Prof. Gustavo Cordeiro
Introdução: quando o júri decide pela restauração ao invés da punição
Em 14 de novembro de 2024, o 2º Tribunal do Júri de Belo Horizonte protagonizou uma decisão histórica no sistema de justiça brasileiro: pela primeira vez no país, os jurados validaram um plano de ação de Justiça Restaurativa e absolveram uma ré acusada de tentativa de homicídio. O caso envolvia um casal em que a esposa, em aparente crise de ciúmes, agrediu o companheiro com uma garrafada no pescoço durante o consumo de bebida alcoólica em um bar.
O que torna esse julgamento especialmente relevante para candidatos a concursos jurídicos não é apenas seu pioneirismo, mas a demonstração prática de como institutos contemporâneos de resolução de conflitos – especialmente a Justiça Restaurativa – podem conviver com institutos tradicionais como o Tribunal do Júri, historicamente vinculado à lógica retributiva-punitiva.
Para quem estuda Magistratura, Ministério Público, Defensoria Pública ou Delegado, compreender essa intersecção é estratégico: as bancas organizadoras têm demonstrado crescente interesse por temas que envolvem métodos alternativos de resolução de conflitos, política criminal humanizada e aplicação das Resoluções do CNJ, especialmente em contextos aparentemente incompatíveis com essas práticas.
Justiça Restaurativa: conceito e fundamentos normativos
A Justiça Restaurativa representa uma mudança paradigmática na resposta estatal ao conflito penal. Diferentemente do modelo tradicional retributivo-punitivo, centrado exclusivamente no autor do fato e na imposição de sanção proporcional à gravidade da conduta, a abordagem restaurativa busca restaurar as relações danificadas pela violência, promovendo a participação ativa de vítima, ofensor e comunidade na construção de uma solução consensual.
A Resolução CNJ nº 225/2016 define Justiça Restaurativa como “um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e violências”. Mais do que técnica de resolução de conflitos, constitui abordagem que promove espaços de escuta, responsabilização ativa e fortalecimento das relações humanas.
Princípios estruturantes da Justiça Restaurativa:
- Voluntariedade: a participação depende de consentimento livre e informado de todas as partes envolvidas
- Confidencialidade: proteção das informações compartilhadas durante os procedimentos restaurativos
- Imparcialidade do facilitador: não há juízo de valor sobre culpa ou inocência durante os círculos restaurativos
- Responsabilização ativa: busca-se a compreensão dos impactos da conduta e assunção de responsabilidade pelo ofensor
- Reparação dos danos: foco na reparação material, moral e simbólica dos prejuízos causados
Em Minas Gerais, a implementação da política restaurativa foi regulamentada pela Resolução TJMG nº 971/2021, que estabelece diretrizes para aplicação em Varas Criminais, Juizados Especiais e contexto socioeducativo.
O caso concreto: como funcionou a Justiça Restaurativa no júri de Belo Horizonte
O caso julgado apresentava características que o tornavam especialmente adequado para a abordagem restaurativa:

Contexto fático: Casal sem histórico de violência, com convivência pacífica, envolvido em episódio isolado de violência doméstica durante consumo de álcool. Após o fato, permaneceram juntos e constituíram família com duas filhas menores.
Procedimento adotado:
- Fase de identificação: Durante a instrução processual, o juízo e o Ministério Público identificaram que o perfil do caso e das partes permitia a aplicação da Justiça Restaurativa
- Oferecimento e adesão voluntária: Vítima e ré concordaram em participar dos Círculos de Construção de Paz
- Realização dos círculos restaurativos: Foram realizados mais de 10 encontros conduzidos por equipes técnicas, nos quais o casal trabalhou diálogo, responsabilização e prevenção de novos conflitos
- Elaboração do plano de ação: As partes, com auxílio dos facilitadores, construíram um plano voltado a restaurar o dano, melhorar a comunicação e fortalecer o vínculo familiar
- Submissão aos jurados: Na sessão plenária do júri, presidida pela juíza Maria Beatriz Fonseca da Costa Biasutti Silva, apresentou-se o plano de ação ao Conselho de Sentença
- Validação pelo júri popular: Os jurados, como representantes da sociedade e juízes naturais dos crimes dolosos contra a vida, validaram o plano e absolveram a ré
A inovação jurídica: júri popular como validador de práticas restaurativas
A grande inovação desse caso reside na atribuição aos jurados da competência para validar o plano de ação restaurativo. Tradicionalmente, o Conselho de Sentença decide sobre a autoria, materialidade e absolvição/condenação do réu segundo os quesitos do art. 483 do CPP. No caso em análise, os jurados não apenas decidiram sobre a absolvição, mas especificamente validaram um processo restaurativo prévio como fundamento dessa decisão.
