legisladores, administradores públicos);
- Interpretação material: feita por todos os que vivenciam a Constituição — cidadãos, grupos de pressão, mídia, universidades, movimentos sociais.
Häberle sustenta que ambas são legítimas. A diferença está na natureza e no momento da atuação: enquanto os órgãos estatais têm a palavra final (sobretudo o STF, como guardião da Constituição), os atores sociais atuam como pré-intérpretes ou coparticipantes do processo hermenêutico.
Democratização da hermenêutica constitucional
A teoria de Häberle democratiza a interpretação porque reconhece que a Constituição não é um texto morto, mas uma obra aberta, em permanente construção. Ela se atualiza conforme a realidade social, cultural e política de cada época.
Essa abertura permite que novos sentidos sejam atribuídos às normas constitucionais, sem necessidade de reforma formal. É o que chamamos de mutação constitucional: a Constituição muda sem que seu texto seja alterado, por meio de novas interpretações que refletem as transformações da sociedade.
O papel dos intérpretes não oficiais
Häberle elenca diversos atores que participam da interpretação constitucional:
- Partidos políticos: ao formularem propostas legislativas e debaterem políticas públicas;
- Mídia: ao informar, criticar e formar opinião pública sobre questões constitucionais;
- Universidades: ao produzirem doutrina, pareceres e críticas jurídicas;
- ONGs e movimentos sociais: ao representarem interesses difusos e coletivos;
- Cidadãos: ao exercerem direitos fundamentais, participarem de audiências públicas e ajuizarem ações constitucionais (como o habeas corpus, o mandado de segurança e a ação popular).
Todos esses atores influenciam a interpretação oficial, ainda que não tenham a palavra final.
A influência de Häberle no Direito Constitucional brasileiro
O constitucionalismo brasileiro abraçou com entusiasmo as ideias de Peter Häberle. Vários institutos consagrados em nossa prática jurídica têm inspiração direta em sua teoria.
Amicus curiae
O amicus curiae (amigo da corte) é um terceiro que, sem ser parte no processo, intervém para fornecer informações, elementos técnicos ou representar interesses sociais relevantes. Sua admissão no processo de controle de constitucionalidade está prevista no art. 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/1999 (ADI e ADC) e no art. 3º, § 2º, da Lei nº 9.882/1999 (ADPF).
O STF reconhece expressamente que o amicus curiae é uma manifestação prática da sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Ao permitir que entidades representativas da sociedade civil participem do debate constitucional, o Tribunal amplia o círculo de intérpretes e legitima democraticamente suas decisões.
Exemplo prático: No julgamento da ADI 5.357 (constitucionalidade do “vaquejada”), diversas entidades — tanto de defesa dos animais quanto de defesa da cultura tradicional — atuaram como amici curiae, enriquecendo o debate com argumentos técnicos, culturais e sociais.
Audiências públicas
As audiências públicas no STF (art. 9º, § 1º, da Lei nº 9.868/1999 e art. 6º, § 1º, da Lei nº 9.882/1999) são outro exemplo da teoria de Häberle em ação. Nesses procedimentos, o Tribunal convoca especialistas, representantes de grupos sociais, cientistas e autoridades para debater temas complexos antes de decidir.
Audiências públicas foram realizadas, por exemplo, nos casos de:
- Pesquisas com células-tronco embrionárias (ADI 3.510);
- Interrupção da gravidez de fetos anencéfalos (ADPF 54);
- Políticas de cotas raciais (ADPF 186);
- Descriminalização do aborto até a 12ª semana (ADPF 442 — ainda pendente de julgamento).
As audiências públicas materializam a ideia de que a Constituição se constrói coletivamente, com a participação ativa da sociedade.
Controle de constitucionalidade e participação popular
A Constituição de 1988 ampliou significativamente o rol de legitimados para propor ações diretas de inconstitucionalidade (art. 103, CF/88). Entre os legitimados estão entidades representativas de categorias profissionais, sindicatos e confederações — ou seja, atores sociais que podem provocar o STF a interpretar a Constituição.
Essa abertura é reflexo direto do pensamento de Häberle: quanto mais plural for a sociedade, mais plural deve ser a interpretação constitucional.
O pensamento das possibilidades (Möglichkeitsdenken)
Häberle também desenvolveu o conceito de pensamento das possibilidades, que consiste em reconhecer que a Constituição admite múltiplas soluções para um mesmo problema. O intérprete não deve pensar de forma binária (“ou isso ou aquilo”), mas buscar alternativas criativas e razoáveis dentro do quadro constitucional.
Esse pensamento foi invocado pelo ministro Gilmar Mendes em diversos julgados, como na ADI 6.342, que tratou de medidas trabalhistas durante a pandemia de COVID-19. Segundo Gilmar, o pensamento de possibilidades permite que o STF reconheça a legitimidade de diferentes escolhas do legislador, desde que respeitem os limites constitucionais.
Como a teoria de Häberle é cobrada em concursos públicos?
A banca examinadora adora cobrar Häberle — especialmente em provas de Magistratura, Ministério Público e Defensoria Pública. Veja como o tema aparece:
CIAAR - 2012:
Peter Häberle propõe um modelo de uma sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. No direito brasileiro, são exemplos dessa possibilidade de interpretação pluralista e democrática:
(A) sentenças aditivas e substitutivas.
(B) teoria dos poderes implícitos e a derrotabilidade.