Segundo o juiz José Ricardo Véras, auxiliar da 3ª Vice-Presidência do TJMG, o caso foi pioneiro no país e está alinhado às diretrizes da Política Nacional de Justiça Restaurativa instituída pelo CNJ.
Por que submeter o plano aos jurados?
A justificativa apresentada pelos magistrados foi a necessária participação da sociedade na metodologia restaurativa. Como os jurados são juízes naturais e representantes da sociedade no júri, precisariam dar o veredito sobre o plano de ação. Caso fosse aceito, seria homologada sentença absolutória; em caso negativo, o processo seguiria o rito comum.
Essa lógica respeita a soberania dos veredictos do júri (art. 5º, XXXVIII, “c”, da CF/88) ao mesmo tempo em que incorpora práticas restaurativas ao procedimento, demonstrando que tradição e inovação podem conviver no sistema de justiça criminal.
Implicações práticas: o posicionamento do Ministério Público
O promotor de justiça Luciano Sotero Santiago, que atuou no caso, ofereceu uma análise especialmente relevante para candidatos às carreiras ministeriais. Segundo ele, na ótica da justiça tradicional ou punitiva, os jurados teriam apenas duas opções:
Opção 1 – Condenação: Implicaria consequências trágicas para o núcleo familiar, considerando que a ré tem duas filhas menores e a vítima (companheiro) não deseja a condenação, tendo presenciado o arrependimento da autora.
Opção 2 – Absolvição tradicional no quesito genérico: Embora evitasse a condenação, não resolveria a origem do conflito e deixaria as questões relacionais sem tratamento adequado.
A Justiça Restaurativa surgiu como terceira via: permitiu a absolvição com tratamento efetivo do conflito subjacente, fortalecimento dos vínculos familiares e prevenção de novos episódios de violência, mediante a assunção de responsabilidade pela autora e a participação ativa de ambas as partes na solução.
Esse posicionamento ministerial é estratégico para concursos: demonstra que o Ministério Público pode atuar não apenas como órgão acusador, mas como agente de transformação social, promovendo práticas restaurativas quando o perfil do caso e das partes permitir, sempre respeitando a autonomia da vítima.
Justiça Restaurativa x princípio da obrigatoriedade da ação penal
Uma questão fundamental para provas objetivas e discursivas: a aplicação da Justiça Restaurativa em casos de ação penal pública incondicionada (como tentativa de homicídio) viola o princípio da obrigatoriedade da ação penal?
Resposta: Não. A Justiça Restaurativa não substitui o processo penal nem representa renúncia à pretensão punitiva estatal. O que ocorre é uma ampliação das possibilidades de resposta ao conflito penal, mantendo-se o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.
No caso em análise:
- A ação penal foi regularmente oferecida e processada
- A instrução processual foi completa
- Houve o julgamento pelo júri
- A decisão final coube aos jurados, como determina a Constituição
A Justiça Restaurativa funcionou como elemento informativo da decisão dos jurados, que soberanamente optaram pela absolvição após validar o plano de ação construído pelas partes. Não houve arquivamento arbitrário, transação penal indevida ou qualquer forma de disposição da ação penal pelo Ministério Público.
Questão simulada comentada
(Magistratura Estadual - 2026) Durante a instrução de processo por tentativa de homicídio doloso, o juízo identificou que o caso apresentava perfil adequado para aplicação da Justiça Restaurativa. Com a concordância da vítima e da ré, foram realizados Círculos de Construção de Paz e elaborado um plano de ação restaurativo. No julgamento pelo Tribunal do Júri, o referido plano foi apresentado aos jurados, que o validaram e absolveram a ré. Sobre a situação narrada, assinale a alternativa correta:
A) O procedimento adotado viola o princípio da obrigatoriedade da ação penal, pois o Ministério Público não pode dispor da pretensão punitiva estatal em crime de ação penal pública incondicionada.
B) A submissão do plano de ação restaurativo aos jurados viola a soberania dos veredictos do júri, pois introduz elemento estranho aos quesitos do art. 483 do CPP.
C) O procedimento está em conformidade com a Resolução CNJ 225/2016, que permite a aplicação da Justiça Restaurativa no âmbito criminal, inclusive em processos submetidos ao Tribunal do Júri, desde que haja consentimento das partes envolvidas.
D) A validação do plano restaurativo pelos jurados configura constrangimento ilegal, pois a Justiça Restaurativa só pode ser aplicada em infrações de menor potencial ofensivo e crimes de ação penal privada.
E) O caso deveria ter sido resolvido mediante transação penal ou suspensão condicional do processo, institutos mais adequados que a Justiça Restaurativa para crimes dolosos contra a vida.
GABARITO: ALTERNATIVA C
Comentários:
Alternativa A – INCORRETA: A aplicação da Justiça Restaurativa não representa disposição da pretensão punitiva pelo Ministério Público. A ação penal foi regularmente processada, a instrução foi completa e o julgamento ocorreu normalmente perante o júri. A decisão final coube aos jurados, não havendo renúncia à ação penal.
Alternativa B – INCORRETA: Não há violação à soberania dos veredictos. Os jurados exerceram sua competência constitucional de decidir pela absolvição ou condenação. O plano restaurativo foi apresentado como elemento de contexto, mas a decisão final permaneceu com o Conselho de Sentença, preservando sua soberania.
Alternativa C – CORRETA: A Resolução CNJ 225/2016 estabelece a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário e expressamente permite sua aplicação no contexto criminal, inclusive em Varas Criminais. O art. 1º prevê que é possível aplicar os procedimentos restaurativos em casos de violência, desde que haja manifestação de concordância das partes. O caso narrado respeitou todos os requisitos: voluntariedade, elaboração de plano de ação e participação dos jurados como representantes da sociedade na validação da proposta.
Alternativa D – INCORRETA: A Justiça Restaurativa não se limita a infrações de menor potencial ofensivo. A Resolução CNJ 225/2016 não estabelece restrições quanto à gravidade do delito, exigindo apenas que o perfil do caso e das partes seja adequado e que haja consentimento voluntário. O caso de Belo Horizonte comprova a viabilidade da aplicação mesmo em tentativa de homicídio.
Alternativa E – INCORRETA: Transação penal e suspensão condicional do processo são institutos da Lei 9.099/95, aplicáveis apenas a infrações de menor potencial ofensivo e crimes com pena mínima não superior a 1 ano, respectivamente. Tentativa de homicídio não se enquadra nesses institutos. A Justiça Restaurativa representa alternativa adequada justamente para casos mais graves que não comportam os benefícios da Lei 9.099/95.
Fechamento estratégico: o que memorizar para a prova
Pontos-chave sobre Justiça Restaurativa no Júri:
- Base normativa: Resolução CNJ 225/2016 (nacional) e resoluções estaduais (ex: TJMG 971/2021)
- Princípios essenciais: voluntariedade, confidencialidade, imparcialidade do facilitador, responsabilização ativa e reparação dos danos
- Compatibilidade com o júri: a Justiça Restaurativa não substitui o julgamento pelo júri, mas pode informar a decisão dos jurados, que mantêm sua soberania
- Não viola a obrigatoriedade: a ação penal é regularmente processada; a Justiça Restaurativa funciona como método de tratamento do conflito subjacente, não como forma de disposição da pretensão punitiva
- Aplicabilidade ampla: não se limita a infrações de menor potencial ofensivo. Logo, é possível aplicá-la em crimes graves desde que o perfil do caso e das partes seja adequado
- Papel do Ministério Público: pode e deve identificar casos adequados para abordagem restaurativa, atuando como promotor de justiça social e não apenas como órgão acusador
O caso de Belo Horizonte representa um divisor de águas na compreensão das possibilidades de convivência entre institutos tradicionais e contemporâneos no processo penal brasileiro. Para os candidatos a concursos jurídicos, compreender essa intersecção é fundamental: as bancas examinadoras têm privilegiado questões que demandam visão sistêmica, conhecimento de resoluções do CNJ e capacidade de aplicar institutos inovadores sem perder de vista as garantias fundamentais do processo penal.
Dica final de estudo: Associe sempre Justiça Restaurativa com os princípios da dignidade da pessoa humana, adequação social e política criminal humanizada. Nas provas discursivas, demonstre conhecimento da Resolução CNJ 225/2016 e capacidade de argumentar sobre a compatibilidade entre práticas restaurativas e garantias processuais. Esse diferencial pode ser decisivo na obtenção de pontos preciosos nas provas mais competitivas do país.
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