(C) figura do amicus curiae e das audiências públicas.
(D) transcendência dos motivos determinantes da sentença no controle difuso e a intervenção de terceiros.
Gabarito: C
(A) Incorreta: Sentenças aditivas e substitutivas dizem respeito ao controle de constitucionalidade (especialmente no direito italiano), mas não têm relação direta com a participação social na interpretação constitucional.
(B) Incorreta: A teoria dos poderes implícitos refere-se à ampliação das competências constitucionais para viabilizar o exercício de funções expressas. Já a derrotabilidade é conceito ligado à teoria da argumentação jurídica. Nenhum dos dois guarda relação com a sociedade aberta dos intérpretes.
(C) Correta: O amicus curiae e as audiências públicas são manifestações práticas da teoria de Häberle, pois permitem que atores sociais participem do processo de interpretação constitucional.
(D) Incorreta: A transcendência dos motivos determinantes (efeito vinculante ampliado) e a intervenção de terceiros são institutos processuais, mas não refletem diretamente a ideia de pluralidade interpretativa defendida por Häberle.
Questões de certo ou errado (estilo PGR)
Bancas como a PGR (Procuradoria-Geral da República) costumam formular questões conceituais que exigem compreensão profunda da teoria.
PGR – 2015:
A "sociedade aberta dos intérpretes da Constituição", expressão cunhada por Häberle, além de ser um processo de interpretação que permite ao julgador mais elementos para a tomada de decisões, tem pertinência, em matéria de direitos humanos, pelo fato de estes também regerem as relações horizontais entre os indivíduos.
Gabarito: CERTO
A teoria de Peter Häberle amplia o leque de intérpretes da Constituição, o que enriquece o processo decisório do julgador com elementos técnicos, sociais, culturais e políticos. Além disso, a afirmação de que os direitos humanos também regem relações horizontais (entre particulares) reflete a teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, que é plenamente compatível com a visão de Häberle de uma Constituição viva, democrática e socialmente construída.
Enunciado (Questão inédita — estilo CESPE/CEBRASPE):
Maria, presidente de uma ONG de defesa dos direitos das pessoas com deficiência, foi convidada pelo Supremo Tribunal Federal para participar de audiência pública sobre a regulamentação da acessibilidade em espaços públicos. Durante a audiência, Maria apresentou dados técnicos, relatos de experiências vividas e sugestões normativas. Com base na teoria de Peter Häberle, assinale a alternativa correta:
(A) A participação de Maria na audiência pública é irrelevante do ponto de vista jurídico, pois apenas os órgãos estatais têm legitimidade para interpretar a Constituição.
(B) Maria atua como intérprete da Constituição em sentido amplo, contribuindo para a democratização do processo hermenêutico constitucional.
(C) A teoria de Häberle não se aplica ao caso, pois audiências públicas são meros procedimentos consultivos, sem força vinculante.
(D) A atuação de Maria viola o princípio da separação dos poderes, pois compete exclusivamente ao Poder Judiciário interpretar a Constituição.
(E) A participação de Maria configura usurpação de competência constitucional, já que cidadãos comuns não podem influenciar decisões do STF.
Gabarito: B
(A) Incorreta: A teoria de Häberle rompe exatamente com a ideia de que apenas órgãos estatais são intérpretes legítimos da Constituição. Maria, como representante de um grupo social, é intérprete em sentido amplo (ou pré-intérprete).
(B) Correta: Maria atua como intérprete da Constituição em sentido amplo, conforme a teoria de Häberle. Sua participação na audiência pública democratiza o processo interpretativo, fornecendo ao STF elementos técnicos, sociais e práticos que enriquecem a decisão.
(C) Incorreta: Ainda que as audiências públicas não tenham caráter vinculante, elas são instrumentos de legitimação democrática das decisões do STF. Häberle valoriza exatamente essa abertura dialógica.
(D) Incorreta: Não há violação à separação dos poderes. A participação de atores sociais no processo interpretativo não retira do Judiciário a competência para decidir; apenas o auxilia com informações e perspectivas plurais.
(E) Incorreta: Não há usurpação de competência. A teoria de Häberle defende justamente que cidadãos, ONGs, universidades e outros atores sociais podem e devem influenciar a interpretação constitucional, sem que isso configure ingerência indevida.
Conclusão: Häberle e o futuro do constitucionalismo democrático
Peter Häberle nos deixou um legado inestimável: a Constituição como obra coletiva, viva, dinâmica e democrática. Sua morte, em 6 de outubro de 2025, encerra uma trajetória brilhante, mas não encerra a influência de suas ideias — que continuam a inspirar juristas, movimentos sociais e instituições em todo o mundo.
Para o concurseiro estratégico, dominar a teoria de Häberle não é luxo acadêmico: é necessidade prática. O tema aparece em questões objetivas, dissertativas, peças processuais e entrevistas de títulos. Mais do que isso: compreender Häberle é compreender o próprio sentido da Constituição de 1988 — uma Constituição cidadã, aberta, plural e democrática.
Dica final: Anote os exemplos práticos (amicus curiae, audiências públicas, pensamento das possibilidades) e treine questões anteriores. Häberle é um tema “curinga” em provas de alto nível — e agora, com seu falecimento, pode ganhar ainda mais protagonismo nas próximas provas. A Constituição é de todos. Häberle nos ensinou isso. Cabe a nós, futuros magistrados, promotores, defensores e procuradores, honrar esse legado.
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